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ToggleGolpe. A onda de restauração conservadora chegou na Bolívia. Não de forma muito diferente de como tem se manifestado na América Latina desde o Golpe em Honduras em 2009, mas com um componente de violência acentuado. Não se trata de um golpe jurídico parlamentar, como se deu no Paraguai e no Brasil, tem mais semelhança com a onda de violência e desestabilização que abalou a Nicarágua em 2018 ou com a tentativa de sequestro de Correa, no Equador em 2012 ou ainda com o golpe de 2002 na Venezuela, quando os opositores tomaram meios de comunicação e incendiaram as ruas.
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Mas vejamos como chegamos a esta situação em que hoje, 10 de novembro, após ter sido vitorioso no pleito eleitoral de 20 de outubro, Evo Morales, presidente da Bolívia, anuncia que o parlamento boliviano renovará os cargos dos juízes do Tribunal Eleitoral, por ter competência para fazê-lo, e novas eleições gerais serão convocadas, anulando-se assim os resultados de 20 de outubro. Horas antes do anúncio, a OEA havia se manifestado não reconhecendo o pleito após realização de auditoria da contagem dos votos. Na prática, a OEA, através de Luís Almagro, fez seu papel, tal e qual nos outros países golpeados.
Em que contexto econômico nacional se deu o pleito de 20 de outubro?
As eleições na Bolívia se deram no apagar das luzes da segunda década do século 21. Duas décadas marcadas por muitas transformações na América Latina. Um período em que se viveu o chamado ciclo de governos progressistas iniciado com a Eleição de Chávez como presidente da Venezuela em 1998 e seguiu vigoroso até a primeira derrota eleitoral importante, a de Cristina Kirchner na Argentina em 2015. Nesse meio tempo houve vários tentativas de golpe e pelo menos dois com sucesso para os conservadores, em Honduras e no Paraguai. De 2015 pra cá, a onda de restauração conservadora tomou mais corpo, especialmente como golpe no governo Dilma no Brasil e a eleição de Bolsonaro.
Reprodução/ Twitter
Cívicos comemoram queda do ex-presidente Evo Morales
Evo chegou perto de ser eleito pela primeira vez em 2002, quando ficou em segundo lugar nas eleições de modo surpreendente para um país de sucessivos governos oligárquicos. Nas eleições de 2005, ele venceu com maioria absoluta, tornando-se o primeiro presidente de origem indígena. Quando Evo assume a presidência, a Bolívia possuía um PIB de 5 bilhões de dólares e uma dívida externa de igual valor. Já ao final de 2005, o PIB estava na casa dos 9 bilhões e em 2018 de 40,8 bilhões de dólares. Os governos dos “terratenientes” que o antecederam se ocupavam de utilizar o Estado para maior acúmulo de riqueza para si e os seus. Em 14 anos o governo Evo multiplicou em 8 o PIB do país.
Uma das principais chaves da nova economia foi a mudança no trato com os recursos naturais, em especial nos setores agropecuário, mineiro, energético e de hidrocarbonetos. Com uma profunda nacionalização, através da recuperação de empresas estratégicas, além do investimento misto, junto ao setor privado, na atividade econômica levada por pequenas, médias e grandes empresas. Na paralela, refundaram politicamente o país e alterando o perfil de um Estado colonial para um Estado Plurinacional, com especial atenção ao movimentos indígenas e de mulheres. O resultado foi que um país que tinha 78,2% de pessoas na extrema pobreza, passou a ter menos de 15%, estabilizou em um crescimento de 4% ao ano e chegou a um PIB per capta de 4 mil dólares, quando era de 900 dólares.
Em que contexto político se deu o pleito de 20 de outubro?
A Bolívia é um país que enfrentou 193 golpes de Estado no período que vai desde os tempos de Bolívar e Sucre, heróis independentistas, em 1825, até 1982. Estabilidade política não é o comum no país, muito pelo contrário. E mais, instabilidade política sempre acompanhada de muita violência.
De 84 governos, 32 foram levados por ditadores. O Palácio de Quemados, sede da presidência e do qual observamos nos últimos dias o amotinamento dos guardas palacianos contra Evo, tem esse nome por ter sido incendiado em uma revolta popular em 1860.
Com Evo e Linera, portanto, nos últimos 14 anos, a Bolívia viveu um dos mais longevos períodos de estabilidade política desde a independência, se não foi o maior. Durante esse período, houve um princípio de guerra civil em 2008, instada pelos mesmos golpistas de hoje, sediados em Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija, na época também de El Beni e Pando.
Qualquer um que olhasse o cenário, de estabilidade política, crescimento econômico, extermínio da pobreza e melhora de outros indicadores socioeconômicos, poderia pensar que Evo levaria esta fácil. Com vitória arrebatadora. Ocorre que na política tudo são nuvens e quando você volta a olhar o céu, lá vem uma tempestade imprevista.
A combinação da reorganização dos setores oposicionistas, animados com os ventos conservadores que vieram bater no continente (exemplo do Brasil) com a insatisfação de setores indígenas, por considerarem que Evo se aproximou demais do mercado e do agronegócio, os incêndios florestais pré-eleitorais e a não identificação de eleitores jovens (conhecemos esse filme) com o programa do MAS formou um cenário complicado para Evo.
