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Para economista, desemprego, exportação e fenômeno da migração serão principais desafios do próximo presidente chileno

Para Consuelo Silva, mestre, doutora e pesquisadora, enquanto o desenvolvimento industrial não for levado a sério, o Chile não será capaz de se livrar da dependência dos países maiores
Caio Teixeira
ComunicaSul
São Paulo (SP)

Tradução:

O Modelo neoliberal implementado a força pela ditadura de Augusto Pinochet, a partir do final dos anos 70 e início dos 80 do século passado, gerou uma economia subdesenvolvida, dependente da exportação de produtos primários sem valor agregado, sem indústrias ou tecnologia e com direitos sociais básicos totalmente vilipendiados. Mudar ou perpetrar esta situação é o que o povo chileno decidirá no segundo turno das eleições presidenciais, marcado para 19 de dezembro.  

De um lado está o representante da Extrema Direita José Antonio Kast, conhecido como o Bolsonaro chileno e de outro Gabriel Boric que encabeça uma ampla frente oposicionista fruto das mobilizações populares de 2019 e 2020, que ficaram conhecidas como “El estalido”.  

CAIO TEIXEIRA, de Santiago

O Chile foi o laboratório do modelo neoliberal de Estado, proposto por economistas da Universidade de Chicago que ficaram conhecidos como os Chicago Boys, dos quais Paulo Guedes, com orgulho, se diz seguidor. A proeza do Chile foi possível graças à ditadura militar mais sangrenta da América Latina chefiada pelo ditador Augusto Pinochet de 1973 a 1990. 

Conhecemos todos as teses neoliberais defendidas no Brasil, primeiro por Collor de Mello e depois efetivamente colocadas em prática por Fernando Henrique Cardoso e pela coligação PSDB/PFL (hoje DEM) que o sustentou no poder. Em essência pregam a supremacia do mercado como fenômeno natural e a consequente diminuição do papel Estado ao mínimo possível para que “não atrapalhe a economia”. 

O resultado prático é a privatização de todos os setores estratégicos para a sociedade e para a soberania, como saúde, educação, transportes públicos, recursos naturais, sistemas de aposentadorias, e tudo o mais que possa se transformar em negócio e, por outro lado, a eliminação da legislação de proteção ao trabalho e de todo o tipo de regulamentação que estabeleça limites para a ganância empresarial e financeira. 

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Conhecer o caso chileno é essencial para entender o que ocorre ainda hoje no Brasil onde Paulo Guedes trata de implantar – à força de recursos públicos distribuídos a parlamentares corruptos – as teses retrógradas e ultrapassadas dos Chicago boys: privatização de tudo o que sobrou nas mãos do Estado brasileiro, como Banco do Brasil, Petrobrás, Correios, entrega do Banco Central aos bancos privados, entrega dos serviços públicos essenciais a cartéis privados e destruição dos sindicatos para deixar os trabalhadores sem qualquer tipo de organização capaz de defender seus direitos básicos.

Para conhecer o Chile que o próximo presidente vai encontrar e entender como  o país chegou a esta situação, conversamos em Santiago com a economista Consuelo Silva, mestre, doutora e pesquisadora chilena. O texto que segue é reprodução do que disse Consuelo. Entre colchetes, introduzimos alguns comentários e notas explicativas. 

Pedimos a Consuelo que nos desse um panorama da economia chilena atual e apresentamos a seguir um resumo de sua avaliação.

Para Consuelo Silva, mestre, doutora e pesquisadora, enquanto o desenvolvimento industrial não for levado a sério, o Chile não será capaz de se livrar da dependência dos países maiores

Comunica Sul
Mudar ou perpetrar situação chilena é o que o povo decidirá no segundo turno das eleições presidenciais.

