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Toggle“O moderno sistema mundial nasceu ao longo do século 16.
A América – como entidade geosocial – nasceu ao longo do século 16.
A criação desta entidade geossocial, América,
foi o ato constitutivo do moderno sistema mundial.
A América não se incorporou a uma economia-mundo capitalista já existente.
Uma economia-mundo capitalista não teria existido sem a América.”
Aníbal Quijano e Immanuel Wallerstein, 1999[1]
A sociedade panamenha ingressou em um processo de crise política aberta desde julho de 2022. Compreender o desenvolvimento deste processo até o presente, e suas perspectivas de curto e médio prazo, demanda distinguir entre a contradição principal que afeta o país, e o aspecto principal desta contradição nas diversas etapas deste processo.
Esta contradição principal radica no esgotamento do que caberia chamar o modelo transitista de desenvolvimento, que desde o século 16 concentrou o fundamental da atividade econômica e do poder político nos grupos sociais que controlam o trânsito interoceânico pelo Istmo. Por sua vez, o aspecto principal desta contradição se expressa na crescente incapacidade dos setores dominantes nesse modelo para compreender e atender aos problemas que o afetam.
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No século 20, esta função ficou em mãos dos Estados Unidos, que o exerceram para adiantar suas aspirações à hegemonia global que viria a alcançar depois da Grande Guerra de 1914-1945. Os Estados Unidos exerceram este controle ao amparo de um regime de protetorado militar estabelecido no Tratado Hay-Bunau Varilla de 1903 – e ampliado depois pela Assembleia Constituinte de 1904. Este protetorado foi organizado mediante a criação de um enclave colonial conhecido como Zona do Canal.
Aquele enclave estrangeiro veio a desintegrar-se entre 1979 e 1999 segundo o acordado no Tratado Torrijos-Carter. A partir de então, passou a reconstituir-se depois, em escala ampliada, como uma Plataforma de Serviços Transnacionais para a circulação do capital, gerando 80% da renda do país. A criação deste enclave ampliado recebeu um impulso decisivo depois do golpe de Estado de dezembro de 1989, que liquidou um regime militar já destroçado por seus conflitos internos, substituindo-o por uma versão renovada da democracia oligárquica que imperara no país entre 1903 e 1968.
Jornal da USP
É crescente a incapacidade dos setores dominantes desse modelo de compreender e atender aos problemas que o afetam…
Prestígio e credibilidade
Naquele momento, o transitismo nacionalizado gozava de um prestígio e de uma credibilidade – expressa por exemplo na gestão exitosa da via interoceânica sob administração panamenha. Hoje, no entanto, o transitismo enfrenta uma situação de descrédito em que se combinam fatores como uma grave situação de iniquidade no acesso aos frutos do crescimento econômico, o descrédito do sistema político-partidário reestabelecido a partir de janeiro de 1990, e a acumulação de grandes problemas que o Estado não está em condições de encarar com o país a que deve servir.
De fato, os grandes beneficiários da ampliação do enclave de serviços transnacionais não mostraram interesse pela integração do Canal à economia interna, nem pela integração dessa economia ao mercado global a partir por exemplo do fomento de novas vantagens competitivas em setores como a produção agropecuária e a de serviços ambientais. Com isso, não só privaram o país de novas modalidades de desenvolvimento, como contribuíram na prática para o agravamento dos problemas que o modelo de desenvolvimento vigente não tem capacidade para resolver.
No que é mais visível, estes problemas vão desde a grave deterioração dos serviços públicos de segurança social, educação e saúde até os que apresenta a sustentabilidade do Canal devido às crescentes limitações na oferta de água doce que seu funcionamento requer. A isso veio a somar-se a metástase da economia de enclave, agora na forma de uma exploração minerária de cobre a céu aberto que vem operando na região centro-ocidental da vertente atlântica do Istmo desde o final da década de 1990.
Legitimação
A legitimação deste enclave minerário mediante um contrato com o Estado, que muitos consideram lesivo aos interesses do país e com graves consequências ambientais, tornou-se agora o aspecto principal da deterioração do modelo de desenvolvimento transitista. Na prática, o Estado perdeu a capacidade de processar e dirigir para objetivos comuns os conflitos derivados desta deterioração, que não permite garantir uma prosperidade equitativa, sustentável e democrática no país.
Em julho de 2022 a crise que encaramos hoje manifestou-se pela primeira vez em mobilizações sociais que paralisaram o país, reclamando atenção aos problemas derivados da inflação, do desemprego e da deterioração dos serviços de saúde, segurança social e educação. Esta vem operando desde então, parafraseando o general Omar Torrijos, como um serrote, que avança e retrocede, mas cortando sempre.
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Interessa, em todo caso, observar que deste ir e vir participam todos os setores da vida nacional. No caso da mineração, por exemplo, uns repudiam o contrato, mas não a mina em exploração; outros demandam o fechamento da empresa; outros, a proibição da mineração no país, e outros ainda pedem combinar a aprovação do contrato com a declaração de uma moratória da atividade minerária.
E emergem agora – na melhor tradição de manobra política crioula – os que recomendam suspender o processo de aprovação parlamentar para voltar à mesa de negociação enquanto se diluem as tensões. Isto, no entanto, equivale a remeter o problema para o governo que surja das eleições de maio de 2024, agregando-o aos da Caixa de Segurança Social, e à dos investimentos, o que demandará garantir o abastecimento de água para o Canal mediante a transposição de rios vizinhos à exploração minerária em curso.
Alguém disse algum dia que a solução de grandes problemas gera sempre problemas novos e mais complexos. Estamos às vésperas de conhecer os problemas novos e mais complexos que resultem da incapacidade para encarar e resolver, com a sociedade e não simplesmente para ela, as contradições que surgem do esgotamento do modelo de desenvolvimento imperante na sociedade panamenha desde as origens mesmas do mercado mundial.
Alto Boquete, Panamá, 22 de setembro de 2023
Nota
[1] “A americanidade como conceito, ou a América no moderno sistema mundial”
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000092840_spa
Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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