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Foto: Kaloian - Ministério de Cultura da Bolívia / Flickr

Álvaro García Linera | A autoridade estatal e o monopólio da legitimidade

O Estado não é o único portador de legitimidade, mas a certificação estatal garante a “verdade” do conhecimento adquirido, do benefício coletivo da lei ou da redução do delito
Álvaro García Linera
Diálogos do Sul Global
La Paz

Tradução:

Ana Corbisier

Foi Bourdieu que compreendeu que uma das qualidades definitórias dos estados modernos é sua capacidade de monopolizar as fontes de enunciação de “verdades” sociais com efeito vinculante em um território. Não se trata de as declarações serem verdadeiras; de fato, muitas vezes são falsas.

Mas, regularmente, são aceitas como “verdadeiras” por uma sociedade que as assume, tolera e cumpre. A isto, ele chamou o monopólio estatal do capital simbólico, que permite que suas ações e seus enunciados sejam portadores, em geral, de um implícito consenso coletivo. 

O núcleo da legitimidade

Certamente, o Estado não é o único portador de legitimidade. A sociedade civil sempre é a fonte originária dos consensos e em seu interior existem múltiplos motores de legitimação, como os meios de comunicação, as igrejas, as universidades, os sindicatos, os intelectuais, “influencers”, etc.

Mas se trata de legitimidades fragmentadas, referentes aos membros da confraria religiosa, aos partícipes de um ramo da “opinião pública”, aos agremiados, entre outros. Em troca, as legitimações universais, gerais, comuns a todos, tendem a concentrar-se no Estado. Por exemplo, o monopólio das titulações que certificam conhecimentos escolares, a elaboração de leis que supostamente favoreceriam por igual todos os cidadãos ou o exercício da segurança pública que diminui os delitos.

Não importa se o estudante obteve qualificações por favores econômicos, ou se tal lei resultou de subornos a governantes para favorecer algum negócio imobiliário privado, ou se as infrações à propriedade diminuem às custas do aumento das agressões com uso de violência…

No fim, a certificação estatal garante a “verdade” do conhecimento adquirido, do benefício coletivo da lei ou da redução do delito. O Estado pode levar adiante estas arbitrariedades com recursos públicos sem que grande parte da população se inteire ou, quando se inteira, faça-o aceitando o que a informação oficial e os porta-vozes oficiais justificam.

Regularidade funcional

Esta legitimidade das ações estatais se verifica quando a ordem social funciona com regularidade. Mas a legitimidade se paralisa ou fragmenta quando o regime econômico ou político entra em crise. As enunciações estatais deixam de ser críveis, suas narrativas não geram adesões e o acatamento a suas disposições é posto em dúvida.

É como se o Estado e seus funcionários, até então portadores de uma certa aura de excelência e de superioridade, regressassem ao terreno do descrédito e da impugnação cotidiana. 

Passo pela Argentina em 2002 depois do fracasso da convertibilidade, passo pela Grécia depois da recessão e da austeridade imposta pela “troika” europeia e, em geral, pela ascensão do ciclo de protestos sociais e da chegada de governos progressistas ou “populistas” à América Latina e em outras regiões do mundo.

Que a emergência de governos “populistas” chegue em meio a um mal-estar econômico, à perda de renda e reconhecimentos ou à sensação coletiva de um agravo por parte das velhas elites, não é um fato menor. Mostra que o monopólio da legitimidade sempre requer uma materialidade de verossimilhança, sem a qual, simplesmente, desmorona. 

Resposta ao monopólio do poder simbólico

A resposta bourdiana com relação ao fato de o monopólio estatal do poder simbólico bastar a si mesmo para fundar sua eficácia não pode explicar por que, em ocasiões de crises, a legitimação estatal se erode ou desmorona, o que é o equivalente a responder que é o que os sustenta. 

A questão é que o monopólio estatal da enunciação legítima tem como condição subjacente o monopólio dos bens, condições e recursos comuns da sociedade. Como disse Marx, este é precisamente o núcleo do Estado e sobre cuja gestão repousam os níveis de credibilidade ou incredulidade das enunciações estatais.

A condição de possibilidade da legitimidade estatal radica na gestão governamental relativamente “universal” destes bens e condições comuns (impostos, riquezas públicas, direitos, reconhecimento, bem-estar social, etc.). A estabilidade econômica e direitos básicos garantidos estabelecem um marco de recepção tolerante das emissões estatais e habilita uma luta política partidária em torno desta centralidade.

Mas quando os bens materiais e simbólicos da sociedade se contraem, se repartem de maneira agressivamente segmentada, quando as condições gerais da vida social se fraturam, o comum (por monopólios) deixa de ser verossímil, isto é, a autoridade estatal se corrói, dando lugar a uma crise de hegemonia.

Um regime estatal pode conviver com a degradação de condições de vida, com o desgosto social, com a perda de direitos e até com o exercício arbitrário da repressão, sempre e quando se trata de segmentos minoritários da população: minorias sociais, ramos sindicais, estudantes ou habitantes de uma região.

Mas quando a deterioração das condições de vida abrange maiorias sociais, quando o corte de algum direito é generalizado, a ofensa ou repressão é indiscriminada, o sentido do comum, do universal, é posto em xeque e, com isso, a própria plausibilidade do regime estatal vigente. São tempos de descrédito dos governantes; o monopólio dos consensos estatais se fissura por todos os lados. O governo deixa de ser crível e, faça o que fizer, sempre estará sob suspeita pública ou deboche. 

