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À beira da implosão: 33 após golpe de Estado, Panamá pode renascer com soberania popular

Mesmo quando regime de protetorado se viu formalmente cancelado em 1999, deixou um legado cultural e político que se renova com a crise em curso
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“A colônia continuou vivendo na república;
E nossa América se está salvando de seus grandes erros
– da soberba das cidades capitais,
Do triunfo cego dos camponeses desdenhados,
Da importação excessiva das ideias e fórmulas alheias,
Do desdém inócuo e impolítico da raça aborígene –
Pela virtude superior, adubada com sangue necessário,
Da república que luta contra a colônia.”

José Martí, 1891[1]

Estes são tempos em que todos esperam explosões sociais. O que ocorre, no entanto, quando a ordem social e política não explode, mas se esmigalha sob o peso acumulado das contradições que as corroem? Ocorre uma implosão – que como todo o processo de decomposição gera seu próprio calor –, de consequências mais imprevisíveis que as da grande desordem contra o que nos advertem cada dia os arautos do Estado, seus partidos políticos e aqueles que antanho se chamavam a si mesmos “as forças vivas” do país. 

Tal é o caso em curso no Panamá. Aqui, a restauração conservadora imposta pelo golpe de Estado de dezembro de 1989 veio desembocar 33 anos depois em sua situação de crescimento econômico incerto; iniquidade social persistente; degradação ambiental; disfuncionalidade institucional crescente, e uma desesperança cada vez mais ampla na capacidade da ordem vigente para encarar os problemas que essa ordem tem criado.

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A mais cômoda e versátil das explicações a estes males por parte dos grandes beneficiários do que então foi promessa e hoje vai sendo desengano é de uma simpleza exemplar. Tudo se deve, dizem, à corrupção, que por sua vez se deve à perda de valores cívicos que resulta do deterioro mal da família e da educação, e se consolida com o desperdício de recursos públicos no subsídio à pobreza e ao clientelismo político

Desde outra perspectiva, ainda em formação, setores políticos emergentes percebem, e vão ganhando em capacidade para expressar, que esses cinco problemas maiores constituem em realidade expressões distintas e interatuantes de um mesmo problema maior; o do esgotamento do modelo de desenvolvimento imperante no país desde século XVI. Este modelo combina hoje, para dizer como Marx, os problemas que gera o capitalismo com os que derivam do caráter desigual e combinado desse desenvolvimento. Assim, 

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Ademais das misérias modernas, nos sufoca toda uma série de misérias herdadas, resultantes de que seguem vegetando modos de produção vetustos, meras sobrevivências, com sua corte de relações sociais e política anacrônicas. Não só padecemos a causa dos vivos, mas dos mortos.
Le mort saisit le vif! [ o morto apanha ao vivo!][2]

Mesmo quando regime de protetorado se viu formalmente cancelado em 1999, deixou um legado cultural e político que se renova com a crise em curso

Foto: Geoff Gallice
O próprio sentido de cidadania se vê erodido pelo ciclo de incompetência e corrupção gerado pelo regime político instalado em 1989




Histórico

Os mortos que apanham os vivos aqui e nutrem das raízes de uma precoce inserção no desenvolvimento do mercado mundial como centro de serviços à circulação de pessoas, mercadorias e capitais. Em sua versão inicial, ainda de caráter pré-capitalista, essa função foi organizada a partir do interesse da Coroa espanhola em garantir o controle comercial e político sobre o Istmo que a vinculava às suas posses do Pacífico sul-americano. Já no século 20 esse controle ingressou à modernidade mediante o protetorado militar imposto ao Panamá pelos Estados Unidos com o tratado Hay-Bunau Varilla, de 1903.

Aquele tratado, como sabemos, tratado, como sabemos, endossou a separação do Panamá da Colômbia; outorgou aos Estados Unidos o monopólio do trânsito marítimo pelo Istmo mediante a construção de um canal interoceânico ao amparo de um enclave conhecido com a Zona do Canal, e concedeu e outorgou o direito a intervir manu militari para preservar a ordem nas cidades de Panamá e Colón. A Constituição de 1904, por sua vez, ampliou a todo o país o alcance desse direito à ingerência, por iniciativa dos políticos que a redigiram. 

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Mesmo quando esse regime de protetorado, depois de seu golpe maior em dezembro de 1989, se viu formalmente cancelado em dezembro de 1999, ao culminar a execução do Tratado Torrijos-Carter, deixou um legado cultural e político que se renova com a crise em curso. Isto tem sua importância quando o enclave de serviços transnacionais criados de então para cá em torno ao Canal parece ter dado tudo de si, e o modelo transitório só pode garantir o crescimento sustentado da economia panamenha por conta do sacrifício da população trabalhadora, dos ecossistemas do Istmo, de uma democracia eternamente frágil, e do desencontro constante entre a soberania popular e a nacional. 

