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A falsa conexão entre o socialismo autogestionário e o fascismo da "Nova Resistência"

Corrente política trata-se de um fascismo jeca, que desdenha do que é autenticamente popular na brasilidade
Redação CREK
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

O fascismo nasce das frustrações com a modernidade. É, no dizer de intérpretes tão distintos quanto Clara Zetkin e Umberto Eco, uma manipulação das classes proprietárias sobre os trabalhadores, explorando os atritos entre os modos de vida pré-capitalistas e a sociabilidade moderna, iluminista e cosmopolita.

São palpáveis, por exemplo, nos choques típicos de quando interioranos chegam à metrópole e se deparam na rua com outras existências que lhes são estranhas, ou que em seu vilarejo de origem seriam relegadas à marginalidade e às violências normalizadas – o queer, a puta, o punk, o louco, a travesti, o bêbado da praça –, sem conseguir entender que, nesses espaços de urbanidade, os “diferentes” têm os mesmos direitos e a mesma legitimidade.

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Quando prega ou, pior, põe em prática a violência contra essas existências, crendo-se tão autorizado a fazê-lo quanto em seu meio de origem pré-moderno (“de onde eu venho, esse tipo de gente se trata no sopapo”), dá-se a manifestação mais primitiva, banal e vulgar do fascismo.

No caso da corrente política autodenominada Nova Resistência, trata-se de um fascismo jeca. Recorremos aqui ao termo “jeca” não na associação com o caipira, um tipo social legítimo do campesinato brasileiro, especialmente na histórica área de expansão paulista (na conotação que tinha na era colonial), mas sim no sentido pejorativo de sujeito simplório, autoaverso e com característico complexo de inferioridade (ou viralatismo) e de profundo desdém pelo que é autenticamente popular na brasilidade.

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Nosso jeca não é o “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato (ainda que o protagonista de Urupês carregue o preconceito contra o caipira imaginário), mas o lavajatista de classe média que fantasia seus filhos no Halloween, o patriotário que bate continência para a bandeira dos EUA, o carioca de subúrbio que lê devaneios de um russo oportunista como pilares de uma “quarta teoria política” inédita para a interpretação da História.

Nova Resistência

Na entrevista concedida ao jornalista Breno Altman, do site e canal Opera Mundi, o líder da corrente Nova Resistência, Raphael Machado, titubeou inúmeras vezes ao tentar justificar o fim do estado laico, confundiu-se na resposta sobre apoio ao marco temporal para terras indígenas (primeiro disse ser contra, depois trocou para o exato oposto), errou feio ao colocar a “família” como base da Constituição da União Soviética (qual? a de 1924, a de 1936 ou a de 1977?), mostrou-se desinformado quanto às críticas marxistas a regimes teocráticos e, o que nos afeta diretamente em nosso coletivo, reivindicou um “cooperativismo” e “aplicação de um socialismo autogestionário generalizado com exceções” numa visão “mais ou menos titoísta” segundo o próprio.

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Trata-se de uma salada de ignorância temperada com delírio, é verdade, mas é preocupante que eventuais espectadores incautos saiam do vídeo achando que “titoísmo” seja, de qualquer forma, conciliável com o fascismo jeca que a NR defende. 

Breno Altman, exímio entrevistador, rebateu afirmações sabidamente falsas (como a laicidade do Estado de Israel) e desmascarou sinais de nascença fascistas encobertos por tatuagens de nacionalismo. Mas deixou passar em branco o trecho logo no início (por volta dos 18 minutos) em que Machado tece elogios ao sistema do Marechal Tito na Iugoslávia e descreve, em linhas gerais, o que seria a sua economia dos sonhos, com empresas geridas pelos trabalhadores convivendo com pequenas propriedades privadas, sobretudo familiares, sem exploração do trabalho e com plena liberdade de iniciativa.

