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Aporofobia: ódio aos pobres dá tom e forma às eleições de 2023 na Argentina

País, outrora graneiro do mundo, transformou-se em uma nação rica em pobres, odiados pela classe média e ultradireita
Aram Aharonian
Estratégia.la
Buenos Aires

Tradução:

Às vésperas das eleições Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO), os candidatos argentinos utilizam todas as suas estratégias de comunicação para apaixonar próprios e alheios, preocupados com duas situações: o crescente número de votantes indecisos que não se sentem atraídos por nenhuma das duas grandes coalizões, e o discurso da direita de rejeição dos pobres.

As eleições primárias deste domingo, 13 de agosto, definirão os candidatos que competirão nas eleições de 22 de outubro, mas também darão o tom da campanha eleitoral, que começou com nervosismo, estridentes acusações e certa apatia da população.

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O oficialista União pela Pátria, a coalizão direitista Juntos pela Mudança, os ultradireitistas da Liberdade Avança, a Frente de Esquerda e os Trabalhadores-Unidade, assim como as demais forças políticas preparam-se para as eleições primárias de domingo, 13 de agosto. Os partidos se apresentarão em 27 chapas e em eleições internas definirão os nomes que competirão por um cargo nas eleições gerais de 22 de outubro.

Polarização e indecisos

Longe da extrema polarização que domina a política argentina há vários anos, há entre 5 e 15% de indecisos, segundo as diferentes pesquisas. Desde sua aplicação em 2011, e apesar da obrigatoriedade do voto, nas primárias sempre se registra menor participação do que nas eleições nacionais. Nas últimas eleições, a participação em 15 de 17 províncias não superou 70%, uma queda que não se verificava desde o início da década de 2000.

Na maioria dos casos, esta porcentagem de ausentes é diretamente proporcional ao descontentamento provocado pelos últimos oito anos de gestão: os que decidem não votar não são apolíticos: estão decepcionados com as gestões de Mauricio Macri e Alberto Fernández e não encontram na oferta eleitoral um candidato que os motive e lhes proponha soluções que respondam a suas necessidades e exigências.

Desde a saída da ditadura nunca se sentiu com tanta intensidade que na “rua não acontece nada” diante de um processo de eleições presidenciais: já não acontecem grandes atos, nem demonstrações de trabalho incansável por parte da (desaparecida?) militância, nem convocações para percorrer o país. E, para piorar, as pesquisas estão descartadas como termômetro fiel: não são confiáveis.

Yo toqué un pobre

Tudo se reduz ao cenário midiático e das redes, evitando-se todo contato físico, o que marca o profundo distanciamento entre “as pessoas” e “a política”. Talvez porque nenhum dos candidatos escape do gélido clima eleitoral, a falta de ideias e/ou intenção de transcender os leva a incorrer em declarações, contradições, arrebatamentos e gestos teatrais, às vezes dirigidos a seus próprios correligionários.

Assalto ao poder e ódio político

Para a direita, já não tem prioridade as constantes do mercado; sua meta é um assalto ao poder, absolutamente dominado pelo ódio político que surge por não ter ganho uma guerra que começou em 1955 e teve seu auge na ditadura genocida de 1976. Os problemas econômicos por resolver ficam agora postergados.

O psicanalista e escritor Jorge Alemán afirma que sim, é necessário que o país se incendeie mas, agora, a Argentina se prepara – aproveitando a onda mundial de neofascismo – para uma máquina de guerra que finalmente destrua um possível ressurgimento do nacional e do popular.

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Por isso privilegiou o aspecto ideológico-político sobre qualquer assunto. O plano é acabar de uma vez com o peronismo, especialmente depois de sua versão maldita: o kirchnerismo, acrescenta.

País, outrora graneiro do mundo, transformou-se em uma nação rica em pobres, odiados pela classe média e ultradireita

Foto: Luca Lo Tartaro/Unsplash
Grafite em Buenos Aires, Argentina

Aporofobia, ódio aos pobres

O ódio às pessoas pobres tem nome, chama-se aporofobia. É uma palavra recém parida, mas para uma ferida  antiga que aparentemente não vai cicatrizar nunca. Em um mundo com uma lógica baseada em dar e receber, rejeita-se e se exclui aquele que carece de algo para devolver em troca. É o atentado diário, quase invisível, contra a dignidade e o bem estar das pessoas concretas às quais está dirigido.

Nas democracias modernas, a aporofobia invisibiliza determinada população sem necessidade de eliminar o corpo físico porque elimina o corpo identitário, por meio dos discursos de ódio. A Argentina, outrora graneiro do mundo, transformou-se em uma nação rica… em pobres.

Por qué la clase media argentina odia a los pobres - El Diario del centro del país

O ódio aos pobres (aporofobia) não provem só das classes altas; a triste realidade indica que também está imersa em um setor da classe média, que embora não se manifeste explicitamente nem os sujeitos reconheçam ser aporofóbicos. Torna-se visível em alguns insultos e agressões como “negros de m…”, “preguiçosos de m…”, “é preciso matá-los todos”, etcétera.

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Aporofobia é um termo novo que em 2017 passou a fazer parte do Dicionário da Língua Espanhola: foi a palavra do “ano”, ganhando de goleada de Bitcoin, entre outras. Rejeitam-se os pobres ao não retirá-los de sua pobreza, ao não lhes dar os meios necessários para obter um emprego digno em lugar da dádiva estatal.

