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Beatriz Bissio*
Quando recebi a notícia da morte de Eduardo Galeano, um ser humano e um escritor de extraordinário valor, senti que necessitava homenageá-lo, mesmo que fosse de forma singela, evocando as lembranças da sua forte presença em diferentes momentos da minha vida. Comecei a escrever quase sem pensar, pois rapidamente ia fluindo na minha memória uma avalanche de lembranças, deixando mais perceptível o sentimento de perda. A escrita, era a única ferramenta com a qual podia render essa homenagem, pois a palavra e a escrita, trabalhadas com arte e beleza, foram seus instrumentos na longa caminhada de jornalista e de escritor; com elas Galeano cantou a vida, deu voz aos que não têm voz, denunciou a injustiça, acalentou os sonhos.
Tive o privilegio de conhecer Eduardo Galeano em 1974, em Buenos Aires, quando ali cheguei com o meu companheiro, Neiva Moreira, no contexto da resistência às ditaduras instaladas no Brasil, Chile, Uruguai. Ele era um grande amigo do Neiva, que tinha vivido nove anos exilado no Uruguai, onde eu o conheci. Galeano e Neiva Moreira tinham trabalhado juntos, com outros jornalistas, no semanário “El Oriental” (o nome oficial do Uruguai é “República Oriental do Uruguai”). Essa publicação, vinculada ao Partido Socialista, circulou no Uruguai, antes da ditadura, graças ao empenho de sonhadores e quixotescos militantes que não só nada recebiam pelo trabalho como financiavam do próprio bolso, em grande medida, essa publicação.
Já exilado (o golpe de Estado que instaurou a ditadura no Uruguai tinha acontecido em 27 de junho de 1973), Galeano editava, na Argentina, a revista “Crisis” (Crise), onde também conheci o seu amigo e colaborador, Eric Nepomuceno. Da equipe editorial faziam parte, ainda, a jornalista Julia Constenla e o escritor e poeta Juan Gelman. Galeano tinha publicado em 1971 “As veias abertas da América Latina” um livro que rapidamente tornou-se um clássico, depois de receber elogios em todos os continentes de consagrados escritores, jornalistas e intelectuais e de receber uma aceitação ímpar de parte do público. “Nos últimos anos tenho lido poucas coisas que tenham me comovido tanto”, afirmara o Prêmio Nobel de Literatura alemão Heinrich Boll, num discurso em Colonia, em 1976. O livro voltou às manchetes internacionais no século 21, quando em 2009, durante uma reunião de Barak Obama com os líderes da União de Nações Sul-americanas (UNASUR), pouco antes do início da plenária da Conferência de Cúpula das Américas, em Trinidade Tobago, o presidente venezuelano Hugo Chávez presenteou o seu homólogo norte-americano com um exemplar. “Memória do fogo” de 1986, “O Livro dos Abraços, de 1989, “Os Filhos dos Dias”, de 2012 e “As veias abertas de América Latina” são os livros de Galeano mais conhecidos. Esses livros, além de outros – Mulheres (1997), Días y noches de amor y de guerra (1978), Voces de nuestro tiempo (1981); Las palabras andantes (1993), O futebol ao sol e à sombra (1995), entre outros – foram traduzidos a mais de vinte idiomas e têm um número recorde de reedições.
O exílio na Argentina e a revista Crisis
Galeano recebeu o convite para assumir a direção da revista “Crisis” em Montevidéu, a fins de 1972, pouco antes do golpe de estado no seu país. A publicação tinha sido pensada inicialmente como um espaço onde poderiam ser comentadas as obras que estavam fazendo sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Mas Galeano mudou a linha editorial: Nós fizemos una revista radicalmente diferente, que procurava divulgar a cultura da América Latina”, declarou numa entrevista, referindo-se à decisão que adotara desde os seus primeiros momentos à frente da publicação. O primeiro número de “Crisis” sob a direção de Galeano tinha tido uma tiragem de dez mil exemplares, rapidamente esgotados.
Neiva Moreira e eu costumávamos encontrar Galeano na sede da Editora La Línea, fundada por Federico “Fico” Vogelius e levada adiante pela jornalista Julia “Chiquita” Constenla. Essa importante escritora e jornalista argentina, falecida em 2011 aos 83 anos, tinha no seu currículo, entre outros trabalhos, as biografias do romancista e ensaísta Ernesto Sábato, Prêmio Cervantes de Literatura, da mãe de Ernesto “Che” Guevara, de quem acabou tornando-se amiga e a ex presidenta chilena Michelle Bachelet e do ex presidente argentino Raúl Alfonsín.
