Pesquisar
Pesquisar

A pergunta que se coloca agora é: o que virá após o conservadorismo atroz da direita?

Verificamos um ascenso atemorizador da extrema direita, bem expressa pelo ultra neoliberalismo radical e pelo fundamentalismo político e religioso
Leonardo Boff
ALAI / Agência Latino America de Informação
São Paulo (SP)

Tradução:

Façamos algumas constatações: consolidou-se a aldeia global; ocupamos praticamente todo o espaço terrestre e exploramos o capital natural até os confins da matéria e da vida com a automação, robotização e inteligência artificial. Verificamos um ascenso atemorizador da extrema direita, bem expressa pelo ultra neoliberalismo radical e pelo fundamentalismo político e religioso.

Estamos imersos numa angustiante crise civilizatória que ganha corpo nas várias crises (climática, alimentaria, energética, econômico-financeira, ética e espiritual). Inauguramos, segundo alguns, uma nova era geológica, o antropoceno, na qual o ser humano comparece como o Satã da Terra. Em contraposição, está surgindo uma outra era geológica, o ecoceno a qual a vida e não o crescimento ilimitado possui centralidade.

Leia também

Há uma Frente Evangélica pelo Estado de Direito. Nem todo evangélico é de direita

A pergunta que se coloca agora é: o que virá após o conservadorismo atroz da direita? Será mais do mesmo? Mas isso é muito muito perigoso, pois podemos ir ao encontro de um armargedom ecológico-social pondo em risco o futuro comum da Terra e da Humanidade. Tal tragédia pode ocorrer a qualquer momento se a Inteligência Artificial Autônoma, por algoritmos ensandecidos, deslanchar uma guerra letal, sem que os seres humanos se deem conta e possam previamente impedi-la.

Estamos sem saída, rumando para um destino sem retorno? No limite, quando nos dermos conta de que poderemos desaparecer aí temos que mudar: quem sabe, a saída possível será passar do capital material para o capital humano-espiritual. Aquele tem limites e se exaure. Este último é infinito e inexaurível. Não há limites para aquilo que são seus os conteúdos: a solidariedade, a cooperação, o amor, a compaixão, o cuidado, o espírito humanitário, valores em si infinitos, pois sua realização pode crescer sem cessar. O espiritual foi parcamente vivenciado por nós. Mas o medo de desaparecer e dada a acumulação imensa de energias positivas, ele pode irromper como a grande alternativa que nos poderá salvar.

Leia também

Evangélicos, neopentecostais e a ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil

A centralidade do capital espiritual reside na vida em toda a sua diversidade, na conectitividade de todos com todos e, por isso, as relações são inclusivas, no amor incondicional, na compaixão, no cuidado de nossa Casa Comum e na abertura à Transcendência.

Não significa que tenhamos que dispensar a razão instrumental e sua expressão na tecnociência. Sem elas não atenderíamos as complexas demandas humanas. Mas elas não teriam a exclusiva centralidade nem seriam mais destrutivas. Nestas, a razão instrumental-analítica constituía seu motor, no capital espiritual, a razão cordial e sensível. A partir dela organizar-se-iam a vida social e a produção. Na razão cordial se hospeda o mundo dos valores; dela se alimentam a vida espiritual a ética e os grandes sonhos e produz as obras do espírito, acima referidas.

Verificamos um ascenso atemorizador da extrema direita, bem expressa pelo ultra neoliberalismo radical e pelo fundamentalismo político e religioso

Ilustração: Chiava. / ALAI Reprodução
O trabalho prático ou as consequências que já são terríveis serão ainda mais

Imaginemos o seguinte cenário: se no tempo do desaparecimento dos dinossauros, há cerca de 67 milhões de anos, houvesse um observador hipotético que se perguntasse: o que virá depois deles? Provavelmente diria: o aparecimento de espécies de dinos ainda maiores e mais vorazes. Ele estaria enganado. Nem sequer imaginaria que de um pequeno mamífero, nosso ancestral, vivendo na copa das árvores mais altas, alimentando-se de flores e de brotos e tremendo de medo de ser devorado por algum dinossauro mais alto, iria irromper, milhões de anos depois, algo absolutamente impensado: um ser de consciência e de inteligência – o ser humano – totalmente diferente dos dinossauros. Não foi mais do mesmo. Foi um salto qualitativo novo.

Semelhantemente cremos que agora poderá surgir um novo estado de consciência, imbuído do inexaurível capital espiritual. Agora é o mundo do ser mais que do ter, da cooperação  mais do que da competição, do bem-viver-e-conviver mais do que do viver bem.

Leia também

Entenda a disputa e as alianças da direita pelo poder no imperialismo do século XXI

O próximo passo, então, seria descobrir o que está oculto em nós: o capital espiritual. Sob sua regência, poderemos começar a organizar a sociedade, a produção e o cotidiano. Então a economia estaria a serviço da vida e a vida penetrada pelos valores da auto-realização, da amorização e da alegria de viver.

Mas isso não ocorre automaticamente. Podemos acolher o capital espiritual ou também recusá-lo. Mas mesmo recusado, ele se oferece como uma possibilidade sempre presente a ser abrigada. O espiritual não se identifica com nenhuma religião. Ele é algo anterior, antropológico, que emerge das virtualidades de nossa profundidade arquetípica. Mas a religião pode alimentá-lo e fortalecê-lo, pois se originou dele.

Leia também

“Dos governos de direita, o de Bolsonaro é o que mais tem traços neofascistas”, diz Löwy

Estimo que a atual crise nos abra a possibilidade de dar um centro axial ao capital espiritual. Dizem por aí que Buda, Jesus, Francisco de Assis, Gandhi, irmã Dulce e tantos outros mestres, o teriam antecipado historicamente.

Eles são os alimentadores de nosso princípio-esperança, de sairmos da crise global que nos assola. Seremos mais humanos, integrando nossas sombras, reconciliados conosco mesmos, com a Mãe Terra e com a Última Realidade.

Leia também

Com Eduardo Bolsonaro, nova direita se organiza pra fascistizar — mais — o país

Então seremos mais plenamente nós mesmos, entrelaçados por redes de relações ternas e fraternas com todos os seres e entre todos nós, co-iguais.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escreveu: Saudade de Deus – a força dos pequenos, Vozes 2019.

Original: https://www.alainet.org/pt/articulo/203414

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Leonardo Boff

LEIA tAMBÉM

Integrar natureza e sociedade caminho para superar a crise socioambiental
Integrar natureza e sociedade: caminho para superar a crise socioambiental
Vazamentos, corrupção e mais entenda acusações contra juíza destituída do Supremo do Chile
Vazamentos, corrupção e mais: entenda acusações contra juíza destituída do Supremo no Chile
Maior caso de corrupção da história recente do Chile envolve Ministério Público e primo de Piñera
"Maior caso de corrupção da história recente do Chile" envolve Ministério Público e primo de Piñera
4ª Estado de exceção de Noboa - ministra e polícia do Equador divergem sobre criminalidade
4ª Estado de exceção no Equador é medida extrema e inexplicável de Noboa, dizem especialistas