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ToggleNo princípio de novembro do ano passado, explodia uma autêntica bomba informativa que dinamitava um dos poucos governos europeus onde os socialistas governavam com maioria absoluta. António Costa, primeiro-ministro de Portugal desde 2015, demitia-se, depois de ver-se envolvido em uma investigação relacionada com tráfico de influências, corrupção e prevaricação em projetos energéticos. Apesar de não ser formalmente imputado, o próprio Costa justificou sua renúncia porque ser investigado era “incompatível com a dignidade do cargo”, convocando eleições antecipadas para domingo passado, 10 de março.
Dois anos depois de Costa conseguir uma atípica maioria absoluta socialista em uma Europa com parlamentos fragmentados e governos de coalizão, Portugal votou majoritariamente por uma vitória estreita da direita. O candidato do Partido Social Democrata (PSD) – de herança democrata cristã – Luís Montenegro, impôs-se nas eleições legislativas com 29,49% dos votos, superando os 28,66% do candidato do Partido Socialista (PS), Pedro Nuno Santos. Ainda que quem parece continuar pagando a fatura da inusitada aliança de esquerda que permitiu que Antonio Costa arrebatasse o poder do PSD em 2015, continuam sendo seus sócios menores na coalizão. Tanto o Bloco de Esquerda como o Partido Comunista Português (PCP) não só se viram incapazes de rentabilizar o desgaste social do PS como passaram respectivamente de 10,19% e 8,25% em 2015 para 4,46% e 3,3% em 2024.
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E tudo isso apesar de os dados macroeconômicos portugueses do último governo de Antonio Costa suporem um milagroso aumento do PIB, elogiado como “um modelo de crescimento para as pequenas economias europeias”, no que foi chamado “capitalismo da sardinha“. Mas a realidade nas ruas é bem diferente. Cada vez são mais os que veem que o suposto milagre econômico não chega aos bolsos das pessoas: quase 70% dos portugueses têm problemas para chegar ao fim do mês e no ano passado o custo do aluguel de uma casa quase triplicou o da Espanha, enquanto o SMI do país mal passava de 760 a 820 euros. Apesar do crescente mal-estar social diante de uma economia cada vez mais deslocada entre os grandes números e a vida real das pessoas, este não foi capitalizado pelas forças à esquerda do PS e sim por uma ultradireita neoliberal e ultraconservadora que se levantou com o voto de protesto nestas eleições.
Assim, um dos grandes vencedores do avanço eleitoral foi André Ventura, o líder do partido ultradireitista Chega, que obteve 18,06% dos votos – tornando-se a terceira força – seus melhores resultados desde sua entrada no parlamento português em 2019, com 1,3%. Um crescimento meteórico para uma ultradireita que desde a revolução dos cravos de 1974 que acabou com a ditadura militar de António de Oliveira Salazar, mal estivera presente na vida pública portuguesa. Uma situação que seguramente mudará a partir de agora, pois Chega parece estar em condições de desempenhar um papel mais que importante nos próximos anos.
2019, o início da ascensão da ultradireita
No princípio da década de 1970, a grande maioria dos europeus pensava que o renascimento das organizações ultradireitistas se articularia em torno dos restos das ditaduras mediterrâneas (Portugal, Grécia e o Estado espanhol). O tempo demonstrou o contrário, salvo no caso particular da Grécia. Tanto em Portugal como no Estado espanhol, as opções partidárias vinculadas ao espectro da ultradireita colheram tradicionalmente os piores resultados eleitorais do continente até agora. Não foi senão a partir de 2019 que, tanto em Portugal como na Espanha, a ultradireita conseguiu uma representação independente em seus respectivos parlamentos. A internacional reacionária que sacode meio mundo, especialmente a Europa, chegava finalmente à península ibérica com uns quantos anos de atraso em relação a seus homólogos europeus.
O Chega é fundado no mesmo ano de 2019 sob a liderança de André Ventura, um político ultraconservador popularmente conhecido por seu papel como comentarista esportivo na televisão. Um projeto pessoal de um líder que mantém a fé religiosa como um pilar mais sólido inclusive que seus postulados políticos, chegando a afirmar que Deus o encarregou de uma missão para transformar Portugal. “Eu creio que Deus me colocou neste lugar, neste momento”. O próprio Ventura alcançou certa popularidade política como candidato do Partido Social Democrata à Prefeitura de Loures (periferia de Lisboa), onde concentrou sua campanha no ataque xenófobo e à estigmatização contra a minoria cigana do município.
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O próprio Chega, assim como Vox, seu homólogo espanhol, nasce como uma cisão da direita, neste caso do PSD. De fato, seu nome provém do movimento interno que o próprio Ventura liderou dentro do PSD contra o máximo dirigente do partido que acusava de moderado (Chega de Rui Rio). Seu êxito, o mais fulgurante da democracia portuguesa, construiu-se como capítulo luso da onda reacionária global; em base a propostas e declarações polêmicas e racistas (castração química para agressores sexuais, confinamento específico para ciganos na pandemia, ataques aos beneficiários de ajudas sociais, discursos antimigração, anti-LGBTQIA+, antifeminista e de difusão de teorias conspiratórias como a da grande substituição demográfica); e como expressão de um certo sentimento de revolta, descontentamento e mal-estar da população pelos incumprimentos dos diferentes governos, especialmente a partir da crise de 2007-2008 e da deterioração do escasso Estado de bem-estar luso.
“Limpar Portugal”
Talvez seu elemento programático estrela seja o “combate contra a corrupção”. Neste sentido, o programa de Chega inclui toda uma bateria de propostas como “a criação e efetiva implementação no âmbito da Justiça do crime de enriquecimento ilícito”, assim como uma reforma do sistema de embargo, confisco dos bens que sejam fruto de delitos econômicos e financeiros, e mudanças para acelerar os prazos do sistema judiciário. De fato, seu lema de campanha: “Limpar Portugal”, deixava claras suas intenções, identificando nos cartazes eleitorais quem é preciso limpar: os políticos socialistas. A sucessão de escândalos de corrupção, desde o do ex presidente socialista José Sócrates até o que foi cobrado do governo de Antonio Costa, foram a gasolina perfeita para o voto de protesto e o ascenso do Chega.
Ainda não sabemos se finalmente Luís Montenegro (PSD) cumprirá sua promessa eleitoral de não governar com o Chega ou se fará como seu homólogo espanhol (PP) e pactuará com ele a fim de assegurar-se o governo. Mas desde já o que parece é que o fenômeno da ultradireita chegou a Portugal para ficar, como confirmaram os resultados eleitorais e sua meteórica ascensão de 1,3% em 2019 a 18,21% em 2024. Uma ultradireita que pela primeira vez tem audiência de massas e que questiona a Revolução dos Cravos, o momento fundacional da democracia portuguesa, e que justo em seu 50° aniversário pode ocupar algum posto ministerial. Neste 25 de abril será mais necessário que nunca que a esquerda portuguesa possa recuperar o espírito revolucionário e democrático de Grândola, Vila Morena, para não esquecer que o povo é quem mais ordena.