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Wallerstein sem anestesia: o intelectual que iluminou a luta pelo fim do capitalismo

“Em 30 anos já não viveremos sob o sistema-mundo capitalista. Pode ser um sistema muito melhor ou muito pior. Todas as possibilidades estão abertas”
Atilio A. Boron
Diálogos do Sul Global
Buenos Aires

Tradução:

A morte de Immanuel Wallerstein, ocorrida neste final de semana, priva-nos de uma mente excepcional e de um refinado crítico da sociedade capitalista.[1] Uma perda duplamente lamentável em um momento tão crítico como o atual, quando o sistema internacional rui diante das pressões combinadas pelas tensões provocadas pelo declínio do imperialismo norte-americano e da crise sistêmica do capitalismo.

Não é a primeira vez que as queimadas ou o desmatamento aumentam na Amazônia; mas é a primeira vez — desde a redemocratização — que isso ocorre com a “conivência oficial” do governo federal, diz o ambientalista José Pedro de Oliveira Costa, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo.

Wallerstein foi um acadêmico de destacada trajetória, que se estendeu ao longo de pouco mais de meio século. Começou com suas pesquisas sobre os países da África pós-colonial para depois dar início à construção de uma grande síntese teórica a respeito do capitalismo como sistema histórico, tarefa à qual se dedicou desde finais da década de 1980 e que culminou na produção de uma grande quantidade de livros, artigos para revistas especializadas e notas dirigidas à opinião pública internacional.

Wallerstein não só cumpriu o que cabia a si com o princípio ético que se exige para que um acadêmico se converta em um intelectual público, para que suas ideias nutram o debate que toda sociedade deve fazer sobre si mesma e seu futuro, como também seguiu uma trajetória pouco comum no meio universitário. Partiu de uma postura teórica inscrita no paradigma dominante das Ciências Sociais de seu país e, com o passar do tempo, foi se acercando do marxismo até terminar, em seus últimos anos, tendo uma coincidência fundamental com teóricos como Samir Amin, Giovanni Arrighi, Andre Gunder Frank, Beverly Silver e Elmar Altvater, entre tantos outros, a respeito da natureza do sistema capitalista e suas insolúveis contradições.

Sua trajetória é inversa à de tantos colegas que, críticos ao capitalismo em sua juventude ou nas etapas iniciais de suas vidas universitárias acabaram como publicistas da direita: Daniel Bell e Seymour Lipset, profetas da reação neoconservadora de Ronald Reagan nos anos 1980; ou Max Horkheimer e Theodor Adorno, que culminaram seu descenso intelectual e político iniciado na Escola de Frankfurt se abstendo de condenar a guerra de Vietnã. Ou ainda à de escritores ou pensadores que surgidos no campo da esquerda — como Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Regis Debray — se converteram em porta-vozes do império e da reação.

Wallerstein foi diferente de todos eles não só no plano substantivo da teoria social e política, como também por sua ativa inserção nas lutas sociais por um mundo melhor — assíduo participante em sucessivas reuniões do Fórum Social Mundial de Porto Alegre; manteve diálogos com o Subcomandante Marcos e outros líderes populares em diferentes partes do mundo, participação eventos organizados por movimentos sociais  — e, certamente, por suas contribuições à discussão epistemológica como o revela sua magnífica obra de 1998: “Abrir as Ciências Sociais”. Neste texto, propõe uma crítica radical ao paradigma metodológico dominante nas Ciências Sociais, cujo núcleo duro positivista a condena a uma incurável incapacidade para compreender a entranhada dialética e historicidade da vida social.

Encontro entre Wallerstein e o Subcomandante Marcos | Foto: Reprodução

Em linha com esta perspectiva de análise, suas previsões sobre o curso da dominação imperialista não poderiam ter sido mais acertadas. Em um de seus artigos do ano 2011, advertia que “a visão de que os Estados Unidos estão em decadência, em séria decadência, é uma coisa óbvia. Todo mundo o diz, exceto alguns políticos estadunidenses que temem discutir para não serem responsabilizados pelas más notícias da decadência.” [2]

Na América Latina, ao contrário, entre as classes dominantes, os políticos do establishment e a classe dos intelectuais que mandam predomina ainda uma visão hollywoodiana sobre a saúde do império, que é a mesma que penetra em boa parte da população. Segundo esta perspectiva, o que Donald Trump representa é o renovado vigor do império e não os desesperados pataleios dos que resistem a admitir seu lento, mas inexorável ocaso.

Não obstante, não havia uma grama de infantil triunfalismo nesse diagnóstico quando advertia que ainda que “haja muitos, muitos aspectos positivos para muitos países por causa da decadência estadunidense, não há certeza de que no louco bambolear do barco mundial, outros países possam se beneficiar desta nova situação tal como esperam”. Ou, poderíamos agregar, poderão tirar vantagens os países cujos governos adotem uma política de autodeterminação nacional que lhes permitam maximizar suas margens de autonomia na economia e política mundiais. Já quem seguir submisso aos ditados do império vai acompanhá-lo em seu lento declínio. O criminoso belicismo da Administração Trump em resposta à irreparável queda da ordem mundial do pós-guerra, que tinha seu eixo nos EUA, confirma as previsões formuladas por Wallerstein.

