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Regressar e recomeçar: O sonho que move imigrantes em busca de trabalho nos EUA

A guatemalteca Cayetana se nega a deixar de sonhar, de se ilusionar, porque se cede um segundo à realidade, estará perdida; leia a crônica de Ilka Oliva Corado
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul
Território Estadunidense

Tradução:

Cayetana acende o fogão e começa a esquentar a comida que meterá nos recipientes para seu almoço, são as quatro da manhã. Enche com água cinco garrafas plásticas de um litro e meio que são as que tomará em seu dia de trabalho.

Em sua lancheira meteu um pacote de tortilhas quentes que envolveu em papel alumínio e amarrou em dois sacos plásticos. Revisa para ver se não esqueceu de nada: o recipiente de arroz, os ovos mexidos, os feijões fritos e as tortilhas. Põe as joelheiras, duas calças, dois suéteres, casaco e suas botas tipo Caterpillar. Na mochila leva as luvas, o lenço com que cobrirá seu rosto e o chapéu.

Sai do apartamento que compartilha com oito pessoas mais, todas indocumentadas como ela. Na esquina do edifício pega carona com um companheiro de trabalho que lhe cobra vinte dólares para levá-la; ela prefere pagar o frete e não tomar o trem nem o ônibus porque perde mais tempo e o que necessita são mais horas de trabalho porque quer juntar para construir sua casa em sua aldeia natal, La Palmilla, Usumatlán, Zacapa, Guatemala. Por isso trabalha de segunda a domingo.

Quase às cinco e meia de manhã chega ao campo de cultivo, são vinte e dois anos cortando rábanos, de joelho o dia inteiro, recebendo em suas costas encurvada as horas de sol. Por mais que lave as mãos e passe creme, as pontas dos dedos estão rachadas e as unhas amareladas da terra dos sulcos; qualquer pessoa da cidade pensaria que é descuido e sujeira o que tem nas unhas e não longas jornadas de trabalho nos campos de cultivo.

A guatemalteca Cayetana se nega a deixar de sonhar, de se ilusionar, porque se cede um segundo à realidade, estará perdida; leia a crônica de Ilka Oliva Corado

Pixabay
Ilka Oliva-Corado | Indocumentados e as horas de sol

A cada quatro horas passa bloqueador solar no rosto, ajeita o lenço e o chapéu, mas o vapor da terra quente transpassa tudo, as manchas em seu rosto ficaram de forma permanente. Sofre de fortes dores nos joelhos e nas costas e mais a insolação diária que é parte dos ossos do ofício, da jornada de trabalho. Tem só trinta e nove anos, mas parece ter vinte anos mais.

Não pode ir ao dentista tratar as dores de dente porque é caríssimo, ela prefere não desajustar as remessas e que seus quatro filhos em seu país de origem terminem a universidade. Para aliviar a dor momentaneamente chupa algodão com álcool, morde cravos o tempo todo e faz enxágues de água com sal.

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Já conseguiu recuperar a escritura do terreno da casa de seus pais, que a tinham empenhado para que um prestamista lhes dera dinheiro para pagar o coiote para que ela emigrasse; também ficaram cuidando das quatro crianças. De Zacapa lhe enviam por encomenda os unguentos para aliviar a dor nos joelhos e nas costas, ir a uma clínica é impossível, é demasiado dinheiro e ela não o tem.

Cayetana sonha com o dia do regresso, ter sua casa própria e seu negócio, porque o que menos quer é voltar a trabalhar diariamente nas plantações de melão, pimenta doce, melancia, tabaco, uva e loroco como teve que fazer desde criança.

Ela espera que seu retorno seja diferente e que lhe restem forças para trabalhar dez anos mais nos Estados Unidos e economizar o suficiente para não voltar a pisar na sua vida em um sulco que não seja a da parcela que pensa comprar para passar os últimos anos de vida na planície, gozando a imponência da Serra das Minas.

Esses são seus delírios de meio dia quando o sol abrasador da Califórnia murcha as folhas dos sulcos de rábanos e o vapor da terra queima a planta dos pés.

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Mas Cayetana se nega a deixar de sonhar, de se ilusionar, porque se cede um segundo à realidade estará perdida, brinca de imaginar as plantas de mamão, os sulcos de milho, a sombra dos guayacanes, as mãos de seus pais, os abraços de seus filhos, pensa nas águas do rio Motagua, no sabor das queijadinhas de arroz e na parcela na planície, em sua casa com corredor e uma rede, na forquilha com o cântaro de água ao lado da cozinha.

Cayetana viaja no tempo, porque para ela é melhor sonhar e ilusionar-se que prestar atenção à dor nas costas e nos joelhos e ao ardor das pontas de seus dedos, à dor de dente e ao vazio que sente em seu coração por não haver visto seus filhos crescendo.

Ilka Oliva-Corado, Colaboradora de Diálogos do Sul desde território estadunidense.
Tradução de Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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