Na Argentina este fenômeno mostra-se nas propostas de campanha para as eleições de 2023: o ultradireitista Javier Milei irrompeu com um discurso caracterizado pela exaltação e a violência mais do que pelo conteúdo, obtendo a atenção de jovens e descontentes com o status quo político e econômico do país. Mas a aliança direitista seguiu o mesmo caminho, sobretudo sua pré-candidata presidencial Patricia Bullrich.

Em 1885, o país estava entre as primeiras potências do mundo, e a metamorfose sofrida fica demonstrada na degradação das promessas eleitorais. “A aporofobia é evidente neste tipo de situações que nos tornam uma nação marginal, distópica e pouco apegada ao cumprimento da lei. Somos o que somos porque votamos como votamos, por isso vamos de fracasso em fracasso”, afirma Jorge Grispo.

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O ódio aos pobres, entendido em sua falta de inclusão em um nível de vida digno, também se esconde por trás de um suposto “nacionalismo” que repudia bolivianos, paraguaios e peruanos. Não se trata só de xenofobia (ódio aos estrangeiros) porque não se odeia o estadunidense, o inglês ou o alemão (e tampouco as transnacionais). Odeia-se “os morenos” do interior argentino, o boliviano, o paraguaio e o peruano, isto é, os estrangeiros pobres. É ódio de classe.

Aporofobia y el odio a los pobres | Perfil

A classe média argentina odeia os pobres porque não são submissos, rebelam-se contra o sistema, não se submetem aos mecanismos exploradores e indignos que lhes querem impor, afirma Ernesto Bertoglio. Não se trata só de dinheiro, porque o dinheiro e o capitalismo não têm sentido se não dão poder-controle sobre outros. E se estes outros têm acesso ao dinheiro, perdem o desespero, e se perdem já não se pode jogar com esse desespero para poder controlá-los, discipliná-los; insubordinam-se, acrescenta.

Odeia-se os pobres devido aos subsídios estatais para sobreviver, como a Doação Universal por Filho, mas midiaticamente é mais contundente odiar o progressismo e Cristina Fernández como “corrupta”, com a ajuda do lawfare. Os meios de comunicação deram aos aporófobos um discurso moralmente correto atrás do qual escondem seu ódio aos pobres.

Primárias

O Teorema de Baglini indica que as propostas de um partido ou dirigente são diretamente proporcionais a suas possibilidades de acesso ao poder. Quanto mais longe está, mais duro o discurso. O difícil, o responsável, seria encontrar um ponto médio entre a resignação e o panfletarismo.

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A oficialista União pela Pátria (UP), antes Frente de Todos, sai em desvantagem, apesar de desfazer-se do “cortesão” presidente Alberto Fernández, de paupérrima gestão, e ainda que seu principal candidato seja o ministro Sergio Massa, o dos acordos com o Fundo Monetário Internacional e a inflação de mais de 100% ao ano.

Está obrigada a voltar-se para as ruas, com mesas, batendo de porta em porta, com palestras nos bairros, porque tem que convencer céticos e desgostosos, que são muitos e são os que podem fazê-la ganhar. Aquela locomotiva que significava a figura de Cristina Fernández de Kirchner – a última política, segundo Rubén Armendáriz -, desapareceu.

A coalizão de direita parece estar em condições de vencer e não tem esse problema, mas sofre o choque de egos, ressentimentos pessoais e – porque não – luta por negócios. Mas não tem nunca enfrentamentos ideológicos. Os antagonismos entre Rodríguez Larreta, chefe do governo capitalino, e as barbaridades de Patricia Bullrich servem de animadores para a mídia.

A direita, além de suas ofertas, avisa que tentará liquidar negociações paritárias, indenizações, adicionais de salário, mas nada diz sobre como procederão com o monstruoso endividamento que deixaram em 2019 com o FMI.

Os pré-candidatos oficialistas têm o problema de como projetar o futuro se está governando há mais de três anos e a percepção massiva, em consequência, é que teve a oportunidade de arrumar as coisas.

Enquanto isso, os distintos espaços de esquerda, fragmentada em várias alianças, terão que conseguir 1,5% dos votos para participar das eleições gerais.

Na Frente de Esquerda e Trabalhadores – Unidade (FIT-U) haverá uma escolha interna: duas chapas presidenciais que buscarão ficar com um único lugar disponível em outubro: Myriam Bregman e Nicolás del Caño representarão a aliança do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) e Esquerda Socialista (IS), enquanto Gabriel Solano e Vilma Ripoll estão com o setor do Partido Operário (PO) e o Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST).

Por sua vez, os candidatos do Novo MAS e da Política Operária correrão por fora. Livres do Sul, com Jesús Escobar como presidenciável, também tentará superar os 500.000 votos que o habilitem a participar das eleições de 22 de outubro, enquanto o Projeto Jovem, de que faz parte Mempo Giardinelli, terá uma eleição interna com três pré candidatos.

O frenesi midiático de uma campanha eleitoral carente de mensagens de esperança e de ofertas que apaixonem contrasta com a aporofobia e com a exigência estrutural das comunidades originárias silenciadas desde sempre, e que agora peregrinam desde Jujuy no norte até a capital para fazerem-se ver e ouvir. Mas os políticos estão demasiadamente ocupados em olhar-se no espelho para preocuparem-se com uns índios, talvez mais pobres que muitos outros milhões de argentinos.

Aram Aharonian | Jornalista e comunicólogo uruguaio. Mestre em Integração. Criador e fundador de Telesul. Preside a Fundação para a Integração Latinoamericana (FILA) e dirige o Centro Latinoamericano de Análise Estratégica (CLAE)
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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