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Silêncio não é do governo, mas da indústria monopolista financeira e sua face cultural

O “ame-o ou deixe-o”, deixou de ser uma ordem arbitrária para tornar-se uma prática autoritária cotidiana
John Kennedy Ferreira
São Paulo (SP)

Tradução:

Tornou se comum — especialmente entre os jovens — quando não gostam de uma objeção, ideia ou opinião que vá em direção contrária ao seu ponto de vista, “cancela lá”. Isso mesmo, é como se aquilo não existisse, a pessoa a opinião, a ideia… fecha-se assim qualquer possibilidade de debate, qualquer possibilidade de diálogo, estabelece-se na prática a força como argumento.

Isso é válido para grupos de direita, feministas, centro, LGBGTQ+, esquerda e etc.

Encerra se o diálogo. O “ame-o ou deixe-o”, deixou de ser uma ordem arbitrária de uma ditadura para tornar-se uma prática autoritária cotidiana que anda em todos os poros da sociedade.

Faz alguns anos um jovem cantor sertanejo (filho de um famoso cantor sertanejo) capotou o carro em Mina Gerais, estava em alta velocidade, seu estado era grave transferido a um hospital de ponta em São Paulo contou com a aparelhagem mais moderna do planeta, uma equipe de 20 médicos, outros tantos enfermeiros e técnicos altamente capacitados ao custo 100 mil dólares a diária para manter a sua vida. Em frente ao hospital centenas de fãs choravam e oravam; a imprensa fazia plantão e dava boletins diários nos telejornais. Perguntado ao pai sobre o estado de seu filho “está na mão de Deus!”

O “ame-o ou deixe-o”, deixou de ser uma ordem arbitrária para tornar-se uma prática autoritária cotidiana

Reprodução: Twitter
Almir Blanc valeceu no ultimo 4 de maio de 2020

Conheci Plínio Marcos quando era jovem, sempre ia na Fundação Escola de Sociologia e Política, na Vila Buarque, vender livros. Toda vez q estava sem dinheiro ia na Sociologia, vendia um ou dois livros e ia embora, algumas vezes bebia uma cerveja com os jovens estudantes discutia samba, política, literatura, a vida.

O tropicalista Waly Salomão, um dos maiores poetas do Brasil, vivia no roda viva e outros programas importantes falando de poesia, arte, literatura e cultura, publicou diversos artigos, livros viveu sempre na pindaíba e só teve 1 emprego na vida como assessor do Ministro Gilberto Gil em 2002. Em 2003, um pouco depois de apresentar o projeto de que o livro deveria constar na cesta básica de todo brasileiro, faleceu!

A bailarina e atriz Mariana Porto, que fã e amiga de Aldir Blanc foi umas primeiras a saber de sua doença, ligou pra Deus e o Mundo pedindo dinheiro, indicação e ajuda por um hospital. Sua mobilização, não foi a única, mas somou e gerou um esforço legal: diversas pessoas das artes ou não, se dispuseram a ajudar.

As pessoas e suas artes são maltratadas numa terra em que se ganha dinheiro como aventureiros e proxenetas…o poeta Aldir Blanc foi somente mais um.

Cartola, nosso Mozart, gravou o primeiro disco com 73 anos, antes disso passou por diversos apuros: foi preso, vendedor, mascate, lavador de carro nas ruas do centro do Rio. Tempos depois Marcus Pereira, o produtor que bancou o disco dele (e de outros), se suicidou, não tinha como pagar as contas e o esforço que fez para distribuir os discos de Cartola, Carlos Cachaça, e outros imortais.

Em 2019 artistas e músicos sertanejos foram ao presidente Bolsonaro pedir que fosse tirado de seus shows o direito a meia-entrada para estudantes, pessoas com deficiência e jovens de baixa renda, o presidente agradeceu literalmente emocionado e disse que sempre aprendeu muito com os músicos e as músicas sertanejas e que se esforçaria para ajudar na reivindicação.

Em meio a inundação nos bairros periféricos do Rio, Zeca Pagodinho entregou cestas básicas, em meio a pandemia artistas do hip hop paulista e do samba carioca se juntaram para arrecadar alimentos aos necessitados; noutro extremo, Wesley Safadão descobriu em sua quarentena, no meio de seu hotel fazenda, uma cachoeira. O lendário artista do povo, amigo de Plínio Marcos e Geraldo Filme, mestre da Vai Vai, Pato N’Água achou o esquadrão da morte voltando para seu quartinho de cortiço no Bixiga.

