Nikolas Rose é professor de sociologia do Kings College de Londres e pesquisa as mudanças contemporâneas das “ciências da vida”: biomedicina, genômica, neurociências, etc.
É internacionalmente conhecido como um dos principais estudiosos da obra de Michel Foucault na atualidade. Essa entrevista é baseada em seu último livro, Nosso Futuro Psiquiátrico (Polity Press, 2018), que analisa os efeitos da psiquiatria sobre a sociedade.
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"A eficácia das drogas para a depressão, por exemplo, é muito exagerada", diz Nikolas Rose
Confira um resumo da entrevista
Outras Palavras – Como a psiquiatria atua politicamente em nossa vida diária?
A psiquiatria sempre se envolveu de maneira mais geral em questões sociais e políticas. Não podemos nos esquecer que na Alemanha nazista, as primeiras pessoas que foram para as câmaras de gás foram os internos dos hospitais psiquiátricos. Há outros exemplos históricos disso. O mais conhecido é o papel da psiquiatria em argumentos sobre a degeneração e no surgimento da eugenia, no final do século XIX e início do século XX. Psiquiatras e argumentos psiquiátricos desempenharam um papel fundamental em muitos países onde práticas eugênicas de um tipo ou outro se tornaram centrais para a política. Ou se você pensar em um envolvimento mais progressista na primeira metade do século XX, pelo menos na Europa e na América do Norte, houve um grande e influente movimento pela Higiene Mental que dizia que precisávamos melhorar a higiene mental no lar, na fábrica, em nossas comunidades, para minimizar todas as formas de desajustes. Na sua função junto ao movimento de higiene mental, a psiquiatria não se limitou, novamente, à identificação e ao tratamento de pessoas com transtornos mentais. Ela se envolve plenamente nas questões bio políticas de como se deve administrar a saúde mental ou minimizar os transtornos mentais ou outros tipos de danos.
O papel da psiquiatria não se limita a identificar e tratar pessoas com transtornos psiquiátricos, mas como administrar e melhorar a saúde das nossas mentes. Transformar as maneiras pelas quais as pessoas entendem a si mesmas e articulam, julgam e intervêm sobre seus estados mentais. Nas escolas, um número grande de crianças está começando a aprender uma linguagem psiquiátrica para entender seus sofrimentos, o que pode explicar as taxas crescentes de crianças em idade escolar diagnosticadas, pelo menos no Reino Unido. Temos também um número crescente de aplicativos móveis e sites na internet onde as pessoas auto-diagnosticam seus problemas psiquiátricos e são ensinadas a fazer uso de vários tipos de técnicas diferentes, como tipos de terapia cognitivo-comportamental ou versões da meditação ao estilo do mindfulness [usada frequentemente em empresas para aliviar o estresse] e assim por diante, para administrar sua angústia em sua vida cotidiana.
Eu acho que a questão seja o quanto queremos que, à medida que se desenvolve o século XXI, que a expertise e a tecnologia psiquiátrica penetrem e se disseminem em nossas vidas cotidianas. Nós já sabemos que as drogas psiquiátricas desempenham um papel importante na vida de muitas pessoas. Nós já sabemos que há argumentos que preconizam a necessidade de ocorrer mais intervenções psiquiátricas em países de baixa e média renda onde ainda existem menos psiquiatras. Então, deveria “nosso futuro psiquiátrico” consistir em aumentar o número de especialistas que procuram usar seus conhecimentos para tratar pessoas que estão em sofrimento mental? Ou há outro modo de pensar uma outra bio política, na qual a psiquiatria desempenhe seu papel? Isso tem a ver com mitigar e minimizar todas as formas de adversidade que levam as pessoas ao sofrimento mental. Esse é o desafio ou o dilema que estamos debatendo agora.
Na sua avaliação, devemos acreditar nos números que afirmam haver hoje uma “epidemia global” de transtornos mentais?
Fala-se muito, no Reino Unido, que uma, a cada quatro pessoas, em um ano, pode ser diagnosticada com um transtorno mental do DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Academia Americana de Psiquiatria]. E que uma, a cada duas pessoas poderá ser diagnosticada durante sua vida inteira. O objetivo desses números seria reduzir o estigma, mostrando que a doença mental não é apenas algo que afeta algumas pessoas loucas, mas que concerne a todos nós. Isso é parte de uma importante estratégia política para trazer recursos para o campo da saúde mental: precisamos de mais psiquiatras, precisamos de melhores serviços de saúde mental, etc.