As crises econômicas, os cortes de direitos ou reconhecimentos, sempre antecedem uma paralisia e fragmentação da legitimidade estatal, pois o horizonte preditivo comum imaginado, em torno do qual as famílias e as classes sociais organizam o curso esperado de suas vidas, se destrói, desmorona, desmembrando o sentido de coesão e destino compartilhado. A divergência de elites políticas, a polarização social, que em certas ocasiões levou à ascensão dos progressismos (América Latina, Espanha, Grã-Bretanha), dos autoritarismos e populismos (Trump, Orban, Meloni) nas últimas duas décadas, foram precedidos por retrações econômicas e visibilidade de agravos, próprios da fase descendente da ordem econômica neoliberal global.

Legitimidade fragmentada 

A corrosão da legitimidade estatal não necessariamente extravia a fonte dos consensos sociais. Provoca uma crise de hegemonia, uma crise do regime estatal, isto é, um estupor na forma de organizar a vida em comum e o destino comum imaginado das sociedades. Mas dá lugar à expansão de outras fontes de legitimidade a partir da sociedade civil, sob a forma de ação coletiva, politização de novos setores anteriormente apáticos, mudanças bruscas nos temas de interesse da opinião pública, papel crescente das redes, protagonismo de novos intelectuais, etc., que disputam credibilidade com o discurso oficial. Quando estas fontes de novos consensos e projetos de reforma do Estado e da economia se canalizam para o interior do velho sistema de partidos políticos, produzem-se cismas e reformas profundas no interior de suas ideologias e propostas econômicas, mas a transição hegemônica ocorre mediante cataclismos regulados. É o caminho, agora, de EUA, Grã-Bretanha, Argentina — com o kirchnerismo. Quando o mal-estar social se canaliza por fora do esquema de partidos tradicionais, emergem novas forças e discursos políticos rupturistas, que reconfiguram o sistema partidário, como em Brasil, França, Alemanha, Espanha, Uruguai ou, recentemente, Argentina. Que seres grotescos políticos, como Milei na Argentina, possam impor arcaísmos monetaristas como solução aos problemas de inflação não é uma astúcia de manejo de redes, e sim o resultado do fastio de uma sociedade com um Estado intervencionista que esgotou suas reformas e levou o país a uma inflação de 160% anuais.

Mas quando as fontes de legitimidade estacionam em núcleos ativos da sociedade civil mobilizada, como sindicatos, grêmios, fluxos de ação coletiva e seus representantes emergentes, a crise de legitimidade estatal é radical. Estamos não só diante do esgotamento temporário de uma parte das “verdades” estatais, como também do surgimento de outras “verdades” com pretensão de universalidade, de novos comuns coesionadores.  Por isso, não bastará uma troca de narrativas e programas das antigas elites, como no primeiro caso, nem a uma ampliação de elites, como no segundo, mas sim levar a uma substituição dos blocos sociais com capacidade de produzir novos esquemas universais para toda a sociedade, um novo horizonte preditivo e, com isso, uma nova coalizão social com capacidade hegemônica.

É o momento que Gramsci chamou de “empate catastrófico” entre uma fonte de legitimidade estatal em declive, roída e desvalorizada, e fontes de legitimação social portadoras de grandes reformas sociais. 

Que o conglomerado de instituições monopolizadoras do comum (o Estado), que é capaz de mobilizar recursos comuns, mostre competência e, até, em desvantagem ante núcleos da sociedade civil cuja virtude é, por ora, apenas uma promessa de uma maneira de organizar estes recursos comuns, fale do poder político da imaginação coletiva, da esperança, sobre estes recursos comuns, no momento de definir a formação das lideranças históricas e as hegemonias duradouras.

Em todo caso, o relevante do ocaso de um sistema de legitimação estatal é a dissonância entre esquemas de emissão estatal e de recepção social. É como se falassem idiomas distintos ou as palavras tivessem significados diferentes. O sentido de perda do eixo e a pavorosa orfandade que tudo isso provoca nos governantes ficam perfeitamente claros no que disse a esposa do presidente chileno Piñera, quando qualificou os sublevados de 2019 de “alienígenas”.  

Ao mesmo tempo, a paralisia de crenças estatais não pode ser indefinida, razão pela qual, quase paralelamente, setores crescentes da população se veem levados a abraçar uma disponibilidade ou apetência por novas crenças compartilhadas, habilitando uma audiência para os renovadores dos velhos partidos, para os marginalizados do sistema de partidos, convertidos agora em campeões de uma renovação intelectual e moral da política ou, das enunciações resultantes da ação coletiva.

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E é aí que a transição de esquemas estatais de legitimação vem acompanhada de explosões sociais. São estes movimentos sociais que também agem como intelectuais coletivos, capazes de promover rupturas e adesões cognitivas em amplos setores populares. A ação coletiva sempre age como epifania cognitiva, como gramática de novos cursos de ação possíveis da sociedade sobre os modos de organizar a vida em comum, isto é, de disputar os universais legítimos de uma sociedade. O que na literatura se estuda como “duplo poder” é uma variante radical deste fator disruptivo do dizível e do possível que acompanha os momentos de efervescência social. 

Em resumo, a estas três formas de transição de um regime de legitimação estatal corresponderão formas de instituições e discursos diferentes de formação do novo regime de legitimidade.

Legitimidade extraviada

Mas também pode ocorrer de o eclipse de um regime de legitimação estatal não ser acompanhado por um substituto a partir do velho sistema de partidos, nem dos “outsiders”, nem uma regeneração desde a ausente mobilização social. E então o consenso social entra em um período temporário de decomposição, fragmentado e em câmara lenta, que é o que precisamente sucede hoje na Bolívia. Mas, claramente, isto tampouco pode ser duradouro.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Álvaro García Linera

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