Entramos no mês de junho e, se fosse possível viajar ao passado através de uma máquina do tempo até o mesmo mês, mas quarenta e cinco anos antes, estaríamos diante de um lançamento que marcaria para sempre a música popular brasileira.
Estou me referindo ao disco Alucinação, do cearense Antônio Carlos Belchior (ou somente Belchior, como é conhecido por todas, todos e todes nós até hoje), lançado em junho de 1976.
Alucinação é o segundo álbum de estúdio do cantor e compositor Belchior. Foi lançado pela gravadora Polygram, por meio do selo Philips, que depois se tornou a Universal Music.
Estávamos em uma época na qual os selos e as gravadoras davam a linha e detinham o poder do mercado musical no Brasil. Isso mudou.
Hoje em dia, devido à globalização e `à intensificação do uso e do acesso às novas ferramentas de comunicação tecnológicas, as gravadoras perderam muito espaço no show business e no mercado, gerando novas formas e contratos de trabalho no meio artístico, deixando em evidência para a população, os trabalhos e selos independentes.
Na década de 1970, além de Belchior, artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Milton Nascimento, entre tantas e tantos outros (as), criavam suas composições no efervescente cenário, onde a criação e diálogo eram intensos na cena musical que se apresentava na época.
Festivais, discos, espaços noturnos onde os artistas se encontram e compartilham suas ideias, eram formas rotineiras que geraram pérolas da música brasileira que até hoje, escutamos e levamos como referência.
Nesse cenário, o cearense Belchior assume com sua identidade e seu jeito de abordar temas como política, amor e juventude, um lugar de destaque principalmente dentro da juventude e dos movimentos engajados de esquerda que enxergavam e enxergam em sua obra a liberdade dos cabelos ao vento e do ser desprendido e desapegado, mas apaixonado pela vida.
O álbum Alucinação traz mensagens e ideias compatíveis com tudo o que o artista dizia, muitas vezes como o próprio autorretrato de sua pessoa, destilando rebeldia, canto torto, melodias afiadas e mensagens cortantes como uma navalha despindo a pele de um sistema conservador e hipócrita.
A capa do disco, feita a partir de uma foto do fotógrafo Januário Garcia que fotografou o artista de um ângulo, fazendo transparecer o sentido de liberdade, foi trabalhada a partir da técnica de solarização, também conhecida como Efeito Sabattier. Essa técnica fotográfica desenvolvida pelo francês Armand Sabattier em 1862, consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica. O efeito era obtido através da rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento.
O disco, produzido por Marco Mazzola, vendeu 30 mil cópias no primeiro mês, sendo contabilizado no total de vendas 500 mil cópias. Hoje, com as novas formas culturais e costumes, encontramos grande dificuldade para vender um único disco.
Na época, eram os discos, adquiridos por seus consumidores que corriam por todo o mundo. Existia uma preocupação, um cuidado desde a capa e do encarte até o vinil. Tudo isso fazia parte da obra, complementando o que era o carro chefe do produto: a música.
Reprodução
Bem, vamos retornar aos comentários sobre Alucinação. Primeiramente, precisamos citar aqui que três canções que já haviam consagrado Belchior e compuseram o repertório do disco: Como nossos Pais, Apenas um Rapaz Latino Americano e Velha Roupa Colorida, o que contribuiu para a “alucinante” venda no primeiro mês das 30 mil cópias.
O artista recebeu críticas por parte da imprensa como também muitos elogios, reconhecendo o trabalho como um diamante da música brasileira. E realmente é, pois, assim como o disco, Belchior se tornou atemporal, escutado e reconhecido por tantas gerações que vieram depois.
Canções como À Palo Seco, Sujeito de Sorte, Antes do Fim, entre outras, fizeram com que o disco se tornasse uma grande referência. Mas em Alucinação, canção que dá título ao trabalho, o artista canta o que vê, o que pensa, o que sente, como uma alucinação.
Em 1977, em entrevista à Revista Pop, Belchior falou sobre o título Alucinação, dado ao disco: “Viver é mais importante do que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”
O artista não deixava de fazer referência ao golpe militar e ao AI-5, de 1968, lembrando o que viveu, como a censura, a privação da liberdade de expressão e o exílio. Aliás, o próprio Belchior se autoexilou por diversas vezes em sua vida, transitando por alguns dos países da América Latina e adquirindo cada vez mais experiência e vivência, além de compreender a necessidade da integração social, política e econômica latino-americana.
Como disse no início deste artigo, a questão da máquina do tempo que tanto ansiamos, foi resolvida. Com as novas ferramentas de divulgação e comunicação, passamos a ter acesso a diversos discos e canções, assim sendo, o disco Alucinação de Belchior se encontra (na íntegra) na web.
Além disso, muitos (as) intérpretes e cantores (as), (re)gravaram obras de Belchior, dando novas leituras e identidades ao belo trabalho. Uma das últimas notícias sobre sua obra está relacionada à artista, cantora e compositora com destaque na nova geração da música brasileira Ana Cañas.
No período de isolamento social que estamos vivendo devido à pandemia da covid que vai se arrastando cada vez mais por conta da falta de responsabilidade e insanidade política, social e sanitária do governo federal, muitos (as) artistas passaram, além de utilizar (intensamente) as novas ferramentas de comunicação na web, a experimentar exaustivos processos de criação devido às ideias poéticas que os (as) arrebatam a todo instante.
Esse é o caso da cantora Ana Cañas, dona de uma das mais belas vozes da música brasileira na atualidade e artista de uma criatividade única. Ana, a partir de uma live onde interpretou canções de Belchior, foi acionada por uma grande parte do seu público que sugeriu à cantora que registrasse, em um álbum, as canções do artista dentro da sua leitura e interpretação.
Assim, a artista iniciou um processo de financiamento coletivo que levou o público, além de se engajar intensamente no processo, a contribuir para que a obra pudesse sair das ideias e se tornar realidade.
Ana acaba de lançar o primeiro single desse trabalho, junto com um videoclipe de delicadeza inigualável, repleto de simbologia e cenas poéticas. A canção escolhida por Ana para ser a primeira do trabalho foi Coração Selvagem.
O clipe, dirigido por Ariela Bueno, traz cenas poéticas e envolventes da cantora com o ator Lee Taylor. Eles interagem a cada verso da canção por meio dos seus corpos em movimento, numa espécie de dança cênica.
O corpo da cantora e do ator são explorados (artisticamente) nos envolvendo com diversas possibilidades individuais e, ao mesmo tempo, unificando-os, fazendo-nos ver através das imagens criadas como apenas um único corpo toda a poética da canção.
A pulsação do clipe bate em sintonia com a excelente (re)leitura da música, potencializando as personagens e a forte mensagem que tem a obra, assim como todas as composições geniais de Belchior.
Belchior é e sempre será um artista atemporal e continuará influenciando diversas gerações que ainda chegarão. Por meio de suas canções (hoje acessíveis através da internet) e/ou por meio de artistas como Ana Cañas que com seu talento e capacidade poética, fazem suas versões nos presenteando com obras-primas de indubitável qualidade é que Belchior e seu universo alucinante e selvagem viverão eternamente entre nós.
Para conferir mais sobre o clipe de Ana Cañas, acompanhe no domingo dia 6 de junho um papo com a cantora na página da Sacada Cultural BR TV no YouTube, a partir de 20 horas.
* Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latinoamericana
Instagram: @danilonunes013
Facebook: @danilonunesbr
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