Pesquisar
Pesquisar

Peru: Há 30 anos, universitários eram vítimas de um dos crimes mais bárbaros do fujimorismo

Em 18 de julho de 1992, um professor e nove estudantes foram sequestrados, torturados e mortos pela então ditadura peruana
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Os ingleses costumam dizer que “o sangue é mais denso que a água”. Uma maneira de reconhecer que os fatos dessa natureza perduram na memória dos povos, e que é virtualmente impossível prescindir deles, apesar do decurso da história. 

Em 18 de julho se cumprem 30 anos de um dos episódios mais horrendos da administração fujimorista: o sequestro, tortura e posterior assassinato de um professor e 9 estudantes da Universidade Nacional de Educação “Enrique Guzmán y Valle” da La Cantuta.

Assista na TV Diálogos do Sul

O fato pontual resulta, no entanto, ligado a uma velha realidade: o menosprezo que a classe dominante sentiu sempre pela carreira docente, e que derivou na subestimação dos professores. Essa deformação perversa subsiste em nosso tempo. 

Não é absolutamente casual que um dos poucos atos que pode concretizar José de San Martín quando governou brevemente o Peru em seus primeiros meses de Independência, foi a criação da primeira Escola Normal, fundada em 6 de julho de 1922. Com esse gesto, o Libertador deixou constância de uma ideia: a liberdade é consubstancial à educação. 

O povo escravo será sempre ignorante e bárbaro. Quando sua inteligência desperte, se converterá em um povo livre porque haverá sentido a força de seu pensamento e a capacidade de sua projeção humana. Vale dizer, terá consciência de sua cultura e de seu destino. 

Os de “cima” o sabem e por isso buscam manter e perpetuar a ignorância das massas. Parodiando a senhora María del Carmen Alva, são conscientes de que “um índio lido, é um índio perdido”. E se um dos “de baixo” quiser ser professor, pior ainda. 

Isso explica o fato dessa Escola Normal não alcançasse voo nunca, e que tivesse sempre um funcionamento acidental, irregular e episódico. Inclusive no século passado sofreu sempre o ataque sustentado da reação.

Em 18 de julho de 1992, um professor e nove estudantes foram sequestrados, torturados e mortos pela então ditadura peruana

A Nova Democracia
Fujimori e Pinochet

Instituto Pedagógico Nacional

Recordemos que em 1931 o Instituto Pedagógico Nacional – continuador dessa Escola – foi fechado sob o argumento de ser “um ninho de comunistas”. José Antonio Encinas foi uma das vítimas da política de ódio galopante que surgiu da entranha dos poderosos. 

Esse Pedagógico – reaberto em 1951 com o nome de Escola Normal Central – converteu-se pelo império da lei 15215 em uma entidade superior com rango universitário, graças a uma disposição arrancada a um Parlamento de saída, em dezembro de 1955. 

Peru caminha para extinguir idade máxima para docência em universidades públicas

Quando os “de cima” se deram conta do ocorrido, lhe declararam uma guerra aberta, sustando na Câmara por um parlamentar violento, Celestino Manchego Muñoz, célebre por sua incultura e destacado Cacique político huancavelicano que sem nenhum prurido perguntou desde sua cadeira “para que querem os professores ser doutores?”

Foi essa guerra – e esse ódio contido – o que levou ao Governo da “Convivência” a tirar de La Cantuta sua categoria Universitária e sua Autonomia em abril de 1960, abrindo passo à Primeira Grande Greve Nacional Universitária que o país conheceu. 

Como se recorda, na conjuntura, o ódio se impôs, embora não completamente, o que permitiu que em 1964 e graças à Segunda e última Greve Nacional Universitária, a ENS recuperasse seus status e se convertesse depois em Universidades Nacional de Educação.

No meio esteve outra agressão inqualificável: em outubro de 1962 o governo militar de Pérez Godoy interveio em La Cantuta e a declarou em “reorganização” depois de “descobrir” que era “um centro de agitação comunista”.

30 anos após golpe sanguinário e corrupto, fujimorismo segue dando cartas no Peru

A ocupação policial e a expulsão do “culpado” dessa ação “perversa”, consumaram o propósito daqueles que estavam empenhados em regulamentar a educação para pô-la aos seu serviço. 

Também no caso, foi como pretender adoçar a água do mar com uma colherada de açúcar.

Regime de Fujimori

Mas foi o regime de Fujimori que consumou a afronta maior. Indignado porque os estudantes o vaiaram no dia em que “visitou” a Universidade, organizou sua vingança, e se valeu para isso de um Comando Militar Clandestino, o Grupo Colina, para o qual havia disposto uma “preparação especial”. 

Ela aconteceu na noite de 18 de julho de 1992 quando os fardados entraram nos dormitórios estudantis e de docentes e sacaram violentamente o professor Hugo Muñoz e 9 estudantes.

Como se pode estabelecer depois, eles foram conduzidos pela variante Ramiro Prialé, forçados a descer do veículo militar que os transportava, golpeados e cruelmente torturados, e finalmente executados.

A covardia do regime não teve limites. Seus porta-vozes, sabendo perfeitamente o ocorrido, falaram de um “auto-sequestro”, e sustentaram cinicamente que os citados haviam “fugido para incorporar-se a colunas senderistas”, que só existiam na febril imaginação dos governantes de então. 

Héctor Béjar | No Peru, temos pagado preço de 60 anos de governos inúteis e neoliberais

Foi a coragem de uns povoadores que viram o ocorrido; a pertinácia de jornalistas como Edmund Cruz, que o investigaram; e a força de familiares das vítimas, como Raida Cóndor, Gisela Ortiz, Fedor Muñoz e outros, o que permitiu que tempos depois assomasse a verdade. 

Hoje o Peru inteiro sabe quais foram os assassinos neste jogo sangrento e se pergunta se ainda estarão atrás das grades. Porque a impunidade dominou uma vez mais o solo peruano. 

Mas apesar deles, os caídos em 18 de julho de 1992, vivem na memória do nosso povo.

Gustavo Espinoza M. é colaborador da Diálogos do Sul em Lima, Peru.
Tradução de Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na TV Diálogos do Sul


Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:

  • PIX CNPJ: 58.726.829/0001-56 

  • Cartão de crédito no Catarse: acesse aqui
  • Boletoacesse aqui
  • Assinatura pelo Paypalacesse aqui
  • Transferência bancária
    Nova Sociedade
    Banco Itaú
    Agência – 0713
    Conta Corrente – 24192-5
    CNPJ: 58726829/0001-56

       Por favor, enviar o comprovante para o e-mail: assinaturas@websul.org.br 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

LEIA tAMBÉM

Ultradireita sabota reforma tributária de Petro crucial para saúde, educação e meio ambiente
Colômbia: ultradireita sabota reforma tributária de Petro crucial para saúde e educação
10 anos da libertação dos 5 heróis cubanos presos por lutar contra terrorismo imperialista (1)
10 anos da libertação dos 5 heróis cubanos presos por lutar contra o terrorismo imperialista
Plano de ajude ao Haiti receba apenas 42% da ajuda financeira necessária
Plano de ajuda ao Haiti recebe apenas 42% da ajuda financeira necessária
Navio da amizade Xi Jinping convida América Latina à construção do novo sistema global
Navio da amizade: Xi Jinping convida América Latina à construção do novo sistema global