Julia Constenla acolheu o projeto da revista Cadernos do Terceiro Mundo, acalentado junto com outro grande jornalista argentino, Pablo Piacentini, fato que nos fez partilhar do mesmo teto, digamos assim, que Galeano, com a sua revista “Crisis”. Daí que Pablo Piacentini, Neiva Moreira e eu, trabalhando na revista “Cadernos do Terceiro Mundo” (na altura chamada “Tercer Mundo”) tenhamos convivido com Galeano na sede da Editora generosamente cedida para esses projetos por Julia Constenla. De cada encontro surgiam novas ideias para as nossas publicações e uma fecunda troca de pontos de vista a respeito dos difíceis momentos que estávamos vivendo e das perspectivas futuras. Desse convívio também participava o escritor uruguaio Mário Benedetti, como nós, exilado e acolhido por Julia Constenla na Editora La Línea. Benedetti dirigia a coleção “Esta América”, dedicada a lançar livros de temas latino-americanos.
A partir de então, a amizade consolidou-se e Galeano passou a ser um colaborador assíduo de Cadernos do Terceiro Mundo, mesmo quando já era um escritor reconhecido em todo o mundo.
“Época” e “Marcha”: época de ouro do jornalismo no Uruguai
Antes de exilar-se, Galeano tinha dirigido, nos anos 1960, no Uruguai, o diário “Época”, um combativo jornal que visava a formação da militância de esquerda, com uma clara orientação anti-imperialista. Essa linha editorial custou a clausura definitiva do jornal quando a situação política uruguaia começou a deteriorar-se de forma irreversível, depois da morte do Presidente Oscar Gestido, em 1967, e da sua substituição pelo vice-presidente, Jorge Pacheco Areco.
Galeano também fazia parte da equipe editorial do prestigioso semanário “Marcha”, dirigido por Carlos Quijano. Esse semanário, cujo logotipo exibia uma nave com os disseres “Navigare necesse, vivere non necesse”, foi publicado no Uruguai desde 1945 e a sua última edição, em novembro de 1974, marcou o fim de uma era do jornalismo latino-americano. Isso porque “Marcha” era um semanário lido e comentado em toda a América Latina. Vários estudiosos afirmam não ser possível entender o cenário político uruguaio e latino-americano das décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial até os anos 70 sem fazer um mergulho nas páginas do semanário “Marcha”. Além de Eduardo Galeano, que foi seu chefe de redação, muitos outros intelectuais uruguaios como Ángel Rama, Mario Benedetti, Carlos Martínez Moreno, Mercedes Rein, foram colaboradores de “Marcha”. O Ché Guevara escreveu uma carta a Carlos Quijano, desde Argel, publicada em “Marcha” e transformada num importante documento histórico, chamada “El socialismo y el hombre em Cuba”. [1]
Depois do golpe de estado de Videla, na Argentina, em 1976, Galeano teve que abandonar o país e exilou-se na Espanha. Da equipe de “Crisis”, da “Cadernos do Terceiro Mundo” e da Editora “La Línea” nada restava; vários jornalistas e escritores figuravam nas listas dos “desaparecidos” (entre eles Haroldo Conti e Rodolfo Walsh) e muitos outros tinham saído da Argentina e se asilado em diferentes países. Neiva Moreira e eu fomos para o Peru, assim como Pablo Piacentini, e depois fomos para o México, quando Pablo partiu para Itália, onde já estava “Chiquita” Constenla.
Sem deixar o jornalismo, Galeano concentrou-se, a partir de então, na atividade de escritor, à qual haveria de se dedicar até o fim da vida. Tinha plena consciência da importância de seus escritos – sobre temas que ele abraçou com fervor – como instrumento para permitir o acesso de um grande número de leitores ás ideias por ele defendidas e às informações que iam contra a visão de mundo dominante.
Ourives das palavras
Galeano trabalhava as palavras como um verdadeiro ourives; gostava de lapidar as frases e de enxugar o texto até onde for possível. Nas suas últimas obras ele conseguiu, com uma capacidade de síntese extraordinária, passar a sua mensagem em textos curtos, curtíssimos, sem desperdício. E manteve-se fiel aos inícios de sua carreira, quando ingressou como ilustrador e cartunista no semanário socialista “El Sol” utilizando o apelido “Gius”, uma adaptação de seu sobrenome paterno, Hughes, já que o seu nome completo era Eduardo Germán Maria Hughes Galeano, sendo Galeano o sobrenome da sua mãe. “Sempre soube que não poderia assinar Eduardo Hughes – por mais respeito que pudesse ter pela figura do meu pai -, porque esse sobrenome inglês não fazia jus à minha vocação de escrever sobre as nossas mais profundas raízes latino-americanas”. Essa foi a sua resposta, numa das várias entrevistas que concedeu a “Cadernos do Terceiro Mundo”, quando lhe perguntei a razão de ele ter assumido como nome profissional, o sobrenome materno. A fidelidade às origens de cartunista, alimentada pela facilidade e gosto pelo desenho, marcou a sua obra: Galeano fazia questão de ser, ele próprio, o ilustrador de seus livros. Em muitos casos, ele mesmo desenhava a capa.
