O Exército dos Estados Unidos transferiu 117 imigrantes para o centro de detenção na base militar da Baía de Guantánamo no fim de fevereiro. Na data, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, visitou a base naval pela primeira vez desde sua nomeação.
Na sequência, o governo de Donald Trump interrompeu os planos de alojar os migrantes detidos em acampamentos situados em Guantánamo, temendo que as instalações não atendessem aos padrões estabelecidos pelo Serviço de Imigração, já que as barracas não tinham eletricidade nem ar-condicionado.
Agora, a empresa contratada pelo Governo federal para administrar o centro de detenção de Guantánamo está sob um novo escrutínio público. Trata-se da Akima Infrastructure Protection, uma corporação de nativos do Alaska que, como parte de seus múltiplos contratos com o governo dos Estados Unidos, gerencia centros de detenção para imigrantes em todo o país. Alguns desses centros estão sendo investigados por supostas violações aos direitos humanos.
A falta de transparência nas práticas da empresa, somada à política de ampliação da detenção de migrantes em um local de segurança máxima como Guantánamo, levanta dúvidas sobre as condições da instalação e até mesmo sobre o número exato de pessoas que já estiveram presas ali, explica o jornalista investigativo José Olivares, em entrevista ao programa Democracy Now.
No início de fevereiro, a secretária de Segurança Nacional, Kristi Noem, visitou Guantánamo dias após a transferência dos primeiros imigrantes para lá e afirmou, sem apresentar provas, que as pessoas enviadas à instalação eram criminosos perigosos. “Essas pessoas são o pior do pior que tiramos de nossas ruas”, afirmou na ocasião.
Segundo ela, essas pessoas seriam “asassinos, estupradores”. Ela afirmou que “quando estive lá, vi um dos voos aterrissando e descarregando cerca de 15 desses criminosos. Eram, principalmente, pedófilos e traficantes de crianças e drogas. Nós os retiramos de nossas ruas e os colocamos nessa instalação”.
Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.
O The New York Times, porém, publicou uma investigação sobre uma mulher venezuelana que vive na Colômbia e identificou seu irmão em um vídeo de Guantánamo. Ela declarou: “Meu irmão não é um criminoso”. O governo alegou que as tatuagens dessas pessoas indicavam que eram membros de gangues. No entanto, a mulher afirmou que as tatuagens de seu irmão eram uma homenagem a Michael Jordan, de quem ele é fã.
Para nunca esquecer: 8 relatos de vítimas da ditadura militar no Brasil
Depois de deportar abruptamente 177 migrantes venezuelanos que estavam detidos em Guantánamo, o governo de Trump admitiu que 50 deles não tinham antecedentes criminais, além do fato de terem ingressado sem documentação nos Estados Unidos.
Prisão sem fundamento legal
Enquanto isso, cinco senadores do Partido Democrata, liderados por Dick Durbin, de Illinois, enviaram uma carta a Donald Trump, denunciando a transferência de migrantes para a Baía de Guantánamo como “ilegal e injustificada”. A carta classifica a medida como “sem precedentes e prejudicial para a segurança nacional, os valores e os interesses estadunidenses”, e acrescenta:
“Não existe fundamento nas leis migratórias para transferir pessoas não cidadãs presas nos Estados Unidos para um local fora do país para sua detenção antes de ou com o propósito de realizar procedimentos de expulsão.”
Uma nova investigação revela como a empresa privada responsável pela administração do centro de detenção de migrantes em Guantánamo tem um histórico de violações aos direitos humanos em outros centros de detenção nos Estados Unidos. O conglomerado se chama Akima e possui mais de 40 filiais, além de mais de 2 mil contratos com o governo dos EUA. No ano passado, o governo de Joe Biden concedeu a uma filial da Akima um contrato para administrar o centro de detenção de migrantes em Guantánamo.
Falamos com o jornalista José Olivares, autor do artigo publicado no The Guardian intitulado “Empresa dos Estados Unidos que administra a prisão de migrantes de Guantánamo foi acusada de abusos aos direitos humanos“.
Guantánamo: entenda a centenária e injusta ocupação do território cubano pelos EUA
Amy Goodman: José, o que sua investigação revelou?
