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Brasil quer privatizar a Previdência enquanto outros países provam que isso não funciona

De trinta países em desenvolvimento que privatizaram nos últimos anos seus sistemas de aposentadoria, dezoito já voltaram atrás
Jocelio Henrique Drummond
Teoria e Debate
São Paulo

Tradução:

A proposta de contrarreforma da Previdência encaminhada ao Congresso Nacional pelo governo de Jair Bolsonaro ataca o tripé estruturante da Seguridade Social no Brasil, conquistado e cravado na Constituição Federal de 1988, segundo o qual o Estado brasileiro tem o dever de garantir proteção à população do nascimento até a morte nas áreas da Saúde, Assistência Social e Previdência Social.

O conceito da Proposta de Emenda Constitucional no 6/2019, que trata do tema, tem os seguintes fundamentos: aumentar o tempo de contribuição, dificultando ao máximo o acesso a aposentadoria e pensões, reduzir bastante o valor dos benefícios recebidos e oferecer para o ainda incipiente mercado de previdência privada no Brasil a oportunidade – ou garantia – de forte crescimento.

A expansão desse mercado interessa a quem? Ao olharmos para processos similares implantados em alguns países, os quais têm a mesma velha e ineficaz lógica neoliberal, podemos afirmar que para alcançar os objetivos de desenvolvimento social e econômico, combater as desigualdades e alcançar maior distribuição de renda, não é à população que interessa essa expansão do mercado de aposentadorias privadas que, no fim das contas, só vai beneficiar os bancos, em especial os bancos privados multinacionais.

Nosso vizinho Chile, que inspirou a proposta de reforma da Previdência em pauta no Brasil, é a comprovação disso. A transição do sistema de repartição solidária da Previdência – ou seja, tanto para trabalhadores da iniciativa privada como para os servidores públicos – para o de privatização irrestrita ocorreu em meio à ditadura militar de Augusto Pinochet. Somente sob um regime ditatorial, que impede qualquer movimento de oposição, é que a reforma se impôs.

De trinta países em desenvolvimento que privatizaram nos últimos anos seus sistemas de aposentadoria, dezoito já voltaram atrás

Foto: Antônio Cruz/ABr
É balela o argumento de que quem é pobre e ganha menos será poupado e valorizado e quem é rico será penalizado

O regime de capitalização funciona de forma individualizada. Cada pessoa faz uma poupança previdenciária que é gerida por entidades privadas; no caso do Chile, são as conhecidas e predadoras AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão), que investem esse dinheiro no mercado financeiro. Assim, cobram altíssimas taxas de administração, mas não se responsabilizam pelos riscos ocasionais desse tipo de rentismo; as possíveis perdas são descontadas dos filiados ao fundo de pensão – para as AFPs, vigora, portanto, o já famoso “capitalismo sem risco”.

Uma dessas empresas é a multinacional BTG Pactual, do Brasil, de onde vem o atual ministro da Economia Paulo Guedes. Como o BTG atua no segmento de previdência privada, podemos dizer sem medo de errar que a proposta de Guedes é em defesa de interesses próprios.
O resultado da experiência chilena é nefasto: 39% da população não têm nenhum direito de aposentadoria; quem a tem, na maioria das vezes, recebe um valor muito menor do que o salário que obtinha quando na ativa. Atualmente, nove entre cada dez aposentados do Chile recebem 60% do salário mínimo vigente, muito abaixo das necessidades reais de qualquer idoso.

Um dos argumentos utilizados para se defender a reforma previdenciária no Brasil é justamente o que foi usado no Chile em 1983: o estímulo ao crescimento econômico. Porém, crescimento do PIB (no Chile, previsto para 3,5% em 2019, segundo a JPMorgan) não é sinônimo de maior distribuição de renda. Basta ver que no país andino os 5% mais ricos da população ganham 830 vezes mais que os 5% mais pobres e o Chile está entre os países considerados mais desiguais do mundo. Atualmente, são fortíssimas as pressões e mobilizações pela reversão da privatização da Previdência no país.

No México, no Peru e na Colômbia, países que também implementaram sistemas de capitalização, a situação é parecida. No México, o novo governo, de centro-esquerda, trabalha uma proposta de mudança no sistema previdenciário de forma a corrigir as grandes distorções e torná-lo mais justo. O Peru tem estudado medidas como tornar o sistema misto, com a entrada do setor público na gestão, e aumentar a contribuição. A Colômbia depara-se com a grande maioria da população excluída do sistema de capitalização devido à precarização das relações de trabalho, com grande parte dos trabalhadores em situação informal de “emprego” – realidade que mostra o lado sombrio e excludente desse tipo de sistema.

Um estudo de 2018 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – “Reversing Pension Privatizations: rebuilding public pension systems in Eastern Europe and Latin America” (em tradução livre, “Revertendo as privatizações dos sistemas de pensão: reconstruindo os sistemas públicos de pensão no Leste Europeu e na América Latina”) – mostra que de trinta países em desenvolvimento que privatizaram nos últimos anos total ou parcialmente seus sistemas de aposentadoria, dezoito já voltaram atrás em função da ineficácia do setor privado em garantir a extensão e os valores mínimos dos benefícios à população. Ou seja, querem que o Brasil caminhe na contramão da tendência mundial.

