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Chile: Violência hoje é pior do que na era Pinochet: “não havia balas de borracha que cegam jovens"

“Hoje em dia a repressão é tecnologicamente muito mais violenta e psicologicamente também”, diz Ricardo Andrade Millacura
Leonardo Wexell Severo
ComunicaSul
Santiago

Tradução:

“Através da lente, apreciei manifestações da arte em espaços públicos que nada têm que invejar aos grandes museus. Murais que querem apagar, esconder, e que, no entanto, voltam a renascer a cada dia”, afirmou o renomado fotógrafo chileno Ricardo Andrade Millacura, testemunha ocular da história. 

Ele é autor das fotos que compõem seus livros Testemunho de um processo (sobre o plebiscito que, em plena ditadura de Augusto Pinochet, em 1988, o povo disse NÃO a postergar seu mandato por mais uma década) e 19-0-19 Estallido (que narra a explosão social de outubro de 2019).

Millacura fala da relevância da Constituinte e da importância de “pôr fim às privatizações, porque, no fundo, são um roubo”. Denunciando o aparato policial dos Carabineiros como extremamente perigoso, ele mostra que foi baleado no braço. Millacura aposta na força da solidariedade para que a democracia triunfe, bem como em um regime social mais justo.

“Hoje em dia a repressão é tecnologicamente muito mais violenta e psicologicamente também”, diz Ricardo Andrade Millacura

Ricardo Andrade Millacura
“Através da lente, apreciei manifestações da arte em espaços públicos que nada têm que invejar aos grandes museus“

Confira a entrevista

ComunicaSul: que significado tem para você a conquista da Constituinte depois de tantos mortos, feridos, presos, e agora, com a descoberta dos Pandora Papers e a conexão de Piñera com um grande esquema de corrupção?

Ricardo Andrade Millacura: Eu creio que é algo que a maioria das pessoas estava esperando: uma mudança, uma mudança profunda, e graças a esse encontro que se fez, a essa manifestação e a essa explosão social que funcionou e se conseguiu. Temos grande expectativa em poder conseguir algo com que se acabe com a corrupção, que se destapem todos esses males que não deveriam existir numa democracia.

Então, há muita esperança de que vamos conquistar um pouquinho mais de igualdade para todos, e essa é a grande esperança que tem toda a gente.

Meu trabalho é um pouco isso: mostrar o que expressaram as pessoas ao acumular tanta raiva por tantos anos. E seguimos destapando, e seguem saindo coisas que sempre se ocultaram, que sempre muita gente postergou e até hoje seguem postergando.

Há esperança de que com a nova Constituição venha uma mudança positiva para todos e para tudo. É muita a desconexão que existe neste país entre as classes, extrema desigualdade. Ninguém pode se surpreender com o fato de que tanta gente juntou sua raiva e explodiu.

Como te sentes ao ver que um trabalho teu, que é também coletivo, pois retrata um movimento de massas, uma explosão em busca da igualdade, tenha ganhado o mundo, com essa imagem [foto dos manifestantes na estátua do cavalo]?

Meu trabalho é o reflexo do que passou no Chile neste momento, e a importância que dou a ele é registrar esse testemunho, para os que virão, o que significou este protesto, esta raiva que brotou e que representou para essa gente como uma catarse. Para mim, é importante deixar este testemunho do que estávamos todos esperando e eu sigo trabalhando junto à população. Há um trabalho importante para fazer junto aos Mapuche [uma das nações indígenas do Chile] neste momento e nós somos parte dos fotógrafos, estou falando de muitos fotógrafos que integram esta ação coletiva e temos que registrar esse testemunho.

Tu fizeste as fotorreportagens da campanha do NO, há muitos anos, ainda na época do ditador Augusto Pinochet (1973-1990). Há hoje uma nova geração que toma a frente dos protestos atuais. O que há de diferente entre esses dois momentos?

Há uma diferença que nos marcou, porque no tempo da ditadura era muito difícil fazer fotografia. Havia muita perseguição, muito medo. Nós éramos um grupo de fotógrafos agrupados na Associação de Fotógrafos Independentes (AFI). Nos agrupamos para nos proteger, porque havia medo, mas muita ousadia para sair e fazer a fotografia, então nos protegíamos e havia muita solidariedade. Hoje quando saio encontro algo totalmente diferente. Te dás conta que os meios dissuasivos da polícia, neste caso os Carabineiros, são muito mais violentos do que víamos nos anos 80.

 A tecnologia da repressão?

Sim. É completamente diferente. Nos anos 1980 não conhecíamos o gás pimenta, que te jogam diretamente na cara, não havia as balas de borracha que mutilam tantos jovens atualmente, que cegam. Hoje em dia a repressão é tecnologicamente muito mais violenta e psicologicamente também. Nos anos 80, apesar de tudo, ainda se conseguia algum diálogo com a polícia. Sabiam que eras fotógrafo e te perguntavam o que estava fazendo. Hoje não, mesmo sabendo que muitos estão gravando. 

“As privatizações são um saque não apenas para esta geração, mas para as gerações que virão”

Como esperas que um novo governo possa recuperar o Chile para os chilenos na defesa de um novo Estado, que desprivatize a água, o cobre e as riquezas naturais?

Acredito que precisamos pôr fim às privatizações, porque no fundo são um roubo. Estão fazendo um saque não apenas para esta geração, mas para as gerações que virão, porque os recursos naturais necessários vão ser muito escassos. Diante disso, temos que terminar com este saque. A administração do Estado terá de recuperar todos esses recursos naturais que devem ser corretamente manejados e, dessa forma, devem servir para resolver todos os problemas de saúde, de habitação, da educação, o caos das aposentadorias, que são os principais problemas dos dias de hoje.  Não podemos seguir com esse modelo econômico que nos venderam e que muitos ainda o compram.

Um reflexo disso seria o apoio que conta Kasti (candidato da extrema direita) uma parcela da população?

Claro que sim. Seguem defendendo isso. Kasti é um personagem que reivindica a ditadura, que tem uma desconexão com as pessoas reais que procuram um hospital e levam três meses para serem atendidas. É uma desconexão com tudo.

Acreditas na necessidade de uma coalizão ampla para um provável segundo turno das eleições presidenciais? 

Tenho a sensação de que a direita, depois de todos os resultados dos protestos, de termos conquistado uma Assembleia Constituinte ´- arrancada na luta —, e os resultados das últimas eleições [da própria Constituinte] está muito debilitada. Mas, também, por parte da oposição temos uma divisão que deveríamos resolver. Porém, ainda persistem muitos interesses que me incomodam. Interesses pessoais e econômicos. Há muito poder dos parlamentares. Falta um pouco mais de solidariedade entre nós, e isso é fruto do mercado, de um sistema que nos venderam e do modelo que muitos compraram. Precisamos fazer um esforço em relação a isso. Se em algum momento conseguimos derrotar a ditadura, devemos trabalhar pela reconstrução do país. Este será o legado para as futuras gerações.

Caio Teixeira e Leonardo Wexell severo, ComunicaSul

Esta reportagem foi elaborada pelo Coletivo ComunicaSul, com o patrocínio da Diálogos do Sul, Agência Carta Maior, jornal Hora do Povo, Apeoesp Sudoeste Centro, Intersindical, Sintrajufe-RS, Sinjusc, Sindicato dos Bancários do RN, Sicoob, Barão de Itararé e Agência Sindical.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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