José Olivares: O que precisamos reconhecer é que a base de Guantánamo, localizada em Cuba e operada pelo Exército dos Estados Unidos, tem uma longa história de violações aos direitos humanos contra pessoas detidas na prisão militar. Essas pessoas foram capturadas em operações clandestinas ao redor do mundo e submetidas a tortura, maus-tratos e outras formas de abuso.
O que não sabíamos, o que o público quase não sabia amplamente, até a ordem executiva de Donald Trump, é que, por décadas, o governo estadunidense tem detido migrantes em uma prisão separada dentro de Guantánamo. Esse centro é chamado de Migrant Operations Center (Centro de Operações de Migrantes) e está dividido em duas áreas: uma administrada pelo Departamento de Estado e outra pelo Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas (ICE), responsável pelas detenções e deportações de migrantes.
Minha investigação revelou que, no ano passado, o governo de Biden concedeu um contrato à empresa privada Akima Infrastructure Protection, no valor de 163,4 milhões de dólares, para administrar as operações da prisão de migrantes em Guantánamo. Agora, é preciso reconhecer que já por vários anos, desde 2002, o governo federal tem contratado diversas empresas privadas para administrar os operativos ali, neste cárcere de migrantes.
O primeiro contrato foi concedido, em 2003, ao GEO Group, um dos maiores conglomerados de prisões privadas. Posteriormente, a administração foi repassada à MBM Incorporated. No ano passado, a administração do centro foi entregue à Akima Infrastructure Protection, que vale 163,4 milhões de dólares.
Estamos no Telegram! Inscreva-se em nosso canal.
Historicamente, esse centro de detenção tem sido utilizado para aprisionar migrantes do Caribe, principalmente, e que são interceptados no mar por oficiais estadunidenses. Quando detidos nessas circunstâncias, eles são enviados a Guantánamo para serem processados. Em alguns casos, aqueles considerados migrantes protegidos são encaminhados para um terceiro país. Já os que não se enquadram nessa categoria são deportados para suas nações de origem.
Empresa em Guantánamo tem histórico de denúncias
O que minha investigação também revelou é que a Akima Infrastructure Protection, empresa que recebeu o contrato do governo federal para administrar as operações de detenção de migrantes em Guantánamo, gerencia outros centros de detenção de migrantes em diversas partes dos Estados Unidos. Muitos desses centros foram alvo de denúncias e críticas, inclusive do próprio governo federal, por alegações de abusos aos direitos humanos.
Juan González: José, quem está por trás dessa empresa? Como conseguiu obter tantos contratos federais? Você pode nos contar sobre sua história e sobre as personalidades envolvidas, caso existam?
A história dessa empresa é bastante curiosa. A Akima é proprietária de mais de 40 empresas, incluindo a Akima Infrastructure Protection, a Akima Global Services e várias outras. Essas 40 pequenas empresas pertencem à Akima, que, por sua vez, é controlada por outra corporação, chamada NANA Regional Corporation.
Nos anos 1970, o governo federal dos Estados Unidos implementou diversas leis e políticas que criaram 13 corporações empresariais voltadas para nativos do Alasca, como resultado de movimentos sociais e críticas à postura do governo federal em relação às populações indígenas. Essas 13 corporações passaram a receber milhares de contratos do governo.
Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe da nossa lista de transmissão.
Uma delas é a NANA Regional Corporation, dona da Akima. No entanto, a Akima, por meio de suas mais de 40 subsidiárias, gerencia inúmeras operações e contratos federais. Minha investigação revelou, por exemplo, que uma das empresas do grupo trabalha para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, sendo responsável pela manutenção de helicópteros do Exército estadunidense no Oriente Médio e pelo treinamento de diferentes forças militares em diversas partes do mundo.
Além disso, a Akima recebe contratos para administrar centros de detenção de migrantes em vários locais dos Estados Unidos. O interessante é que, por ser uma empresa de nativos do Alasca e possuir dezenas de pequenas subsidiárias, ela se qualifica para obter contratos destinados a pequenos negócios. Assim, mesmo sendo uma corporação gigantesca, com mais de 2 mil contratos federais, a Akima continua a se beneficiar desse status.
Brutalidade contra crianças na Candelária em 1993 é sequela do Rio colonial e da ditadura
Amy Goodman: Gostaria de aprofundar essa questão sobre a Akima. Trata-se de uma corporação indígena do Alasca, mas quem realmente se beneficia?