Enfrentamos um cenário de desemprego bastante alto que hoje em dia, em termos de estatística não é tão alarmante [oscilando ao redor de 10% nas cifras oficiais], mas há alto grau de invisibilidade da situação real. Isto tem se agravado, por um lado porque que tivemos sucessivos eventos que afetaram a economia.

Em outubro de 2019 tivemos uma crise social quando o país entrou em colapso, e que se tornou referência na América Latina e que impactou fortemente na diminuição ou sensível desaceleração da atividade econômica. Ao mesmo tempo tivemos dois períodos pandêmicos que atingiram todos os setores da economia. 

Ao lado disso, se manteve um problema ativo que é a migração e que tem consequências graves sobre o emprego que já sofre com grande percentual de informalidade. Ter cifras ao redor de 30% de emprego informal é algo que deveria preocupar a qualquer economia. Tal cifra, no entanto, é mascarada nas estatísticas onde consta como emprego, embora apresente condições de absoluta precariedade.

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Ingresso de migrantes como mão de obra barata é propiciada pelo governo e aumenta a precarização do trabalho

O fenômeno da migração se manifesta na substituição de mão de obra desqualificada chilena por estrangeiros, que são mais baratos ainda e que trabalham jornadas mais extensas. Temos uma forte migração de venezuelanos, peruanos, colombianos, bolivianos e, cada vez mais, do Caribe. Os haitianos foram um grupo importante que chegou e se assentou, principalmente na agricultura, como uma mão de obra muito barata. 

Além do forte impacto que essa migração gera nos serviços sociais, há um fator ainda mais perverso. Essa substituição de trabalhadores chilenos por migrantes estrangeiros foi propiciada de alguma maneira pelo governo Piñera que, com isso, permitiu aos empresários o acesso à mão de obra muito mais barata e, consequentemente, um custo operacional menor. 

Em relação ao trabalho, outra característica do atual modelo econômico é o incentivo ao empreendedorismo [o que também observamos no Brasil]. Tal política não está presente apenas na gestão de Piñera, mas vem desde o primeiro governo de Bachelet e serve apenas para disfarçar a realidade da economia chilena que tem muito pouco espaço para seguir crescendo e se desenvolvendo. 

Exportação de produtos naturais sem valor agregado é a base da economia chilena

A economia chilena se assenta quase que exclusivamente na exploração de recursos naturais como a mineração, em especial do cobre. Este setor se mostra esgotado para seguir operando com a rentabilidade que tinha há 100 anos, em razão das reservas estarem num nível muito baixo. Isso se dá primeiramente porque a exploração desse minério está na maior parte em mãos de empresas estrangeiras mais interessadas em seu próprio lucro do que no desenvolvimento do país. 

Uma parte dessa atividade está nas mãos do Estado e é explorada pela Corporação Nacional do Cobre (Codelco), uma empresa pública. No entanto, com cortes de investimentos, a estatal tem custos de exploração extremamente altos e. consequentemente, uma taxa de rentabilidade muito mais baixa que as empresas privadas, por conta da defasagem tecnológica. [De certa forma é o que os governos brasileiros, desde Temer vêm fazendo com a Petrobrás].

Outro setor que se tem apostado no Chile é o florestal, responsável por uma mudança no cultivo e que produz impacto não apenas no retorno propiciado pelas exportações, mas pelos danos causados ao meio ambiente. 

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O terceiro setor relevante é o pesqueiro, em particular a aquicultura a partir dos anos 80. Entretanto, a extração de espécies, quando se prioriza o cultivo agrícola, também tem impacto no meio ambiente. Estamos falando da truta e do salmão, especialmente do salmão. 

Uma nova área de mineração ligada às novas tecnologias tem se mostrado promissora. São as chamadas “Terras Raras”. [Trata-se de uma terra especial composta por dezessete elementos da tabela periódica que possuem propriedades fundamentais para o desenvolvimento da indústria tecnológica moderna, usados na fabricação de celulares, eletrodomésticos, computadores, veículos elétricos e centrais eólicas]. 