Mas se recuarmos e olharmos para os números e as formas em que foram criados, não há dúvidas que todo tipo de crítica pode ser feita. Se você olhar para o Reino Unido, por exemplo, embora os dados não sejam muito bons, o número de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais tem permanecido notavelmente estável nos últimos 20 anos. Há apenas dois grupos de pessoas onde você vê um aumento significativo: jovens na escola e mulheres jovens que se automutilam. Então, a ideia de que os números estão só crescendo e isso tem a ver com a natureza patológica da nossa sociedade como um todo é enganosa. Quando esses números surgiram, a primeira resposta do establishment psiquiátrico foi dizer que precisamos de muito mais profissionais de saúde mental, mais psiquiatras nas escolas, acesso mais rápido aos serviços de saúde mental, professores treinados em conscientização sobre saúde mental e assim por diante. Ninguém faz a segunda pergunta, que talvez devesse ser a primeira: porque tantas outras pessoas estão experimentando o que consideram transtornos mentais? Qual é a função política desses números quando a grande maioria das pessoas que os compõem não definem suas condições como transtornos mentais e não consideram que necessitam de tratamento realizado por especialistas?
O uso cada vez maior de medicamentos para depressão e ansiedade revela mais o sucesso do crescente reconhecimento e tratamento dos transtornos mentais, ou um problema nas formas que temos abordado nossas experiências de sofrimento?
Se eu tivesse que fazer uma escolha entre os dois com uma arma na minha cabeça, eu diria o segundo [risos]. Podemos tomar a questão do Japão, por exemplo. Eu me refiro aqui ao ótimo trabalho de Junko Kitanaka em seu excelente livro sobre depressão no Japão. Kitanaka mostra que até pouco tempo atrás no Japão, o estado que agora chamamos de depressão era entendido de uma maneira que abrangia tanto um desconforto corporal quanto mental. Quando as pessoas estavam deprimidas, elas estavam tanto física como mentalmente esgotadas, estavam fracas, angustiadas e sofrendo na mente e no corpo.
Esta foi uma maneira de pensar bastante semelhante à “neurastenia” na Europa do século XIX. O tratamento era descansar, era ensinar formas melhores de administrar o estresse, de gerenciar equilíbrio na vida profissional, e assim por diante. Mas desde o início dos anos 1990, você vê uma dupla emergência. Por um lado, esse modo tradicional de pensar sobre o mal-estar do corpo e da alma é substituído pelo diagnóstico de depressão. Por outro, vemos a introdução do Prozac e medicamentos similares para o tratamento da depressão.
No Japão, apesar disto, ocorre uma abordagem mais holística, reconhecendo que precisamos lidar com a situação social dos indivíduos e não apenas receitar-lhes medicamentos. Claro que é preciso ser mais específico sobre isso, mas o ponto importante é que pensar todas as condições que as pessoas experimentam a angústia mental como transtornos mentais comuns, que são tratáveis por drogas – ou mesmo pela TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), e pela psiquiatria, seja na África subsaariana, no Brasil ou no sudeste da Ásia, é algo muito problemático. Isso liga-se à minha opinião de que a eficácia dessas drogas é muito exagerada.
A eficácia das drogas para a depressão, por exemplo, é muito exagerada. O tamanho do efeito para depressão leve a moderada da maioria dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina [como a fluoxetina] é muito pequeno e geralmente não é maior que o placebo. Além disso, não está claro se seus efeitos positivos superam os negativos para uma população em geral, especialmente considerando os problemas que surgem do uso prolongado desses medicamentos. Quando as pessoas param de tomá-los, elas experimentam muitos sintomas desagradáveis. Isto não é surpreendente porque esses medicamentos alteram o equilíbrio de neurotransmissores e receptores no intestino, nos músculos, em todos os lugares do corpo.
O problema é que esses sintomas são frequentemente considerados tanto pelo indivíduo quanto por seu médico como uma recaída na depressão e as drogas são reiniciadas ou novas drogas são prescritas. As pessoas não estão apenas tomando essas drogas para alívio de curto prazo, elas são pensadas e pensam a si mesmas como “depressivas leves crônicas” e tornam-se usuárias de longo prazo desses medicamentos. Nós não sabemos como essas substâncias funcionam no cérebro, para além de alguns eventos moleculares muito próximos ao seu local de ação e dos seus sítios receptores. Não temos ideia de como eles funcionam nos múltiplos circuitos cerebrais em intersecção. E seus efeitos têm sido frequentemente exagerados.
