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No Peru, voto universal não garante representantes das classes trabalhadoras

Como em outros países da América Latina, conseguir votar levou mais de meio século. No entanto, ainda é preciso conscientizar a população que o voto é sinônimo de poder
Jorge Rendón
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Em maio de 2000, eu me encontrava atarefado na atualização do meu livro Teoría General del Derecho para sua quarta edição. Havia me proposto ampliar, entre outros temas, a conexão do princípio de igualdade perante a lei com o voto universal, mas não unicamente do ponto de vista teórico, mas sobretudo das evidências práticas. As eleições nacionais desse mês me proporcionaram a ocasião de fazê-lo. Competiam em segundo turno o presidente da República Alberto Fujimori e seu desafiante, Alejandro Toledo.

No domingo em que tiveram lugar as eleições, deixei meu carro a um quilômetro do local em que tinha que votar, um colégio do Estado, e continuei a pé entre centenas de pessoas que caminhavam na mesma direção ao lado de longas filas de automóveis parados em um congestionamento. Passei com êxito pela barreira de policiais e soldados armados e me coloquei no fim de uma longa fila, entre dezenas de outras filas e milhares de pessoas que pululavam nos pátios e corredores. De repente escutei a seguinte conversa de várias pessoas que me precediam:

— O que faço? Em quem voto? — Era uma jovem de suave rosto moreno que fazia a pergunta à sua acompanhante.

— Minha patroa me disse que tem que votar no Fujimori – respondeu-lhe ela.

— Eu também votarei nele – disse uma senhora de uns cinquenta anos, de rosto corado – Eu sempre sigo o que diz a televisão.

— É a melhor opção – afirmou um homem de cabelos grisalhos, que parecia conhecer a senhora – Toledo não tem experiência de governo. É o que dizem os jornais. 

— Eu votarei em branco – anunciou um homem baixinho com um minúsculo bigode – Não estou de acordo com a reeleição nem com o outro candidato. Um continuará roubando e o outro…quem sabe. 

— O Chinito é bom — terciou um homem pequeno e traços indígenas —, regala coisas. E, se rouba, rouba do Estado. 

Intuí que este diálogo se repetia incontáveis vezes no turbilhão do Colégio.

E, então, me perguntei se todas essas pessoas sabiam por que votavam. Não pela multa ou habilitação para praticar atos jurídicos ordinários da vida social, caso se abstivessem, mas porque gozavam do direito de eleger as pessoas que conformariam os poderes executivo e legislativo.  

Uma rápida prospecção, baseada em minhas constatações pessoais em diversos ambientes sociais de vários níveis de cultura geral e política, me indicou que talvez só um entre dez mil sabia que votava exercitando o supremo princípio da democracia, consistente em que são os cidadãos os titulares do poder de decidir quem haverá de governá-los e de que, sendo todos iguais perante a lei, cada um só tem um voto que deve emitir pessoalmente. 

Como em outros países da América Latina, conseguir votar levou mais de meio século. No entanto, ainda é preciso conscientizar a população que o voto é sinônimo de poder

UFMG
Chegar à votação universal custou aos grandes grupos excluídos um século e meio de luta.

Como era de se esperar, nessas eleições, Fujimori se fez reeleger, não só pela ação da maior parte do Júri Nacional de Eleições que acatava sua vontade, mas por haver alcançado 74% dos votos válidos. (Toledo obteve 25.7% e os votos nulos chegaram a 29.9%).

Esta reflexão me serviu para agregar uma página de grande importância no citado livro, explicando a maneira como a burguesia havia eliminado na prática a noção de igualdade dos cidadãos, proclamada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução de 1789, e imposto a manipulação do voto popular. 

Em um primeiro momento, a burguesia montou uma paródia de eleição democrática com o voto chamado censitário, concedido apenas aos homens que pagavam certa quantidade de impostos, tinham propriedades de certo valor e sabiam ler e escrever. As mulheres foram excluídas totalmente deste direito. Os requisitos exigidos afastavam do sufrágio os cidadãos das classes trabalhadoras e a maior parte dos camponeses, artesãos, pequenos industriais e comerciantes e numerosos profissionais.