As passistas e baianas da Mangueira ajudam a educar as pessoas sobre o isolamento social em casas onde moram 5 ou 8 pessoas em 2 ou 3 cômodos, Maitê Proença faz live ensinando suas amigas a lavar copos e talheres. Outras artistas tiveram que trocar fraldas de seus bebês pela primeira vez na vida

Walter Benjamim, em sua leitura d’ O Capital observa que há uma expropriação da cultura e do saber popular, o artista e a arte convertidos em valor de uso, a arte e o artista passam e devem produzir em série para um mercado que consome uma música um quadro com a mesma voracidade e paladar que comem um sanduíche num Shopping Center tornando-se assim Valor de troca. A Arte e o artista estão ameaçados no seu existir. São cancelados pela indústria monopolista financeira que visam lucros e mais lucros, a arte tem que ser produzida para uma emoção fugidia que amanhã exigirá outra da mesma “qualidade” tal qual a um rolo de papel higiênico.

Os cantores gospel e sertanejos que tocam no máximo o básico em seus violões e guitarras, não sabem, mas até os meados dos anos de 1950 o instrumento “de massa” aqui e no mundo era a sanfona e o acordeom. Violão e cordas era coisa de bandido, de malandro tal qual ao futebol, a capoeira, o boi e o samba. Coube a João Gilberto universalizar o violão transformando-o em um instrumento comum a todos.

O ano passado João Gilberto morreu e claro, sem ele os Beatles, Jimi Hendrix ou John McLaughlin talvez “demorassem” um pouco mais a surgir. A Secretaria de Cultura do governo federal fez silêncio, Walter Franco e novo silêncio, depois com o vírus…Flávio Migliaccio (o eterno Shazan) , Mores Moreira, Aldir Blanc …e mais silêncio. . Não foi a toa que Shazan disse que a humanidade não deu certo e que seu amigo Lima Duarte comentou que o silêncio “estava lavando as mãos numa bacia de sangue”

O silêncio não é do governo, mas sim daquilo que ele expressa: a indústria monopolista financeira e sua face cultural. Não há interesse que esses nomes sejam lembrados, não interessa que essa cultura ganhe as ruas, os lares ou os bares. Há um bloqueio nas gravadoras, rádios, TVs e noutras mídias. Há um bloqueio e a tentativa de cancelar sua existência.

O sociólogo Marcelo Ridentti lembra em seus estudos sobre a cultura que o que predominou ao longo do século XX foi uma cultura crítica à esquerda, que possibilitou no teatro, literatura, música ou artes plásticas um questionamento do Brasil oficial pelo Brasil real.

Clementina de Jesus, doente de alcoolismo foi internada no Pinel, por sorte sua enfermeira e seu psiquiatra foram Dona Ivone Lara e o craque prezado amigo Afonsinho. O pioneiro do rock brasileiro ex namorado de Janes Joplin, Serguei, viveu seus últimos anos de vida com um salário mínimo cotizados por amigos e pela prefeitura de Saquarema, Tony Tornado salvou-se das cordas da Rua Lavrate (uma cracolândia dos anos 50 e 60) por ter todos os dentes da boca, por Sérgio Mendes. Pixinguinha foi resgatado da miséria por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Clementina saiu do Pinel e gravou seu disco com Marcus Pereira. Por sua vez Eduardo Costa, entre outros, tem uma coleção de carros super máquinas avaliado em milhões de reais.

O espaço da cultura é também espaço da luta de classe, de um lado os artistas e sua arte, de outro os interesses agrupados em torno do lucro. O capital sabe o que está fazendo, cabe a Arte tomar consciência de seu papel na história

Se Noel Rosa tivesse além da ajuda de Aracy de Almeida, Deus, equipamentos e a equipe médica que cuidou do cantor sertanejo, talvez tivesse escapado da morte. João do Vale precisou do auxílio de seu amigo Chico Buarque para ter dignidade no seu final; Aldir Blanc, contou com João Bosco entre tantos outros para morrer com o mínimo de dor. Todos esses são partes de uma gloriosa luta inglória, “que tem como monumento as pedras pisadas do cais”.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

John Kennedy Ferreira

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