Na Guatemala, por exemplo, um pequeno curral onde pululam racistas, classistas, xenófobos, homofóbicos e corruptos, ser negro é pior que ser indígena; o negro está no último lugar não só das classes sociais, também dos direitos humanos. Ninguém quer ter um amigo negro, um empregador negro, um docente negro, uma esposa negra, filhos negros. E embora pareça incrível porque os povos indígenas também foram explorados e excluídos, eles tampouco querem relacionar-se com os negros. Isso seria impensável!
Os negros só servem para uma coisa, morrem por ter um amante negro, mas jamais teriam uma esposa negra, muito menos filhos negros, e com isso não falo só da Guatemala, é no nível mundial, mas na América Latina de mente colonizada é algo muito visível.
Latinos e negros recebem tratamento diferente dos brancos que imigraram aos EUA em 1900
Muito se fala de ser negro nos Estados Unidos, porque claro, há que bater nos Estados Unidos por onde se possa já que nós somos incapazes de enfrentar-nos ao espelho e ver o quão racistas somos; é melhor sempre culpar a outro.
Nós, canalhas, calamos o que é ser negro na América Latina, que o contem as comunidades afro de Colômbia e a pobreza à qual foram submetidos durante décadas, à violência, aos desaparecimentos forçados e ao roubo de terra descarado do governo que os obriga à peregrinação.
Que seja contado pelas favelas no Brasil não só em tempos de Bolsonaro. Carolina Maria de Jesus teve coragem de relatar como é viver na favela e ser submetida à pobreza e à exclusão; hoje, as imagens falam por si mesmas e mesmo assim não há reação.
Imagens… se assim tratam os migrantes nas fronteiras quando há câmeras, imaginemos o que fazem com eles quando ninguém está vendo para denunciá-los; não me refiro só aos Estados Unidos, que não o estou defendendo; trato, apenas, de expor que nós, os grandes humanistas latino-americanos também temos uma dupla moral de couro grosso e utilizamos à nossa conveniência o lombo arrebentado do indocumentado quando de tirar vantagem se trata.
Por que quem perguntou como se chama o jovem haitiano que recebe as chicotadas do agente da Patrulha Fronteiriça? Se ele tem família? O que o levou a deixar seu país e chegar até o Texas? Como foi seu percurso? Só expusemos o machão negro, quanto mais escuro melhor, e lhe arrancamos de golpe a identidade e deixamos a imagem clara do homem branco com o chicote; aí milagrosamente nos refrescou a memória e somos conhecedores da história de opressão dos negros nos Estados Unidos. Mas a dor! Não a dos afros na América Latina!
Na Guatemala ninguém quer ter um amigo negro, um empregador negro, um docente negro
Porque está aí a República Dominicana, país de pretos que se acreditam caucasianos como o resto da América Latina; é claro que em 2013, em tempos de um governo humanista se tirou a identidade aos filhos de haitianos indocumentados nascidos no país. Foram mais de 250 mil que ficaram no limbo. Aí não saltou a América Latina humanista, até quando Trump o quis fazer nos Estados Unidos. Dupla moral ou desmemória?
Mas voltando ao tema migratório, no México, em agosto, o diretor de uma Estação Migratória em Tapachula (do Instituto Nacional de Migração) foi captado chutando a cabeça de um migrante que viajava com a caravana de centro-americanos que tratavam chegar aos Estados Unidos. López Obrador saiu dizendo que já tinha sido removido do seu cargo, quando por aí se divulgou a foto.
Mas na América Latina não se atacou AMLO por essa imagem desgarradora, nem pelas políticas de seu governo em assuntos de migrantes indocumentados, que em realidade não variaram muito em comparação com os governos neoliberais de anos anteriores. Enquanto no Texas as portas eram fechadas aos migrantes haitianos, do lado do México sobrevoava um helicóptero e eram pegos por montões para serem deportados imediatamente ao seu país de origem.
Mas as imagens das dúzias de ônibus em Coahuila a só alguns metros do acampamento não foram expostas, porque se trata do “irmão” López Obrador que na reunião da Celac disse aos participantes (onde cabe resgatar com um aplauso em pé a participação de Cuba e da Venezuela, porque as coisas não são em branco e preto) que “México é a casa de todos”. Menos dos migrante indocumentados, claro está.
Enfim, enquanto palavras vão e palavras vêm, são mundos de haitianos atravessando a América Latina; que governo humanista que denuncia o neoliberalismo e a política externa dos Estados Unidos lhes dirá que em seu país têm as portas abertas para que tenham casa, trabalho e paz?
Que isso é o que chegam buscando aos Estados Unidos os migrantes indocumentados sem importar sua cor. Que governo democrático latino-americano lhes dirá que “minha casa é sua casa” a esses negros dos que se sentem tão orgulhoso quando falam da Haiti valente que eliminou a escravidão?
Ou somos cretinos que atiram a pedra e escondem a mão? Onde está a devoção a Che Guevara, a Martí, a Chávez, a Monsenhor Romero, a Evita, a Jacobo Árbenz, a Salvador Allende, a Perón, às Adelitas, a Emiliano Zapata, a Mariátegui, a Sandino?, a Fidel de que tanto falam?
Qual é o humanismo dos grandes defensores da memória histórica latino-americana agora que seus irmãos haitianos os necessitam? Ou existem só quando os Estados Unidos os violenta na fronteira? Não se trata só de abrir as fronteiras para que passem, isso é lavar as mãos, trata-se de se envolver, oferecer um lugar para viver, trabalho e direitos.
Porque boiadeiros somos e um dia, oxalá assim seja, o sangue haitiano da Mamãe África floresça em cada rincão da América Latina racista que hoje lhes dá as costas e que falem o creole com orgulho os descendentes daqueles que hoje são humilhados nas ruas polvorentas da América Latina de mente colonizada.
* Colaboradora de Diálogos do Sul de território estadunidense
** Tradução: Beatriz Cannabrava
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