A China é atualmente a maior proprietária de Terras Raras no Chile, além de participar da extração do lítio que, para nós, deveria ser estratégico como é para outras economias da região como a Bolívia.

A indefinição de uma política industrial implicou em trabalho ainda mais precarizado

O Chile vive apenas da exploração de produtos primários, o que é um grande problema a ser enfrentado. A economia chilena está extraordinariamente ancorada na exportação de produtos naturais. Não tivemos a capacidade de implementar uma fase distinta, com valor agregado através da geração de uma política para a indústria. 

Então, quando se propõem alternativas, uma delas é justamente buscar o desenvolvimento industrial. Entretanto, isto parece não ser uma alternativa para o Chile, nem sequer nas propostas que se apresentam em algumas candidaturas ao governo que insistem em defender a mesma lógica de sempre. 

É absolutamente necessário para qualquer economia que está em crise como a nossa, desenvolver uma política industrial, pois do contrário ficamos dependentes de outras economias maiores e mais desenvolvidas. No caso chileno, estamos historicamente dependentes do que ocorre nos EUA e do intercâmbio que há com esse polo hegemônico, embora se observe atualmente um deslocamento mais para a Ásia.

O Chile, hoje, está de mãos dadas com a China, cujos investimentos são cada vez mais importantes no país. A indefinição de uma política industrial faz com que o trabalho seja ainda mais precarizado, porque se não temos um setor produtivo importante, onde uma mão de obra especializada se realize, as pessoas só encontram postos no setor de serviços e, fundamentalmente, desqualificados.

Isso impacta na qualidade do trabalho e o precariza cada vez mais. Além disso, há também uma opção pela mão de obra estrangeira, que é mais barata e mais disponível para ser precarizada. 

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Caminho aberto para mudanças

É muito importante o que está ocorrendo no Chile hoje com o cenário da discussão de uma nova Constituição, porque finalmente nos coloca no ponto zero, nos leva novamente às origens e a nos perguntarmos que país queremos e em que condições queremos que funcione nosso entorno. Acredito que isto vale para todos os temas, não apenas para a política industrial, mas para o modelo econômico. Como queremos que funcione o Banco Central ou que sejam tratados nossos recursos naturais? Só então vamos poder propor como vai ser a gestão de um novo governo. 

Uma coisa preocupa. O governo e o Congresso que vão assumir no ano que vem estarão defasados em relação à nova Carta fundamental e lhes caberá colocar em prática uma Constituição que não necessariamente escolheram, tampouco participaram da luta para que tivéssemos uma mudança estrutural em nosso país. 

Há sempre o risco de que um governo que assuma eventualmente não seja um governo de esquerda, mas de centro direita ou de direita, e esse governo talvez não esteja em condições de colocar em prática uma Constituição que propõe mudanças estruturais como por exemplo definir recursos naturais estratégicos para o futuro. 

Um avanço importante no âmbito da Constituinte foi a aprovação das votações intermediárias. Ao final do processo vai haver um plebiscito para o povo dizer se aprova ou não essa nova Constituição, mas teremos também plebiscitos parciais sobre temas. 

Esta é uma conquista que complica para a direita e que foi respaldada pelos dois terços. Se estabeleceu que os temas sobre os quais não haja consenso sejam submetidos à votação e ao quórum de dois terços para aprovação. Os plebiscitos parciais serão realizados antes do plebiscito final e servirão para aprovar ou não as propostas das comissões temáticas. Dessa forma, é o voto popular e não os dois terços da Constituinte que decidirá. 

Esta reportagem foi elaborada pelo Coletivo ComunicaSul, com o patrocínio do Barão de Itararé, Agência Carta Maior, jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Apeoesp Sudoeste Centro, Intersindical, Sintrajufe-RS, Sinjusc, Sindicato dos Bancários do RN, Sicoob, Agência Sindical e 152 contribuições individuais


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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