Sim, a Akima é uma empresa de nativos do Alasca. Os proprietários e acionistas são indígenas, e as participações acionárias são repassadas de geração em geração dentro das famílias. Essas ações não podem ser vendidas ou transferidas, o que permite que a empresa escape de muitas regulamentações do governo federal, pois suas participações acionárias são privadas e de posse exclusiva dos indígenas.
Além disso, no ano passado, a Akima anunciou que seu valor de mercado já ultrapassa dois bilhões de dólares. No entanto, a maior parte dos executivos que dirigem a empresa está baseada na Virgínia, e não no Alasca. Embora o site da empresa a apresente como um empreendimento indígena, muitas das pessoas que aparecem como representantes da Akima parecem ser brancas e não pertencentes às comunidades nativas do Alasca.
Essa estrutura empresarial levanta muitas dúvidas. Graças à forma como a empresa foi organizada, não há transparência sobre quem realmente está no controle. Em teoria, a Akima pertence aos indígenas do Alasca, mas, na prática, há pouca visibilidade sobre os verdadeiros beneficiários e gestores da corporação.
Qual a real situação dos detidos
Juan González: Retomando o tema do centro de detenção em Guantánamo: qual é a situação dos imigrantes detidos ali? Que tipo de acesso eles têm a advogados?
É preciso reconhecer que a base naval do Exército dos Estados Unidos em Guantánamo opera sob grande sigilo, supostamente por questões de segurança nacional. Essa justificativa impede que saibamos detalhes sobre o que acontece na prisão de migrantes e, ainda menos, sobre as condições na prisão militar da base. As informações são extremamente limitadas e, devido à falta de transparência, pouco se sabe sobre a real situação dentro dessas instalações.
É importante destacar que, apesar da intenção do governo de Donald Trump de enviar milhares de migrantes dos Estados Unidos para Guantánamo, organizações civis e entidades que trabalham com migrantes denunciaram a falta de acesso a esses detidos. Essas entidades reivindicam o direito de se comunicar com os migrantes encarcerados, mas o sigilo que cerca a base impede a obtenção de informações concretas.
Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.
Ao analisar os contratos do governo dos Estados Unidos com a Akima, empresa responsável pela administração da prisão de migrantes, descobri que a comunicação dos detidos com o mundo exterior é extremamente limitada. Os migrantes podem fazer pouquíssimas ligações telefônicas e, quando conseguem, suas chamadas são monitoradas por agentes da prisão. Se mencionam algo relacionado à segurança ou algo que tenha a ver com a base militar, interrompem a chamada de forma automática porque são questões de segurança nacional e não querem que essa informação seja revelada.
Ou seja, a informação que sai de Guantánamo é rigorosamente controlada. Sabemos pouco sobre as condições no centro de detenção porque, historicamente, os migrantes presos ali foram deportados para seus países de origem ou enviados a terceiros países como refugiados.
Amy Goodman: José Olivares, pode nos contar mais sobre as violações de direitos humanos de que a Akima é acusada nos centros de detenção que administra nos Estados Unidos?
Sim. Conforme minha investigação, a Akima administra cinco centros de detenção de migrantes nos Estados Unidos: um em Nova York, outro no Texas, um na Flórida, um em Porto Rico e outro no Arizona. Esses centros foram denunciados por maus-tratos e condições degradantes.
Por exemplo, no estado de Nova York, a empresa administra o Buffalo Service Processing Center, onde, no ano passado, 40 migrantes entraram em greve de fome. Em resposta, funcionários da Akima ameaçaram os detidos e os colocaram em celas de isolamento — pequenas, sem janelas e conhecidas como solitary confinement. Organizações civis denunciaram essas práticas. Além disso, há uma ação judicial movida por migrantes detidos nessa unidade, alegando que foram forçados a trabalhar e receberam apenas um dólar por dia.
Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe da nossa lista de transmissão.
Já na Flórida, a Akima administra o Krome North Service Processing Center, que foi investigado pelo Escritório do Inspetor-Geral do Departamento de Segurança Nacional. O relatório da investigação apontou diversas denúncias de uso excessivo de força contra migrantes.