Outros argumentos que têm sido utilizados para defender a implementação do sistema de capitalização no Brasil é o fim dos chamados privilégios e/ou vantagens que servidoras e servidores do setor público teriam, em detrimento do conjunto da população, e o de que quem é pobre e ganha menos será poupado e valorizado e quem é rico será penalizado. Balela! Mentira! O sistema de capitalização vem casado com a privatização da Previdência, e em nenhum país do mundo esse formato se mostrou mais justo, abrangente e igualitário, muito pelo contrário.

Quando observamos as experiências internacionais, salta aos olhos que, em vez de igualar direitos e elevar o patamar de aposentadorias (abrangência, acesso, valor e a política de reajuste dos benefícios) para trabalhadores do setor privado, esse tipo de reforma rebaixa o conjunto das aposentadorias para todos, com o agravante de que jovens, mulheres, negros e as pessoas que estão em situação de informalidade são ainda mais impactadas devido às já existentes desigualdades impregnadas nas relações de trabalho tão precarizadas.
Ademais, as diferenciações efetivas do ponto de vista de privilégios comprovadamente não ocorrem na grande massa de servidores públicos, cuja garantia da aposentadoria “integral e paritária” gera pouca ou nenhuma diferença em relação a uma aposentadoria de trabalhadores da iniciativa privada. Ter integralidade, na maioria das vezes, significa se aposentar com o baixo salário recebido durante toda a vida ativa (principalmente nos municípios e estados), e paridade é estar submetido à mesma política de reajuste de quem está na ativa.

No estado de São Paulo, por exemplo, um trabalhador aposentado da saúde estadual, após sete anos sem nenhum reajuste, recebeu em 2018 um aumento igual ao dos colegas da ativa: 3,5%. Portanto, a diferença e o impacto real ocorrem, na verdade, nas categorias que possuem os maiores salários, como juízes, militares e algumas poucas carreiras especiais.

Países como França, Alemanha e Argentina, por exemplo, mantêm sistemas separados e diferenciados de aposentadoria para servidores públicos, mas com uma diferença fundamental em relação ao caso brasileiro, e nem por isso são acusados de privilegiados: os servidores alcançaram o direito à negociação coletiva e, consequentemente, à equiparação salarial e de benefícios com os trabalhadores do setor privado, garantindo assim uma política de valorização dos servidores e dos serviços públicos, o que interfere positivamente na qualidade, continuidade e melhoria dos serviços prestados à população.

Vale ressaltar que no Brasil, conforme queixa protocolada na Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelas centrais sindicais e pela Internacional de Serviços Públicos (ISP) em dezembro de 2018, a Convenção 151, ratificada pelo país e que garante o direito à negociação coletiva e de organização sindical no setor público, está sendo desrespeitada.

Podemos recorrer a outros exemplos internacionais para desmentir a ideia de que haja privilégios em todo o regime próprio de Previdência de servidores. Em quatro países de elevado padrão e qualidade de vida – Holanda, Suécia, Finlândia e Luxemburgo –, os sistemas da iniciativa privada e do setor público são separados, mas com benefícios similares.

Na verdade, o que cabe aos setores progressistas, ao campo democrático e aos movimentos sociais é desvelar o véu da falsa argumentação de que há um déficit da Previdência e que, com a implantação de um sistema de capitalização, teríamos justiça social entre ricos e pobres ou entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada.

Precisamos de unidade, e informar o povo – para valer – de que o “déficit previdenciário” e nas contas públicas é resultado da escandalosa, porém aparentemente invisível, falta de justiça fiscal, da grande evasão e elisão fiscal, e também da inadimplência das grandes empresas devedoras da Previdência Social.

Por trás do discurso do governo Bolsonaro de modernidade e maior igualdade nas aposentadorias, precisamos denunciar que predomina o objetivo de entregar o Brasil aos interesses do capital privado internacional, jogando ladeira abaixo nosso futuro, direitos e a soberania nacional.

Quem tem a tarefa e a capacidade, em aliança com os movimentos sociais, de prioritariamente fazer essa denúncia? O movimento sindical. Por isso acirram-se os ataques governamentais com o objetivo de destruí-lo, por meio da contrarreforma trabalhista e sindical de 2017 e, recentemente, da inconstitucional Medida Provisória 873, que retira o direito do sindicato de descontar em folha de pagamento a mensalidade sindical dos trabalhadores e trabalhadoras voluntariamente sindicalizados. Assim, como em 1983 no Chile, o desgoverno Bolsonaro no Brasil de 2019 não tolera críticas e questionamentos. Mas o resultado aqui será diferente.

Jocelio Henrique Drummond é secretário Regional para Interaméricas da Internacional de Serviços Públicos (ISP)
Denise Motta Dau é secretária Sub-regional da ISP para o Brasil (a ISP é uma federação sindical internacional que representa 20 milhões de trabalhadoras e trabalhadores públicos em 163 países)

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jocelio Henrique Drummond

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