Quando novas drogas são introduzidas pela primeira vez, elas parecem muito eficazes. Depois de terem sido usadas por um longo tempo, elas parecem muito menos efetivas. Por quê? Eu não sei. Meus amigos cínicos diriam: “Bem, isso é muito bom para a indústria farmacêutica. Você realmente quer que as pessoas usem as drogas o tempo todo e você vai ganhar dinheiro com isso.” Talvez as pessoas depositem muita fé em novas drogas. Os médicos e os pacientes realmente desejam que as novas drogas funcionem. Quando um medicamento se torna antigo, eles realmente esperam e acreditam que o próximo medicamento, o novo medicamento funcionará. Eu acho que isso está ligado a crenças complexas que os indivíduos têm sobre o papel que a medicação pode desempenhar na manutenção ou recuperação de sua normalidade. Somos todos usuários de drogas. Todos nós vamos à farmácia e compramos aspirina ou paracetamol. Somos todos crentes nas pílulas que resolvem nossos males. Mas isso tem consequências na psiquiatria que podem ser particularmente ruins. As pessoas tomam muitas vitaminas e a maioria é um desperdício de dinheiro, já que elas normalmente apenas excretam as vitaminas que não precisavam. Isso não é tão simples com as drogas psiquiátricas.
Em uma das partes centrais de seu livro lê-se: “a psiquiatria e as demais profissões psi reivindicam certa legitimidade, pelo compromisso em ajudar, ou mesmo, não prejudicar aqueles que analisam, diagnosticam e tratam” (Rose, p. 151, 2018). Ademais, você afirma inclusive que nem sempre as estratégias de engajamento dos usuários nos serviços de saúde mental avançaram na luta contra o poder psiquiátrico. Muito pelo contrário, elas mantêm o poder médico intacto e podem fazer parte das racionalidades e tecnologias neoliberais. Considerando tais estratégias, você poderia refletir sobre essas afirmações
Responderei essa questão em duas partes. Na primeira parte, quero salientar que quase todos os psiquiatras e profissionais psi que eu conheci ao longo do último meio século têm um desejo genuíno em ajudar as pessoas com quem lidam cotidianamente. No meu país e talvez no seu, a psiquiatria e a saúde mental como profissão não são muito respeitadas. Nem mesmo bem pagas. Você ganharia muito mais dinheiro se estivesse trabalhando em outro lugar. Então, nós temos muitas pessoas dedicadas trabalhando nessa área. Eu não sou crítico à dedicação dessas pessoas. Estava recentemente em um evento com clínicos e estudantes de saúde mental global e fiz comentários semelhantes aos que faço em meu livro. Muitos parecem pensar que eu fazia uma crítica pessoal a eles. Muito pelo contrário. Acho que eles estão trabalhando em circunstâncias muito limitadas.
Ouvi comentários frequentes como: “Bem, você pode estar certo. Tudo pode estar na adversidade, mas não podemos fazer nada sobre isso. Nós somos apenas psiquiatras. O que poderíamos fazer? Temos que esperar até que a sociedade mude. Essa desigualdade e adversidade fazem parte do sistema capitalista de mercado e não há nada que possamos fazer para mudar isso; nós apenas temos que lidar com as consequências”.
E a minha resposta foi: “Não, há muitas coisas que você pode fazer mesmo que sejam em pequena escala. E você também pode tomar uma posição pública e argumentar com veemência que certas políticas desenvolvidas em nossa forma atual de capitalismo de mercado são altamente prejudiciais à saúde mental”. Por exemplo, as condições da política do bem-estar social — as quais tentam levar as pessoas para o trabalho a todo custo, não importa o quanto são prejudiciais seus efeitos sobre as pessoas com problemas de saúde mental. Essas políticas fazem com que o acesso aos benefícios do Seguro Social dependa da constante tentativa de ingressar no trabalho e, em alguns casos, levam pessoas com problemas de saúde mental ao suicídio.
Não acho que o argumento avança muito quando se reduz apenas a crítica dos motivos dos psiquiatras. Claro, existem psiquiatras ruins, bem como existem políticos ruins, e sem dúvida existem professores universitários ruins. Mas essa não é a questão principal, mas instar os psiquiatras e outros profissionais psi a se posicionarem mais sobre as condições que levam as pessoas a uma saúde mental precária e a usar seu poder e experiência profissional para defender a prevenção nessa área, como em outras áreas da medicina.
