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ToggleAnálises genéticas realizadas por cientistas da USP permitiram traçar a trajetória dos indígenas Tupiniquim que habitam Aracruz, no Espírito Santo, e concluir que eles têm a mesma linhagem genética do grupo que povoava o litoral brasileiro na época da chegada dos portugueses, no século 16. Eles possuem 51% de DNA nativo americano, 26% europeu e 22% africano.
Comparados com outros grupos étnicos analisados, os Tupiniquim de Aracruz não apresentam miscigenação com outras etnias indígenas, o que indica que são descendentes diretos dos primeiros Tupiniquim. Com os dados, também foi possível estimar as datas em que ocorreram os principais eventos de miscigenação do grupo com europeus e africanos, entre os séculos 18 e 19. O levantamento traz novos indícios de como se deram as transformações nas populações indígenas brasileiras, passando pela política de extermínio do período pós-colonização, que dizimou grande parte delas.
A pesquisa foi liderada pela professora Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP. O primeiro autor do artigo, Marcos Araújo Castro e Silva, é seu aluno de doutorado. Além deles, também participaram cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os resultados estão no artigo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Reprodução: Flickr
Os indígenas de Aracruz não apresentam miscigenação com outras etnias, o que indica que são descendentes diretos dos primeiros Tupiniquim
História não contada
Para encontrar os resultados, os cientistas compararam dados genômicos dos Tupiniquim com os de outros indígenas de diferentes regiões do Brasil. O genoma é o conjunto de todas as informações genéticas contidas no DNA de um indivíduo, e a partir dele é possível observar as mudanças ocorridas entre indivíduos e entre populações, bem como entre diferentes gerações. Dessa forma, pode-se estimar o quanto cada indivíduo possui de contribuição genética indígena, europeia, africana ou de qualquer outra origem, de acordo com a base de dados para comparação.
A cada nova geração, “blocos” de informação genética vão se recombinando e mudando de tamanho, e é essa diferença que permite calcular o momento em que ocorreram alguns fenômenos como a miscigenação. “O tamanho desses ‘blocos’ tem uma relação direta com o tempo, algo que pode ser estimado por cálculo matemático”, explica Marcos. “Então, pelo tamanho é possível identificar há quanto tempo aconteceram determinados eventos.”
O primeiro período de miscigenação dos Tupiniquim foi com os europeus, e coincidiu com o chamado Ciclo do Ouro, na primeira metade do século 18. Naquela época, com os bandeirantes em busca de minerais preciosos no interior do Brasil, houve um crescimento massivo da escravidão indígena. Depois, com a chegada da família real portuguesa no início do século 19, um número maior de africanos passa a ser trazido para o Brasil como escravo, e aumenta a incidência de miscigenação entre as populações Tupiniquim com as diferentes etnias vindas da África. Por fim, o terceiro ciclo, que os pesquisadores consideram perdurar até hoje, tem início com a abolição da escravidão, quando cresce a população negra livre e há um grande número de europeus vindo ao País como imigrantes.
Como aponta Tábita, os resultados ajudam a preencher algumas lacunas e jogam luz sobre o histórico de violência, inclusive sexual, que foi reservado aos povos indígenas ao longo da formação do País. “A história indígena, no Brasil, não costuma ser contada”, comenta a professora.
Rotas de dispersão
Uma outra descoberta trazida pelo estudo diz respeito à dispersão dos grupos falantes do tupi-guarani pelo Brasil. Originários da floresta amazônica, eles se espalharam por todo o território, desde o litoral até onde hoje é o Rio Grande do Sul.
Existem duas principais hipóteses de como se deu essa movimentação, baseadas em evidências linguísticas e arqueológicas. A primeira delas indica que essas populações partiram juntas em descida pelo território até a região da fronteira com o Paraguai, e ali se dividiram, uma parte continuando pelo sul, que daria origem à etnia Guarani (Tupi-Guarani do sul), e outra para o litoral, onde surgiriam os Tupiniquim (Tupi-Guarani da costa). Já a segunda hipótese é de que essas duas ramificações tiveram início ainda na Amazônia, e os povos teriam partido de lá já como grupos independentes – os Guarani direto para o sul, e os Tupiniquim (junto com Tupinambá e outros Tupi costeiros) para o norte e em seguida o litoral.
A análise genética indica que a segunda hipótese é a mais provável. Para chegar a essa conclusão os pesquisadores utilizaram a filogenia, ou seja, a história evolutiva, das populações indígenas de diferentes regiões do Brasil atual, inclusive os Tupiniquim de Aracruz. “Com base nas filogenias que seriam esperadas pelas duas hipóteses, é possível ter uma expectativa de como seriam as relações de parentesco genético entre as populações”, explica a professora Tábita. “Assim, foi possível comparar essa expectativa com o que foi observado nas amostras de DNA, e ver qual hipótese melhor se encaixava.”
Quem são os Tupiniquim
Antes da vinda dos portugueses, o número de pessoas que povoava a região do Brasil chegava aos 3 milhões, com cerca de 900 mil distribuídas ao longo da costa, conforme registra o artigo publicado na PNAS. Foram chamados de Tupiniquim os primeiros indígenas que os colonizadores encontraram ao desembarcar no litoral.
Como explica Glauco Constantino Perez, doutor em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP e pós-doutorando no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do IB, os Tupiniquim fazem parte dos chamados grupos Tupi, que englobam os falantes de todas as línguas derivadas do tronco linguístico tupi. “Quando se diz Tupiniquim, fala-se de pessoas que ocupavam o planalto paulista, talvez o sul mineiro e também a região do Espírito Santo”, complementa o pesquisador.
De acordo com os estudos arqueológicos, os grupos Tupi originaram-se na floresta amazônica, e parte deles migrou para outras regiões, chegando ao litoral atlântico entre 1 e 3 mil anos atrás. Nessa época, eles já eram agricultores e produtores de cerâmica. O motivo da dispersão do território não é totalmente conhecido, mas uma das hipóteses mais difundidas é de que tenha ocorrido como consequência do crescimento populacional: conforme o número de pessoas aumentava, naturalmente surgia a necessidade de ocupar outras áreas, e essas divisões foram dando origem a novas variações linguísticas e culturais. Outras hipóteses trabalham ainda com a possibilidade de que as dispersões tenham sido influenciadas também por questões climáticas.
Mais informações: emails hunemeier@usp.br, com Tábita Hünemeier, macsilva@usp.br, com Marcos Castro, e glauco1113@usp.br, com Glauco Constantino Perez