De repente, na segunda-feira 9 de novembro passado, os congressistas foram passando a voz para tirar o presidente da República Martín Vizcarra, acaudilhados por alguns que desejavam tomar o Poder Executivo e estavam entre os 68 com processos penais em curso. Quando tiveram o votos que necessitavam (87) foram à votação e chegaram a 105.
Um êxito rotundo!
Ou, melhor, uma vitória de Pirro, porque todo mundo entendeu que haviam dado um Golpe de Estado; e os jovens começaram a encher as ruas. No sábado, 14 de novembro à tarde e à noite as multidões percorriam o centro de Lima e de outras cidade do Peru.
O novíssimo presidente da República, um obscuro político de turvo rosto que assumiu este cargo por ser presidente do Congresso, falou com seus novíssimos presidente do Conselho de Ministros e ministro do Interior e, verossimilmente, acordaram meter bala nos manifestantes, o que o chefe do operativo policial cumpriu, fazendo matar dois estudantes e trabalhadores de 22 e 24 anos que gritavam seu protesto.
É possível que Vizcarra tenha pensado que não se chegaria aos 87 votos para sua vacância quando no dia 9 de novembro fez sua exposição de defesa no Congresso. Mas, consumada a aprovação da vacância, não teve coragem para se opor e preferiu ir embora para casa, borrando o prestígio que havia alcançado com um referendo de 2018 e a dissolução do Congresso de 2019. Teria bastado pedir ao Tribunal Constitucional que decidisse se a vacância era legítima (Constituição, art. 200º-4 e 203º) e esperar a sentença, respaldado pelos manifestantes que teriam ocupado as ruas contra o golpe de Estado.
No domingo, 15 de novembro, a opinião pública, nas ruas e nos lares, expulsou o novo pretenso presidente da República, obrigando-o a renunciar, e o jogo continuou no Congresso. E, a tudo isso, os dirigentes das centrais sindicais se mantiveram calados.
Na realidade, a vacância decapitou o Poder Executivo.
É a primeira vez que isso acontece no Peru, embora a figura da vacância presidencial exista desde a Constituição de Huancayo de 1839, repetida com a mesma fórmula, difusa e arbitrária, nas constituições seguintes até a atual. A recuperou o grupo fujimorista após alcançar 73 cadeiras no parlamento nas eleições de 2016 e a brandiu desde então contra o presidente da República. Sua tentativa de vagar o presidente Kuczynski fracassou por sua renúncia, mas continuou ameaçando com ela o presidente Vizcarra. Depois das eleições de 2019 os grupos de parlamentares direitistas e aventureiros, levados por diversas motivações, se empenharam em utilizá-la.
Flickr / Presidência do Peru
Ex-presidente Manuel Merino anunciando sua renúncia ao cargo de Presidente da República do Peru.
Segundo a Constituição, a presidência da República fica vaga por “permanente incapacidade moral ou física, declarada pelo Congresso” (art. 113º-2).
O que é a incapacidade moral? Nenhuma norma a define e tampouco se requerem provas. Portanto, pode ser o que ocorre aos congressistas, atendendo às instruções de alguém, por própria elucubração ou reproduzindo as informações dos meios ou as declarações de certas testemunhas ou infiéis. Correlativamente, o art. 89º-A do Regulamento do Congresso estabelece um procedimento muito rápido para declará-la. Basta a apresentação do pedido. Não se alude a provas. Cita-se o presidente para defender-se “até por sessenta minutos” e se vota. Com dois terços do números de congressistas se aprova a vacância. E está feito.
É legal isto?
Desde o primeiro ano de Direito se sabe que o princípio de César Beccaria Nullum crimen nulla poena sine lege —não há crime sem lei que a tipifique previamente— é absoluto e está na base de toda democracia, cuja expressão é o Estado de Direito. Este princípio forma parte do elenco de direitos que todo ser humano tem e o proclama a Constituição com os termos seguintes: “Ninguém será processado nem condenado por ato ou omissão que a tempo de cometer-se não esteja previamente qualificado em lei, de maneira expressa e inequívoca, como infração punível” (art. 2º-d).
Portanto, a vacância não pode ser política; jamais deve proceder porque certo número de congressistas se põe de acordo para decidi-la e, menos ainda, sem provas verificadas pela Justiça.
Alguma lei definiu a imoralidade?
A moral e seu oposto, a imoralidade, ficaram como noções subjetivas inerentes a cada grupo e cada pessoa. Os fatos imorais são fatos contrários ao bem, à justiça, que são também nações difusas surgidas em certos momentos e lugares.
Desde que Emmanuel Kant, na segunda metade do século XVIII, relegara a moral ao mundo das ideias puras foi afastada como regra de conduta obrigatória, embora possa inspirar determinadas normas. Desde então, a noção de norma legal se autonomizou de moral e da religião, e com a Revolução Francesa de 1789, a lei foi congraçada como o poder dos cidadãos, iguais ante a lei, com o conteúdo e os procedimentos de aplicação que eles instituíssem por si ou por seus representantes.
Com respeito ao presidente da República, em atenção à sua alta investidura confiada pelos cidadãos, criou-se um modo especial de submetê-lo a processo se houver causas legais para isso. “O Presidente da República só pode ser acusado, durante seu período, por traição à pátria; por impedir as eleições presidenciais, parlamentares, regionais ou municipais; por dissolver o Congresso, salvo nos casos previstos no artigo 134º da Constituição, e por impedir sua reunião ou funcionamento, ou os do Jurado Nacional de Eleições e outros organismos do sistema eleitoral” (art. 117º). Pelo cometimento de fatos delitivos, a acusação fiscal deve esperar que termine seu mandato.
A vacância por incapacidade moral não se ajusta às regras indicadas e fica no texto constitucional como uma norma parasitária, um resíduo histórico anacrônico e inaplicável. O art. 89-A do Regulamento do Congresso da República, que assinala um procedimento para vagar o presidente da República, não prevalece frente à Constituição (art. 51º).
Por conseguinte, a decisão de vagar o presidente da República adotada pelo Congresso da República está viciada de nulidade. “O Poder do Estado emana do povo. Aqueles que o exercem o fazem com a limitações e as responsabilidades que a Constituição e as leis estabelecem”. (Const. art. 45º). “São vícios do ato administrativo, que causam sua nulidade de pleno direito, os seguintes: 1. A contravenção à Constituição, às leis ou às normas regulamentares” (TUO da Lei 27444, Lei do Procedimento Administrativo General, art. 10º, aplicável ao Poder Legislativo, art. 1º-2).
Não creio que este raciocínio seja familiar ao Tribunal Constitucional pela formação de seus membros, suas predileções políticas e seus temores.
Na atual Constituição francesa a vacância da presidência da República, por causas legais, é decidida pelo Conselho Constitucional e, após declarada, dá lugar à eleição de novo presidente dentro dos 21 e 35 dias seguintes; enquanto isso a função presidencial fica a cargo do presidente do Senado (art. 7º).
Em nosso país, este aspecto deveria ser modificado, assinalando que a vacância da presidência da República e dos congressistas só deve proceder por fatos definidos pela lei como delitos, comprovados pela Corte Suprema e decidida pela Tribunal Constitucional, ou seja, se deveria judicializar o processo e afastá-lo totalmente dos intenções políticas.
Por seus votos os conhecereis.
*Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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