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Após 9 anos do massacre de Curuguaty, camponeses seguem lutando por terra e Justiça no Paraguai

Ato simbólico recordou os 17 mortos no “confronto” provocado por tropas de elite treinadas pela CIA e pelo exército dos EUA que afastou o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, uma semana depois
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O povo paraguaio recordou neste 15 de junho (terça-feira), nove anos do massacre de Marina Kue, no distrito de Curuguaty, em que o assassinato premeditado de 17 pessoas – 11 camponeses e seis policiais – abriu caminho para o golpe jurídico-midiático-parlamentar contra o presidente Fernando Lugo uma semana depois.

Com faixas e cartazes em defesa de Justiça pelos caídos e pela regularização da terra pública, familiares e amigos das vítimas, artistas, policiais, representantes da sociedade civil e da igreja realizaram uma manifestação simbólica na entrada do latifúndio em que ocorreu a carnificina, feita por tropas de elite treinadas pela CIA e pelo exército dos Estados Unidos.

“Estamos denunciando mais um ano de abandono do Estado e de injustiça, honrando a memória dos que caíram, colocando seus nomes em flores que brotaram do solo regado com seu sangue e em balões que foram aos céus em meio a vivas”, declarou Martina Paredes, da Associação de Familiares e Vítimas do Massacre de Curuguaty.

Martina perdeu dois irmãos no massacre – Fermín e Luis Agustin -, tornando-se ao lado de Dario Asunción Acosta, símbolo de resistência dos acampados à fúria dos sucessivos governos neoliberais e da mídia venal.

Na época, as emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas reverberaram em uníssono que os sem-terra tinham “invadido uma área de 2.000 hectares, de reserva natural, do empresário Blas Riquelme”. A realidade era o inverso, a família Riquelme ocupava terras ilícitas, produto da distribuição entre comparsas da ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989).

Ato simbólico recordou os 17 mortos no “confronto” provocado por tropas de elite treinadas pela CIA e pelo exército dos EUA que afastou o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, uma semana depois

Amado Arrieta
Com cartazes em defesa de Justiça, paraguaios realizaram uma manifestação simbólica na entrada do latifúndio em que ocorreu a carnificina.

Frutos da terra

Mostrando orgulhoso “o cesto repleto de alimentos produzidos em comunidade na terra de Curuguaty”, Dario Asunción destacou que “esta era a melhor forma de homenagear os caídos, perpetuando sua memória no coração da agricultura familiar e fortalecendo a luta pelos direitos humanos”.

O cesto com abóbora, alface, banana, cebola, cebolinha, mamão, melancia, milho, pimentão e salsinha, entre outros produtos plantados e colhidos em comunhão, afirmou o monsenhor Mario Melanio Medina, “estampa o ânimo e a coragem dos que não se dobram na luta pela terra e a vida, dos que buscam dar à felicidade a dimensão da eternidade”.

Apesar de ter sido aprovado por deputados e senadores no final do ano passado, o Projeto de Lei (PL) que transfere 1.748 hectares de Marina Kue ao Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert) foi vetado pelo presidente Mario Abdo Benítez, parceiro de Jair Bolsonaro e dos latifundiários estrangeiros que infestam o Paraguai. O PL possibilita que as cerca de 160 famílias de camponeses que reivindicam as terras que foram cenário da carnificina sejam beneficiadas com a reforma agrária, tendo acesso a serviços básicos.  Mesmo após se referir à aprovação do reconhecimento de Marina Kue como uma “medida de justiça”, logo depois Mario Abdo voltou atrás e vetou a redistribuição.

Segundo Guillermina Kanonnikoff, do Movimento de Solidariedade aos camponeses de Curuguaty e ex-presa política da ditadura de Stroessner, Marina Kue continua sendo tratada como “reserva florestal” e o próprio governo está tratando de transferir 806 hectares para o Indert, a parte desflorestada.

Contraproposta

“Há uma contraproposta da Associação de Familiares e Vítimas de administrar também a parte dos bosques, conjuntamente com instituições que se dedicam à causa ecológica, como a ONG Sobrevivência e Amigos pela Terra. Além de estarem super preparados, os camponeses são os maiores interessados em defender a preservação dos bosques porque deles depende a umidade da terra, a água que abastece suas plantações”, assinalou Guillermina. “Temos também manifestações da Igreja, que quer se somar conosco neste projeto. Portanto, a ideia é começar a regularização da propriedade a partir dos primeiros 806 hectares e seguir lutando pelos dois mil. Porque senão aquilo ficar terra de ninguém, os ‘marijuaneros’ (grandes plantadores de maconha) vão tomar conta”, disse.

A dirigente do Movimento de Solidariedade ressaltou que “o que não aceitamos é que haja uma lei discriminatória contra os camponeses e indígenas, que sejam considerados depredadores, em vez dos grandes latifundiários, que devastam as florestas para vender sua madeira, contaminam o solo com sua soja e plantam ‘marijuana’ em abundância”.

De acordo com Guillermina, “há muita confiança que a partir da medição pelo Indert, possamos chegar aos dois mil hectares. O compromisso é respeitar a convivência do homem com a natureza, sem retirar uma única árvore e começar a capacitação para aproveitar estes bosques para fazer cultivos que podem ser feitos na sombra, como é o caso da erva-mate e das hortaliças”. “Conversamos sobre isso com o arcebispo de Assunção que disse que irá acompanhar de perto todo esse processo, pois é algo que está na encíclica do Papa Francisco: ‘a convivência harmônica entre o homem e a natureza’. Queremos que Marina Kue seja um exemplo a seguir”, enfatizou Guillermina.

“Confronto”

Para termos a dimensão do “confronto”, ele envolveu de um lado 324 policiais, tropas de elite armadas com fuzis, bombas de gás, capacetes, escudos e até helicóptero e de outro, 60 trabalhadores sem-terra, metade deles mulheres, crianças e anciãos, e algumas espingardas de caçar aves que nem chegaram a ser disparadas. O sangue inundou o campo e os noticiários, os mesmos que se tornaram cúmplices, silenciando não só sobre a real situação dos camponeses, como da fome na mesa dos paraguaios.

País que produz alimentos para mais de 70 milhões de pessoas, o Paraguai tem parcela expressiva de seus 7,1 milhões de habitantes faminta. Outra parte paga preços cada vez mais absurdos – em meio ao avanço da pandemia – por produtos que servem tão somente para enriquecer – e engordar – uma minúscula casta de nacionais e estrangeiros.  


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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