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Abusadas no ambiente de trabalho ainda na infância, meninas fogem de El Salvador

Vítimas são desprezadas pela própria família ao relatar abuso e migram para países como México e EUA para recomeçarem a vida longe de seus traumas
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul Global
Território dos EUA

Tradução:

As únicas vezes que Caya da dona Chenta escutou o som dos cascos dos cavalos sobre os paralelepípedos foram nas noites em que fazia companhia à senhora da farmácia quando seus filhos iam de viagem à capital, então pedia um favor a dona Chenta para que a emprestasse para que dormisse com ela até eles regressarem; assim foi como Caya escutou o som da água potável percorrendo os canos de PVC; nessa casa também viu pela primeira vez uma privada, uma pia e uma geladeira. Um ferro elétrico, um televisor com controle remoto e um secador de cabelo. 

Que diferente o som da cidade ao de sua aldeia que ficava perdida entre os cerros, onde não chegava a água potável, nem a luz elétrica. Enquanto as meninas da aldeia iam à escola, Caya tinha como obrigação ir buscar água à nascente que ficava a seis quilômetros de sua casa; levava dez potes, quatro em cada mula e dois que ela carregava, um na cabeça e outro na cintura. Isso às quatro da madrugada para regressar clareando o dia, pôr para ferver o milho, moê-lo no moinho de mão e fazer as tortilhas para levar o desjejum ao seu pai e aos seus irmãos que trabalhavam como empregados em uma fazenda.  

Enquanto isso sua mãe cuidava dos três irmãozinhos menores, dois gêmeos de meses de nascidos e a irmãzinha de três anos; Caya era nove anos mais velha, sua mãe lhe ensinou a fazer queijadinhas e pão de arroz, marquesote e semitas que ela saia a vender na cidades para ajudar na compra de sal, óleo, gás para o candil, sabão, pilhas para o rádio, açúcar e cal para cozinhar o milho. Em uma dessas vendas foi que conheceu a senhora da farmácia que também lhe sugeriu que comprasse leite e que fizessem queijo e creme para vender, que se ela quisesse podia oferecê-lo na farmácia.

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Cada vez que ia à cidade para vender, Caya ficava ajudando a senhora na limpeza da casa, em troca ela lhe dava dinheiro alguns dias e outros lhe dava víveres, roupa usada, sapatos que iam deixando seus filhos para que desse aos seus irmãos. E um dia como presente de aniversário lhe deu uma máquina de costura usada, lhe disse que podia comprar pedaços de pano e fazer aventais, bolsas e remendar roupa e que podia ficar aí na casa, costurando porque lhe ajudava a luz elétrica; e foi assim como Caya da dona Chenta aprendeu o ofício de costurar que lhe ajudou muito para dar dinheiro aos seus pais os quais via muito pouco, entre a limpeza da casa da senhora, saída para vender as queijadinhas, fazer o queijo e o creme e se ocupava na máquina de costura. 

Vítimas são desprezadas pela própria família ao relatar abuso e migram para países como México e EUA para recomeçarem a vida longe de seus traumas

ONU – Flickr
A jovem Caya foi abusada sexualmente por um dos filhos da proprietária da farmácia onde trabalhava, aos 12 anos

Uma noite que ficou para dormir na casa da senhora da farmácia lhe sucedeu a desgraça, um dos filhos mais velhos regressou da capital e abusou dela enquanto dormia, lhe tapou a boca para que não gritasse e a ameaçou que se dissesse algo ia contar na cidade que foi ela que o buscou e que ele como era homem não podia dizer que não.

Assim foi como Chaya da dona Chenta ficou grávida aos doze anos; quando explicou aos seus pais não acreditaram nela, também não acreditou nela a senhora da farmácia que a culpou de abuso de confiança, que lhe disse como ia sendo empregada se atrevia a olhar para seus filhos, que lhe atirou na cara a ajuda, a máquina de costura e os sapatos usados que lhe presenteava para seus irmãos. Os pais a botaram para fora de casa, lhe disseram que era uma vergonha para a família e um mau exemplo para sua irmã mais nova; com três meses da gravidez, Caya foi embora de sua aldeia em Ahuachapán, El Salvador e cruzou a fronteira para a Guatemala

Não recorda as vezes que foi abusada pelo dono e a ameaçou que se dissesse algo à sua esposa a poria na rua; aí na cafeteria teve sua filha e depois de dois meses quando sentiu forças para poder caminhar foi embora, parou na metade da rua com sua filha nos braços e parou trailers pedindo que a levassem à capital, não tinha dinheiro, de trailer em trailer chegou à fronteira da Guatemala com o México, nesse caminho conheceu a ingratidão, porque sem dinheiro a única forma de pagamento foi seu corpo, ninguém se oferecia a levá-la se não lhe dava algo em troca e da mesma forma atravessou o México em trailers com sua filha nos braços; foi assim que chegou aos Estados Unidos, depois de cruzar pela linha de trem entre Sonora e Arizona, há vinte e cinco anos. 

Caya põe a água para ferver em uma panela pequena, a medida justa para três xícaras de café, não se acostuma ao café instantâneo nem às máquinas elétricas, tem que tomar seu café fervido. Trocou de nome, desde que chegou ao país disse que se chamava Maria, lhe dizem Marry, não queria nenhuma lembrança da família que a botou na rua, seu nome tampouco. Há 22 anos trabalha como costureira em uma lavanderia, vive em um apartamento que compartilha com sua filha Nuria e seu neto Paco, dos três ele é a único com papéis, pois é cidadão estadunidense, está na escola primária. Nem sua filha, nem seu neto sabem sua história, nem porque emigrou, não conhecem a família de sua mãe e sua avó, só sabem que é salvadorense e que quando sente saudades de seu país faz queijadinhas e pão de arroz que acompanha com café fervido, mas cada vez é menos.

Ilka Oliva-Corado é colaboradora da Diálogos do Sul em território estadunidense
Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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