“Em 30 anos já não viveremos sob o sistema-mundo capitalista. Pode ser um sistema muito melhor ou muito pior. Todas as possibilidades estão abertas”

Flickr Cancillería del Ecuador
Immanuel Wallerstein morreu no último sábado (31), aos 89 anos

Seus prognósticos sobre o futuro do capitalismo são desalentadores para a burguesia mundial e seus propagandistas. Efetivamente, em uma palestra que deu em Madri, em 2009, ele sustentou que “o que estamos vendo agora é o colapso do período especulativo, iniciado nos anos 1970. Até aqui, tudo normal.” [3] Mas, agrega, há um elemento extraordinário e este não é outro que não o “fim do atual sistema-mundo capitalista e a conseguinte transição para outro sistema. Ainda não sabemos o que vai ocupar o lugar do capitalismo porque dependerá do resultado de uma luta política que ainda está sendo travada”. E arremata seu raciocínio sentenciando que “podemos estar seguros de que em 30 anos já não viveremos sob o sistema-mundo capitalista. Mas, em que sistema viveremos então? Poderia ser um sistema muito melhor ou muito pior. Todas as possibilidades estão abertas. A solução a encontraremos quando resolvermos o conflito entre o que eu denomino o espírito de Davos e o espírito de Porto Alegre.”

Mas o que não suscitava maiores incertezas no pensamento de Wallerstein era a evolução da crescente polarização — econômica, social, cultural — expressa pelo capitalismo contemporâneo. Concentração da riqueza, o saber e o poder nas mãos de poucos, dentro das nações e no sistema internacional. Isto se traduzia na proeminência dos enormes conglomerados oligopólicos — na economia real, nas finanças, nos meios de comunicação —, na erosão da democracia, na desorbitada concentração da riqueza e rendimentos e no desigual acesso à educação e à Internet.

Veja também:

Um mundo polarizado, que oprime, explode e exclui milhões e que cristaliza tendências de longa duração que, longe de se atenuar, não fizeram senão se aprofundar com o passar do tempo, confirmando os piores vaticínios de Wallerstein. 

Sua última pesquisa, da que tive o enorme privilégio de ser parte da equipe internacional de pesquisadores e que se traduziu em um livro publicado, em sua versão original, em língua inglesa, no final do 2014, e em espanhol, publicado pela editora Século XXI, em 2016. O título sintetizava muito bem o que os diferentes integrantes deste grupo de trabalho encontraram: “El mundo está desencajado. Interpretaciones histórico-mundiales de las continuas polarizaciones, 1500-2000”.[4]

Dado o anterior, aonde ou a quem devemos recorrer para nos nutrir teoricamente e nos capacitar para compreender e transformar esse mundo fora de lugar e caótico ao qual se refere o livro de Wallerstein, superando definitivamente o capitalismo e deixando para trás essa dolorosa e bárbara pré-história da humanidade? É claro que a leitura de sua densa e extensa obra é imprescindível. Mas como ele mesmo o afirma, “tenho argumentado que a análise do sistema-mundo não é uma teoria, senão um protesto contra temas negados ou ocultados e contra enganosas epistemologias.” [5]

Se requer bem mais do que isso e na mensagem dirigida às jovens gerações o mestre disse, com todas as letras: “leiam Marx e não tanto os que escrevem sobre Marx”. “As pessoas devem ler figuras interessantes” — nos diz — “e Marx é o erudito mais interessante dos séculos 19 e 20. Não há dúvidas a respeito. Ninguém é comparável, em termos da quantidade de coisas que escreveu, nem pela qualidade de suas análises. Portanto, minha mensagem à nova geração é que vale muito a pena descobrir Marx, mas há que ler, ler e ler. Ler Karl Marx!”

Esse foi um de seus últimos conselhos para entender a natureza e a dinâmica de um sistema, o capitalismo, o qual já em 2009 lhe atribuía no máximo duas ou três décadas de sobrevida. Seria bom que nas universidades latino-americanas se tomasse nota deste conselho, haja vista o ostracismo ao qual usualmente é relegada a obra de Marx e os marxistas, eliminados pelo “bem pensar” da academia como expressões de uma ideologia e não como uma teoria e uma filosofia que contribuem mais do que qualquer outra ao entendimento do mundo atual. Mas como lembrava oportunamente Bertolt Brecht, “o capitalismo é um cavalheiro que não gosta que o chamem pelo nome” e o marxismo precisamente tem a ousadia de o fazer, daí sua marginalização nos claustros universitários.

Obrigado, Immanuel, pelas luzes que nos deu ao longo de tantos anos! Tua obra não cairá no esquecimento e estarás sempre conosco e com os que seguirem sem pausa a luta para superar historicamente o capitalismo e pôr fim à dominação do capital.

Notas

[1] Uma versão abreviada deste artigo foi publicado por Página/12 em sua edição impressa do dia 2 de setembro de 2019.

[2] Cf. “Las consecuencias mundiales de la decadencia de Estados Unidos”, La Jornada (México) 28 de Agosto de 2011.

[3] Carlos Prieto, “El capitalismo no existirá en 30 años”, entrevista a Immanuel Wallerstein en Público (España) 31 de enero2009.

[4] A versão original foi publicada com o título The world is out of joint. World-historical interpretations of continuous polarizations (Boulder, Colorado: Paradigm Publishers, 2014)

[5] Cf. https://www.iwallerstein.com/intellectual-itinerary/

* Dr. Atilio A. Boron, diretor do Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini (PLED), Buenos Aires, Argentina. Prêmio Libertador ao Pensamento Crítico 2013.

** Traduzido por Vanessa Martina Silva


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Atilio A. Boron

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