As duas visões históricas antagônicas sobre a integração americana, aquela que abraça a Doutrina Monroe de 1823, e sua derivação, o pan-americanismo de cunho estadunidense, e a do bolivarianismo – unionismo e multilateralismo com apego aos princípios das cartas de fundação das Nações Unidas e da Organização de Estados Americanos (OEA) -, tornaram a enfrentar-se no México em 18 de setembro, durante a sexta Cúpula de Presidentes e Chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac).
No contexto de uma reconfiguração geopolítica marcada pela emergência da China e da Rússia como atores que desafiam a hegemonia do sistema capitalista mundial (Estados Unidos), e autoexcluídos por decisão própria os três países mais alinhados com Washington: Brasil, Colômbia e Chile, coube aos presidentes oligárquicos e neoliberais de Paraguai e Uruguai, Mario Abdo e Luis Lacalle, respectivamente, introduzir no seio do que deveria ser uma cúpula pragmática e sem ideologia – um diálogo entre mandatários com posições políticas diversas, como tinham acertado os chanceleres dos 33 países participantes −, a retórica da guerra fria posta em prática pela Casa Branca, sintetizada pelos aparelhos de propaganda do império e seus repetidores locais na falsa contradição democracia versus ditadura.
Integração regional retoma folego com relançamento da CELAC
Fiéis às posições de força − unilaterais, extraterritoriais e à margem do direito internacional − de sucessivas administrações da Casa Branca, Abdo desqualificou a presença na cúpula do presidente constitucional e legítimo da Venezuela, Nicolás Maduro, e o uruguaio Lacalle expressou sua “preocupação” pelo que acontece em Cuba, Nicarágua e Venezuela.
À margem dessa escaramuça descortês e grosseira diante do anfitrião: o presidente Andrés Manuel López Obrador, a Declaração da Cidade do México realça o papel da Celac como “mecanismo de articulação, unidade e diálogo político” que inclui os 33 países da América Latina e do Caribe, na base dos “laços históricos, dos princípios e valores compartilhados […] da confiança recíproca, do respeito às diferenças, da necessidade de enfrentar os desafios comuns e avançar na unidade na diversidade a partir do consenso regional”.
Celac
Cúpula de Presidentes e Chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac)
O ponto 3 da declaração reitera o compromisso com “a construção de uma ordem internacional mais justa, inclusiva, equitativa e harmônica”, baseada no respeito ao direito internacional e aos princípios da Carta da ONU, entre eles “a igualdade soberana dos estados, a solução pacífica de controvérsias, a cooperação internacional para o desenvolvimento, o respeito à integridade territorial e a não intervenção nos assuntos internos dos estados”.
Reafirma o compromisso com “a defesa da soberania e do direito de todo Estado de construir seu próprio sistema político, livre de ameaças, agressões e medidas coercitivas unilaterais”.
O ponto 4 reafirma que o processo histórico de consolidação, preservação e exercício pleno da democracia na região “é irreversível”, não admite interrupções nem retrocessos e continuará marcado pelo respeito aos “valores essenciais” da democracia.
Reafirma o acesso ao poder e seu exercício com sujeição ao estado de direito; o respeito às faculdades constitucionais dos poderes do Estado e o diálogo construtivo entre eles; a realização de eleições livres, periódicas, transparentes, informadas e baseadas no sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo, da participação cidadã, da justiça social e da igualdade.
Em outra implícita alusão aos Estados Unidos, o ponto 20 reitera o repúdio “à aplicação de medidas coercitivas unilaterais contrárias ao direito internacional”, e reafirma o compromisso “com a plena vigência do direito internacional, a solução pacífica de controvérsias e o princípio de não intervenção nos assuntos internos dos estados”.
Outro ponto significativo, que alude às diretrizes da guerra não convencional do Pentágono, ao terrorismo de Estado e às ações encobertas da Agência Central de Inteligência (CIA) é o 41, que expressa “o profundo repúdio a todo ato de terrorismo em todas as suas formas e manifestações, sem importar suas motivações, financiamento, lugar e pessoa que o tenha cometido”; reafirma a necessidade “de negar abrigo, liberdade de operação, circulação e recrutamento e apoio financeiro, material ou político a grupos terroristas ou a todo aquele que apoie ou facilite o financiamento, planejamento ou preparação de atos terroristas ou participe ou tente participar destas atividades”, e, em uma alusão à Colômbia de Iván Duque e/ou a um eventual disparate de Jair Bolsonaro, renova o compromisso de “adotar as medidas práticas que sejam necessárias para que nossos territórios não sejam utilizados para abrigar instalações terroristas ou acampamentos de treinamento nem para preparar ou organizar atos terroristas contra outros Estados ou seus cidadãos ou incitar sua realização”.
Reitera o repúdio “à aplicação de medidas coercitivas unilaterais (sanções) contrárias ao direito internacional”, incluindo “as listas e certificações” (dos EUA) que afetam países da América Latina e do Caribe.
O ponto 42 reafirma o uso pacífico das tecnologias da informação e da comunicação, e pede à “comunidade internacional” (leia-se EUA) que evite “atos unilaterais” à margem da Carta da ONU, como aqueles que “têm como objetivo subverter sociedades ou criar situações com potencial de fomentar conflitos entre estados”.
Em uma declaração especial, a Celac solicitou ao presidente Joe Biden modificar “substancialmente” a aplicação do bloqueio comercial, econômico e financeiro contra Cuba e ao Congresso dos EUA “eliminá-lo”, repudiando a “execução de leis e medidas extraterritoriais” (como a Lei Torricelli) que atentam contra a soberania e os interesses de terceiros países.
A discussão sobre o futuro da ingerencista OEA ficou para outra ocasião e a Celac ressurgiu como ator contra hegemônico.
Carlos Fazio, é jornalista do La Jornada
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