Em um dos casos citados, um senhor que estava detido, encarcerado em um quartinho pequeno, em uma destas celas de “solitary confinement”, e chegaram os oficiais, abriram a pequena janela por onde passam a comida e lançaram gás lacrimogêneo nele — sem que houvesse qualquer ameaça nem para si mesmo nem para os oficiais. Então isso foi um exemplo deste tipo de abuso que foi denunciado por parte do Inspetor Geral do Departamento de Segurança Nacional.
Também vimos que em um cárcere, o Port Isabel Detention Center no Texas, uma unidade tinha condições tão ruins que parte do teto estava desmoronando. Os inspetores do Governo federal recomendaram que este edifício fosse condenado até que possam construir outro.
Amy Goodman: Claramente, em muitas dessas instalações, a empresa contratada pode não se chamar Akima, mas, no fim das contas, é administrada por ela.
Exatamente. O contrato de Guantánamo foi concedido à Akima Infrastructure Protection, enquanto os demais centros de detenção são gerenciados por outra subsidiária, a Akima Global Services. Além disso, a Akima possui diversas outras empresas que prestam serviços ao governo federal em áreas como segurança digital e logística militar.
Amy Goodman: Para esclarecer, seria incorreto dizer que uma pessoa é deportada dos Estados Unidos para Guantánamo, já que essa parte de Cuba está sob controle estadunidense? Ou seja, essa transferência equivale a mover pessoas dentro dos Estados Unidos?
Sim, exatamente. Os migrantes detidos em Guantánamo estão sob a custódia do ICE, do governo federal e do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Amy Goodman: Quero perguntar sobre seu artigo publicado no Drop Site News, intitulado “Biden entregou a Trump o plano para encarcerar 30 mil migrantes em uma prisão privada do ICE na Baía de Guantánamo”. O senhor pode detalhar essa questão?
Sim. O contrato para administrar a prisão de migrantes em Guantánamo foi concedido à Akima no ano passado, durante o governo de Joe Biden. O contrato, no valor de 163,4 milhões de dólares, foi concedido para dar continuidade às operações do Departamento de Segurança Nacional na prisão.
É importante destacar que esse centro de detenção de migrantes existe há décadas e operou sob diferentes administrações, desde George H.W. Bush, passando por Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e depois Joe Biden e outra vez Trump.
Maior genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas: 70 milhões morreram
Independentemente do partido político que ocupe a Casa Branca, empresas privadas continuam recebendo contratos para gerenciar essas operações. O principal objetivo desse centro sempre foi deter migrantes, especialmente caribenhos, interceptados no mar enquanto tentavam chegar aos Estados Unidos.
Estamos no Telegram! Inscreva-se em nosso canal.
Amy Goodman: Minha última pergunta está relacionada ao suposto interesse do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) em reduzir gastos. Se alguém quisesse cortar uma grande quantia do orçamento imediatamente, isso poderia ser feito fechando Guantánamo de vez? Antes dessas transferências de migrantes, apenas 15 homens estavam detidos ali, e o orçamento era de cerca de US$ 500 milhões de dólares. Com a diminuição desse número e a transferência desses homens para diversos países, você acredita que há uma tentativa de reutilizar e manter Guantánamo funcionando como um sumidouro de dinheiro?
Sem dúvida. Foram investidos milhões e milhões de dólares para manter a base militar de Guantánamo. Cuba não reconhece a posse dessa base e não aceita o pagamento do governo estadunidense pelo uso do território. Portanto, a manutenção desse espaço é algo sem muita lógica: apenas 15 pessoas estiveram detidas na prisão militar, mas os custos de manutenção continuam exorbitantes.
Agora, além desse gasto, há também milhões de dólares investidos em um contrato com uma empresa privada para administrar o centro de detenção de migrantes na mesma base. Mas não se trata apenas de Guantánamo: em 2024, o Congresso destinou três bilhões de dólares ao ICE para gerenciar operações em todo o país.
Muitas empresas privadas operam centros de detenção de migrantes nos Estados Unidos, recebendo milhões de dólares do governo federal. No entanto, as condições nessas prisões são extremamente precárias. É importante destacar que esse desperdício de dinheiro para encarcerar pessoas não ocorre apenas em Guantánamo, mas também em diversas outras unidades de detenção de migrantes pelo país.