Por isso, a vitória não foi avassaladora e capaz de fechar a fatura no primeiro turno. A estreita margem dos votos, principalmente do campo e meio rural, que garantiram os 10% de diferença entre Evo e Mesa foi o componente de tempestade perfeita que o imperialismo precisava para entrar com a intrometida colher da OEA e abrir as portas para o golpe.
O impacto das queimadas
Um ponto importante do cenário e contexto pré-eleitoral foi o das queimadas florestais que alarmaram a Bolívia, em especial na Chiquitania, no mesmo período em que aqui no Brasil enfrentamos as queimadas na região da Amazônia.
Enquanto aqui no Brasil o governo Bolsonaro fazia vista grossa para as queimadas, batia boca com o presidente francês, Emmanuel Macron, e rasgava dinheiro europeu, Evo foi pessoalmente para as áreas de queimadas, montou comitê de crise em barraca de campanha, pediu ajuda ao mundo inteiro, revelou tecnologias que poucos conhecíamos ao receber aviões tanque e outros tipos de apoio.
Seria impossível, no entanto, que as queimadas não chamuscassem também a candidatura de Evo e dessem de bandeja argumentos para a oposição alvejar o líder indígena. Foram cinco as mortes decorridas do enfrentamento ao fogo, quatro bombeiros e um camponês, quatro milhões de hectares consumidos pelo fogo, sendo 12 áreas protegidas com grande biodiversidade de fauna e flora. Tudo isso justamente em Santa Cruz, sede do golpismo anti-Evo.
As eleições
No dia 20 de outubro, mais de sete milhões de eleitores estavam aptos a votar, tanto no país como no exterior (341 mil puderam votar fora do país). O pleito escolheria o presidente e seu vice-presidente, 130 deputados e 36 senadores para o mandato de 2020 a 2025. Para vencer e levar a presidência na Bolívia, um dos candidatos deve fazer mais de 50% dos votos ou no mínimo 40% com uma diferença de 10 pontos percentuais à frente do segundo mais votado.
Caso contrário, há segunda volta. Os principais adversários de Evo (47,08%) foram Carlos Mesa (Comunidad Ciudadana) com 36,51%, Chi Hyun Chung (Partido Democrata Cristão), com 8,83% e Óscar Ortíz (Bolivia dice No), de Santa Cruz, preferido dos EUA, com apenas 4,26%.
Quatro dias antes da eleição, Evo recebeu uma delegação da OEA na Casa Grande do Povo e logo manifestou via twitter: “Damos as boas-vindas à delegação de observadores da OEA que acompanham as eleições na Bolívia para verificar a transparência e legalidade do processo eleitoral”.
A OEA enviou 92 observadores para as eleições bolivianas, sendo que parte desses se deslocou para acompanhar as votações em São Paulo, Buenos Aires e Washington. Apesar da receptividade com a OEA, que sabemos bem a serviço de quem anda “observando” os governos latino-americanos, a bandeira branca de Evo não funcionou muito e a violência se instalou já nos dias prévios às eleições. O encerramento da campanha do MAS, em Santa Cruz, foi um exemplo do que estava por vir.
Passado o domingo 20, enquanto ainda se fechava o escrutínio das cédulas, foram queimados os escritórios do Tribunal Eleitoral Departamental de Potosí e juízes eleitorais foram agredidos em Tarija, Chuquisaca, Oruro e La Paz. Foi derrubada uma estátua de Hugo Chávez em Riberalta e outros atos de vandalismo se instalaram pelo país.
Os atos violentos tinham um conteúdo racista bastante particular da Bolívia, além de profundamente antidemocráticos. Enquanto isso sabe-se que funcionários o Departamento de Estado dos EUA que estão na Bolívia, Mariane Scott e Rolf Olson, mantiveram reuniões com diplomatas do Brasil, Argentina, Paraguai, Colômbia, Espanha, Equador, Reino Unido e Chile para coordenar um não reconhecimento dos resultados eleitorais. A OEA impôs uma auditoria e concluiu que “embora sem fraudes, o processo foi impreciso”, tradução = não reconhecemos a vitória de Evo.
Dali em diante, todos já conhecíamos o filme. O cenário do golpe estava montado: violência nas ruas, não reconhecimento do processo eleitoral por parte dos países da região, raposa instalada dentro do galinheiro: OEA. Só faltavam alguns elementos essenciais para a efetivação do golpe: forças de segurança e meios de comunicação. E foi justamente o que vimos nos últimos dias, amotinamento de forças policiais e tomada de rádios e TVs à força pelos golpistas. A que se dizer que o papel dos militares foi dúbio, mas há informações de que o próprio Evo decidiu não colocar o Exército nas ruas para não incrementar a violência e dar mais argumentos aos golpistas.
O golpe
No dia de hoje (10/11) Evo fez um pronunciamento que para uns soou como coragem e para outros como rendição. Anunciou aceitar o resultado da auditoria da OEA e a convocação de novas eleições. Além de sua anuência para que o parlamento trocasse os juízes do Tribunal Superior Eleitoral.
Resta saber se as novas eleições terão entre os concorrentes Evo Morales, o presidente que tirou a Bolívia da situação de eterna colônia e deu a seu povo dignidade e oportunidade de desenvolvimento, nunca vistos naquele país.
Enquanto escrevo já são noticiadas as novas chantagens golpistas e entre elas está o pedido de renúncia de Evo para que o país se pacifique. Evo apostou na paz, resta saber se isso basta para interromper a guerra. De todo modo, ele marcha suportado pela solidariedade de todo um continente que sabe o gigante que ele é. Fuerza Evo!