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Ora, há pelo menos uma diferença fundamental aí que escapou tanto ao convidado quanto ao entrevistador: na Iugoslávia de Tito não havia ausência de planejamento econômico, mas um planejamento descentralizado de forma orgânica, inscrito na Constituição Federal e amplamente debatido em várias instâncias, nas quais o Partido (único e comunista) tinha papel dirigente, não aparelhador. Só mostra a capacidade extremamente baixa do fascista jeca de ler um fenômeno social e uma experiência socialista.

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Corrente política trata-se de um fascismo jeca, que desdenha do que é autenticamente popular na brasilidade

Arte: Petros V./Flickr
Nova Resistência, em seu empenho para traduzir estultices de Dugin e seu entrismo no PDT, trabalha para ser a nova cara do jequismo

Raízes em Marx

Há um motivo por trás do fato de o convidado ter falado de um modelo “titoísta” e não leninista ou comunista, e isso parte, intrinsecamente, de uma acusação: a de que existe uma diferença entre a via iugoslava e o marxismo-leninismo grande o suficiente para que o “titoísmo” seja um modelo à parte, uma deturpação, uma ruptura teórica na continuidade Marx-Lenin.

Pelo fato de a experiência de socialismo iugoslavo ser tão pouco estudada no Brasil, esse tipo de concepção mais rasa se torna parte de um certo senso-comum, no qual Tito é reduzido a “o revisionista que negou o grande camarada Stalin” e o “titoísmo” é visto como uma espécie de “socialismo de mercado”, um “socialismo moderado” que abandonou a coletivização da propriedade privada e que abandonou a planificação (o que não aconteceu em momento algum).

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Se, por um lado, essa concepção (extremamente errônea) de que o titoísmo é uma ala moderada do socialismo faz com que marxistas e socialistas se afastem dele, por outro, figuras com uma leitura rasa sobre o tema veem em Tito uma alternativa “menos pior” que os da linha defendida por Stalin.

Ao estudar a construção da linha iugoslava, nós constatamos que as bases econômicas do modelo socialista autogestionário na Iugoslávia não representavam recuos ou desvios com o que foi proposto por Marx e Lenin, mas, pelo contrário, partem de uma crítica ao modelo soviético visando um modelo econômico mais coerente com a coluna vertebral teórica da tradição marxista.

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A estima titoísta pela descentralização não parte de uma tentativa de moderar o modelo soviético, mas de escritos do próprio Marx e suas reflexões sobre o papel do estado na ditadura do proletariado após acompanhar (em vida, não fisicamente) a Comuna de Paris.

Já o apreço de Marx a formas cooperativistas e aproximação do conteúdo presente no conceito de autogestão (que, até então, não existia como conceito, passando a existir a partir dos anos 1960 na Iugoslávia e posteriormente em todo o mundo) aparece também no Manifesto de lançamento da AIT, a Primeira Internacional, no qual Marx se refere às fábricas e movimento cooperativo como algo positivo e, além de acentuar a importância do fim do monopólio dos meios de produção (premissa básica do comunismo) atesta que a produção pode ser realizada sem uma classe de patrões, e que o trabalho assalariado deve desaparecer diante do trabalho associado. A cooperação também aparece em Lênin em textos como “Sobre a cooperação”, assim como o definhamento do estado, ambos conceitos-chave para entender o socialismo iugoslavo e sua linha teórica.

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Dessa forma, é impossível haver um distanciamento do marxismo que possibilite proximidade com o titoísmo: o socialismo autogestionário iugoslavo é fiel ao que foi proposto por Marx e Lenin, e as evidentes contradições dos jeca-fascistas com o marxismo e o leninismo são, também, contradições com o titoísmo.

Sem jogar o bebê fora

Como elucidado pelo próprio apresentador na introdução à entrevista, a chamada quarta teoria política (ou quetepismo), deriva, com verniz de erudição, da aberração “nacional-bolchevismo”, mas revela-se um fiasco em sua retórica de conciliar o inconciliável. Seu DNA fascista é exposto todas as vezes em que Machado ataca a modernidade como causa primária de todos os males e como ameaça ao que considera valores “tradicionais” (sem admitir a historicidade e a arbitrariedade dessas tradições).