Ante esse deterioro, a solução invocada pelos administradores da coisa pública no aspecto econômico consiste em agregar aos ingressos que gere o Canal aos que gere a exploração de uma grande mina de cobre e ouro a céu aberto, localizada na vertente atlântica do Istmo, que já devastou milhares de hectares do bosque tropical. E isso ademais é promovido como o despegue do projeto de fazer do Panamá uma “nação mineira”. 

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Para os setores aqui dominantes, essa combinação de enclaves de serviços transnacionais e extrativismo resulta sumamente atraente em sua capacidade para gerar ingressos sem correr os riscos de uma transformação social. Assim a transferência do Canal ao Estado panamenho, depois de gerar entre 2000 e 2020 ingressos ao Tesouro Nacional de 18 bilhões e 700 milhões de dólares, permitiu à Autoridade do Canal do Panamá investir 5 bilhões na ampliação da via interoceânica entre 2009 e 2016, ademais dos ingressos gerados por esse investimento. A grande mineração, por sua parte, investiu cerca de 6 bilhões de dólares entre 2012 e 2019, que para o ano de 2021 gerariam renda por aproximadamente 2 bilhões. [3]

Contudo, a outra cara desta economia é muito menos satisfatória. No limite entre o aspecto econômico e o aspecto social, a metade da força de trabalho do país está na informalidade, e os índices de pobreza permanecem contidos por quantiosos subsídios financiados com dívida externa, enquanto os serviços públicos de educação, saúde, gestão de resíduos e segurança social atravessam por um deterioro sustentado. Nestas circunstâncias o próprio sentido de cidadania se vê erodido pelo ciclo de incompetência e corrupção gerado pelo regime político instalado em 1989, que sumiu o país em uma situação de incerteza e deterioro, que por momentos recorda à que padeceu em fins da década de 1960.

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Esta situação se vê agravada pelo baixo nível de organização dos setores populares e de capas médias, pelo prolongado empantanamento de nosso pensamento político no dogmatismo neoliberal, e pelo peso do legado cultural e político do protetorado. Ainda assim – e talvez em reação a esse empantanamento – o ciclo que se fecha inaugura uma crescente convergência de agrupamentos de políticos e intelectuais contestatários, que inclui o ingresso à vida política e cultural de um relevo geracional, que anuncia uma inovação como o mostrada por José Martí ao saudar sem seu ensaio Nuestra América, de 1891 que

Os jovens de América arregaçam as mangas, afundam as mãos na massa, e a levantam com a levedura de seu suor. Entende que se imita demasiado, e que a salvação está em criar. Criar é a palavras de passe desta geração.[4]

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Essa capacidade de criação se expressa hoje na construção de uma visão de país que transcende a cultura da transição e alenta a formação de uma política nova, que rechaça aquela “importação excessiva de ideias e fórmulas alheias” para encarar a partir de nossa realidade o conjunto dos problemas do país. Promove-se agora o exercício de nossas capacidades para passar da denúncia de nossos males ao estudo das manifestações de nossos problemas econômicos, sociais, ambientais, culturais e políticos mais relevantes, para encará-los em seu conjunto – não por partes, nem mediante iniciativas dispersas e exercícios de postergação de decisões que possam afetar o modelo de transição.

Essa passagem da denúncia à análise facilita o que vai da proposta ao programa de luta política necessária para encarar a crise em suas causas. Com isso, começa a se tornar possível o exercício das capacidades de nossa gente para iniciar, ao calor gerado pela implosão em curso da sociedade que fomos, a forja em nossa terra de uma sociedade na qual a soberania popular e nacional coincidam, e cujo desenvolvimento seja sustentável pelo humano que chegue a ser. 

Referências

[1] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. VI, 19.
[2] El Capital. (1867) Prólogo à primeira edição. Marx, Karl (2019: 268)): Antología. Selección e Introducción de Horacio Tarcus. Siglo XXI editores, Buenos Aires.
[3] Chapman Jr., Guillermo: Hacia una nuevas visión económica y social de Panamá. Una propuesta para la reflexión. Panamá, 2021.
[4] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975. VI, 20.

Alto Boquete, Panamá, 3 de maio de 2023

Guillermo Castro H. | Colunista da Diálogos do Sul
Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Guillermo Castro H.

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