Chegar à votação universal custou aos grandes grupos excluídos um século e meio de luta, que começou na Inglaterra com o movimento chamado cartista na primeira metade do século XIX, apoiado por milhões de trabalhadores, e continuou com o sufragismo impulsionado por um grupo de mulheres das classes altas na Inglaterra, em fins do século XIX, para conseguir o voto feminino. O sufrágio universal só se generalizou após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Foi um dos efeitos do novo pacto social celebrado nos países que haviam participado na guerra.

No Peru, como em outros países da América Latina, conseguir o sufrágio universal levou mais de meio século. Em 1956 se concedeu o voto às mulheres (Lei 12391) e em 1979 aos analfabetos (Constituição de 1979).

No entanto, o voto universal não tem dado como resultado a conformação dos órgãos do Estado eletivos por representantes das classes trabalhadoras que constituem a maioria social. A experiência de inúmeras votações nos países com estrutura capitalista demonstra que são os representantes das classes proprietárias dos grandes meios de produção, numericamente minoritárias, que chegam ao controle dos órgãos do Estado. Seus ideólogos e estrategistas criaram um sistema integral de controle das decisões políticas das grandes maiorias sociais que induz numerosos trabalhadores e outras pessoas de menores recursos econômicos a conceder seu voto aos candidatos dos partidos ou grupos representantes dos interesses das classes proprietárias. Nesse sistema confluem vários fatores minuciosamente planejados e organizados.

O primeiro é uma deficiente educação das maiorias sociais que modela sua mente com elementos rudimentares de cultura e comportamento e impede seu desenvolvimento; começa com as crianças no nível primário, segue com os adolescentes no nível secundário e remata nas universidades. Sobre a mente assim modelada, com reduzidos níveis de aptidão crítica e desprovida de inquietude pela leitura de livros, incidem depois os meios de comunicação social: jornais vendidos por menos de seu preço de custo (não os dão de presente porque os vendedores cobram uma porcentagem do seu preço ao público), televisão gratuita ou de baixo preço, rádio grátis e agora também em parte, a internet. Em verdade, a maior parte da cidadania age através de reflexos criados pela repercussão diária das notícias, comentários, entrevistas, espetáculos, entretenimentos, modas, conselhos etc. propalados pelos meios de comunicação que vão enchendo e condicionando seu mundo mental e os temas de sua comunicação e conversação. Algumas pessoas, em geral das classes altas e médias, cultivam com certa pretendida exclusividade pedante a afeição pela leitura, mas não se livram de acatar as preferências recomendadas pelos críticos desses meios de comunicação. Nenhum aspecto da informação é descuidado pelos estrategistas do controle da mente.

De maneira que quando a imensa maioria de votantes concorre às urnas, sua decisão, que pareceria haver sido determinada por eles, foi ditada pela propaganda e pela publicidade dos grupos de grande poder econômico. Os partidos e movimentos políticos contestatários do sistema, ou dispostos a praticar apenas algumas reformas inconvenientes para as classes proprietárias, carecem quase sempre da possibilidade material de chegar com seus projetos à mente dessa maioria, e se conseguem seu impacto não será tão forte nem decisivo, porque essa mente foi predisposta para ignorá-los ou, na melhor das hipóteses, para assimilar apenas as mensagens favoráveis aos seus interesses e sua conveniência. 

Tenho a impressão de que mudar tão deplorável situação das grandes maiorias sociais, ajudá-las a se libertar da manipulação educativa e midiática que as conduz, como multidões de robôs humanos, a preferir os candidatos dos grupos que continuarão a explorá-los,  discriminando-os e tiranizando-os, requer, em primeiro lugar, enfocar essa situação à luz do conhecimento e da denúncia. Quantos mais sejamos críticos do sistema, mais possibilidade haverá de ter um número maior de cidadãos conscientes de sua situação e dispostos a promover sua mudança.

Embora a Constituição atual, como as precedentes, torna obrigatória a formação ética e cívica e o ensino da Constituição e dos direitos humanos (art. 14º) e a Lei Geral de Educação, 28044, repete esta obrigatoriedade (art. 6º) há muito distância entre a letra de ambos os textos legais e a prática do ensino, a tal ponto que o curso de educação cívica mostra uma face adventícia e prescindível, ao contrário da importância da formação que os futuros cidadãos necessitam.

*Colaborador de Diálogos do Sul, desde Lima, Peru.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Jorge Rendón Doutor em Direito pela Universidade Nacional Mayor de San Marcos e doutor em lei pela Université de Paris I (Sorbonne)

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