A militância de Galeano não era só com a palavra. Desde as suas primeiras incursões no jornalismo – com diversas passagens por publicações e semanários de esquerda – ele conciliava a profissão com uma ativa participação política; e manteve-se até o final como um intelectual militante. Depois de regressar ao Uruguai, após a redemocratização, integrou a “Comissão Nacional Pro Referendo”, entre 1987 e 1989. O objetivo dessa Comissão era criar as condições para revogar a chamada Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado (a lei promulgada em dezembro de 1986, que impedia o Estado uruguaio de julgar os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura).
Em 2005, Galeano levou ao delírio uma plateia que lotava o maior espaço de reuniões do Foro Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a sua brilhante e emotiva participação numa mesa redonda, da qual também faziam parte José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, na altura com 83 anos, e Ignacio Ramonet, diretor de Le Monde Diplomatique em Espanhol, sob a coordenação do jornalista italiano-latino-americano Roberto Savio.
Quando o Uruguai teve a oportunidade de dar uma guinada profunda na política, em 2004, Galeano deu apoiou público à coligação Frente Ampla. E e por primeira vez na história do Uruguai, a esquerda ganhou uma eleição nacional, conquistando a presidência do país com candidato Tabaré Vázquez, médico oncologista, que já tinha sido por duas vezes prefeito da capital, Montevidéu.
Um ano depois, em 2005, Galeano foi convidado para integrar o Comité Consultivo da recém criada Telesur, a rede de televisão internacional idealizada pelo presidente Hugo Chávez. Quando Barak Obama assumiu a presidência dos Estados Unidos, Galeano respondeu desta maneira uma pergunta sobre o significado dessa vitória: “A Casa Branca, que em breve será o lar de Barak Obama, foi construída por escravos negros. Espero que ele nunca se esqueça disso.”
Generosamente, em 24 de novembro de 2006, Eduardo Galeano aceitou o nosso convite e foi o conferencista no evento de relançamento do Instituto Cultural Brasil-Uruguai (ICBU), realizado no anfiteatro da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Apresentado por Eric Nepomuceno a uma plateia que lotou o local do evento, constituída por brasileiros, uruguaios e latino-americanos de várias latitudes, como tantas outras vezes, com as suas palavras Galeano provocou grande emoção em todos aqueles que o escutavam.
Aos 74 anos Galeano faleceu, no último 13 de abril, em Montevidéu; foi derrotado por um câncer de pulmão, com o qual convivia desde 2007. O seu corpo foi velado na sede do Congresso, no imponente prédio de mármore branco do Palácio Legislativo da capital uruguaia. As mais importantes figuras do Uruguai e numerosos representantes de países estrangeiros foram render-lhe uma última homenagem, assim como milhares de populares. Presente à cerimônia, o presidente Tabaré Vázquez lembrou o legado literário, político e ético deixado pelo escritor. “Galeano deixa-nos uma lição de vida, de ética, de coerência. Ele escreveu como viveu e viveu como escreveu”, afirmou. E acrescentou: “Ele foi um claro expositor da crua realidade da nossa América Latina e incansável na tarefa de dar voz aos humildes.”
Fisicamente Galeano deixou-nos em 13 de abril. Mas, ele era imortal mesmo antes da sua morte, como acontece com os homens e as mulheres que pautam a sua vida em prol das grandes causas da Humanidade. Foi sem dúvida um privilégio ter contado com a sua amizade e com a sua aguda análise da realidade nas páginas da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”.
Galeano, um dos grandes homens do século del siglo 20, que soube, como poucos, compreender os desafios do século 21, viverá para sempre na memória de todos os povos que evocou e dignificou com as suas palavras.
*Beatriz Bissio – Membro da equipe fundadora de Cadernos do Terceiro Mundo e de Diálogos do Sul
[1] Ver: FAZIO, Carlos. En la barca de Carlos Quijano y su Marcha fecunda. Centro Mexicano de Estudios Sociales. Contribuciones al pensamiento social de América Latina. México, DF: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p. 185-198