Em relação a isso, a diferença elementar entre fascismo e socialismo é que o fascismo rejeita a modernidade in totum (de novo, a figura do jeca querendo agredir tudo que lhe parece “errado”), enquanto o socialismo pretende superar dialeticamente as contradições da modernidade, sem rejeitar os seus avanços. 

As críticas marxistas são ao que há de contraditório na episteme moderna (que inclui o iluminismo e o liberalismo, mas não se esgota neles), jamais pretendendo jogar fora o bebê com a água do banho (como as ideias de direitos universais, da isonomia da lei e da política baseada em discussões racionais).

A própria obra de Edvard Kardelj (quem de fato elaborou teoricamente as bases do sistema que Tito liderou) é orientada pela radicalização da democracia, não se limitando à forma representativa-parlamentar da concepção burguesa, mas estendendo-a a todas as esferas da vida social, a começar pelo ambiente de trabalho.

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A Iugoslávia socialista fez viger os direitos das mulheres, esteve muito à frente da URSS, da China e de Cuba em direitos para pessoas fora da heteronormatividade e, pelo que é mais reconhecida, praticou ação afirmativa para minorias étnicas quando essa ainda era uma luta incipiente nos Estados Unidos.

No caso iugoslavo, as contradições enraizadas (ideia de nacionalidade) e as estratégias para superá-las faziam parte do programa e tomavam um caráter revolucionário, num contexto em que o socialismo foi construído no combate armado contra invasores que compartilhavam valores com a NR, como o de preservar as, segundo Machado, “raízes cristãs ou religiosas que um povo tem”.

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Falta estudar a sociologia da Iugoslávia para entender que, lá, a despeito de ampla liberdade religiosa garantida pelo Estado socialista, prevaleceu a laicidade. Sim: as universidades iugoslavas, com orçamento público, formavam em cursos de bacharelado em Teologia o corpo clerical para os três maiores credos do país: católicos em Zagreb, muçulmanos em Sarajevo e ortodoxos em Belgrado. 

No entanto, o país jamais atribuiu a qualquer um deles, tampouco nas repúblicas socialistas federadas, papel privilegiado na lei ou na forma do Estado. Pelo contrário: as religiões que Machado defende precisamente opuseram-se e ajudaram a esfacelar o socialismo autogestionário que Machado diz defender. É o modo “si hay coherencia, soy contra” de pensar.

DNA do fascismo

O fascismo jeca da Nova Resistência talvez possa ser apelidado de “jequismo”. Esse termo serve para incluir manifestações outras dos neofascismos e criptofascismos brasileiros, principalmente o mal nomeado “bolsonarismo” – que, como tantos autores têm reiterado, não começou com o ex-presidente e não se esgotará com sua derrocada (e eventual prisão).

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O Brasil já viu esse filme antes com outros líderes carismáticos da extrema-direita deixando órfãos que reconfiguram seus legados nefastos. O integralismo de Plínio Salgado foi uma das formas mais aprimoradas de um “fascismo moreno” (para parafrasear Brizola e fazê-lo rolar no túmulo de desgosto). 

Por mais que a Ação Integralista Brasileira (AIB) de 1932-1938 tenha sobrevivido no Partido Republicano Progressista (PRP) de 1945-1965 e, depois dela, se incorporado à Arena (com Filinto Müller exercendo mandato de senador), não foi o único gene diretamente fascista a se incorporar ao genoma da ditadura e a ele sobreviver pós-1985 sob variadas formas, “de Orvil a Olavo”.

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A Nova Resistência, em seu empenho para traduzir as estultices de Dugin e seu entrismo no PDT de Brizola, trabalha para ser a nova cara do jequismo. Fracassará, porque o povo não é tolo, e os pensadores dedicados da classe trabalhadora, ao contrário de jequistas, estudam.

Em breve, a Ruptura Editorial lançará um livro de coletânea sobre o titoísmo. Será uma nova fonte de estudos em português e uma boa oportunidade para conhecer e aprofundar o debate franco sobre os sucessos e os limites da experiência socialista iugoslava.

CREK (Círculo Revolucionário Edvard Kardelj), 22/9/2023


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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