Seguindo para segunda parte de sua questão, referente ao envolvimento dos usuários. Acho que, gradualmente, por volta dos últimos vinte anos, órgãos profissionais da psiquiatria e gestores de políticas psiquiátricas passaram a acreditar que a legitimidade da sua posição depende de suas abordagens serem legitimadas pelas pessoas que eles tratam. Ou seja, há um movimento gradual para envolver os usuários de serviços de saúde mental nos debates sobre políticas e práticas psiquiátricas. Mas muitas vezes aqueles que criticam radicalmente às práticas atuais da psiquiatria não são bem-vindos à mesa.
Em parte, isso ocorre porque existem enormes disparidades de autoridade entre os usuários e especialistas. Além disso, os especialistas estão sendo pagos mesmo quando estão sentados em uma reunião com os usuários do serviço psiquiátrico. Mas os usuários do serviço, se tiverem sorte, recebem a passagem do ônibus, um sanduíche e uma xícara de café. Eles não estão sendo pagos. Portanto, existem diferenças materiais e simbólicas. E, muitas vezes, os usuários se veem como parte de um processo de legitimação – isto é, o envolvimento dos usuários de saúde mental no processo é usado para legitimar qualquer política já decidida. Os formuladores de políticas afirmam que elas foram desenvolvidas com o envolvimento dos usuários, ao passo que, na verdade, tiveram uma reunião em que dois usuários de serviços de saúde mental estão presentes entre 25 profissionais de saúde mental. E os usuários dos serviços de saúde mental não saíram da sala.
Em segundo lugar, acho que algumas das estratégias mais radicais defendidas pelos usuários dos serviços de saúde mental são rapidamente removidas de suas mãos e transformadas em ferramentas profissionais. Você pode pensar em “empoderamento”, que começou como uma demanda radical para superar desníveis de poder entre usuários e profissionais do serviço. Agora todo profissional quer “empoderar” seus clientes, o que significa reduzir sua dependência. O que muitas vezes significa dizer: “Oh! Não nos peça ajuda. Você sabe que precisa aprender a se ajudar”.
No Brasil, vivemos recentemente importantes retrocessos no campo da Saúde Mental com diretrizes publicadas pelo atual governo e apoiadas por entidades como a Associação Brasileira de Psiquiatria que interrompem o processo de fechamento de leitos manicomiais e estimulam a internação involuntária de usuários de drogas com o objetivo único de abstinência. Essas propostas são muitas vezes defendidas usando como referência a psiquiatria dos países desenvolvidos. Qual a sua avaliação sobre isso?
Recentemente, eu li uma declaração em um artigo sobre a Saúde Mental Global que continha dois argumentos principais: já entendemos a natureza dos distúrbios mentais e já temos meios eficazes de tratá-los e tais meios devem estar disponíveis a todas as pessoas do mundo. Acho que ambas as afirmações estão erradas. Nós não entendemos o transtorno mental, nem temos meios eficazes de tratá-lo. E não acho que fizemos muito bem no que se refere à Saúde Mental no hemisfério Norte. Isso não significa que devamos voltar à hospitalização e a tratamentos involuntários. De modo nenhum. Eu realmente não sei por que alguém deveria acreditar que há boas lições a serem aprendidas do Norte Global na compreensão e tratamento do sofrimento mental. Há algumas tentativas que são boas, mas a maioria realmente fracassou.
Considero bem-vindas, por exemplo, as tentativas de reduzir o estigma, para tornar mais possível as pessoas falarem sobre os seus distúrbios mentais, para tornar as famílias um pouco mais dispostas a compreender e falar sobre os distúrbios mentais dos membros da família. Mas essas tentativas – muitas vezes envolvendo celebridades “saindo” e falando de seus problemas de saúde mental – não mudaram realmente as visões altamente estigmatizantes de muitas comunidades em relação às pessoas que são subjetivamente diferentes. Não acho que nossas comunidades aqui no Reino Unido ou em toda a Europa estão particularmente aceitando aqueles que se comportam, pensam, valorizam, julgam, se vestem de maneira diferente. Estamos tomando muitos comprimidos. As pessoas estão fazendo muita Terapia Cognitivo Comportamental e todo mundo tem aplicativos de mindfulness em seus smartphones. Mas eu não chamaria isso de modelo de “sucesso” para ser exportado pelo mundo.
Esta é uma versão condensada da entrevista de Nikolas Rose, publicada na revista Interface –Comunicação, Saúde, Educação.O texto completo pode ser lido aqui
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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