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ToggleHá exatamente quinze anos era assassinada, em Anapu (PA), a missionária Dorothy Stang. Denúncias feitas pela freira tinham motivado, um ano antes, autuações milionárias por desmatamento para os dois mandantes do crime, lavradas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Nenhuma das multas foi paga. A base de dados da autarquia mostra que duas multas graúdas, uma para cada um, prescreveram. Outras ainda correm na justiça ou administrativamente, dezesseis anos depois.
Conhecido como Taradão, Regivaldo Pereira Galvão foi condenado a 30 anos de prisão, em 2019, como mandante do homicídio. Ele recebeu duas multas de R$ 750 mil cada, em 2004. Uma delas, do dia 6 de novembro daquele ano, prescreveu. A outra punição ocorreu um mês antes, no dia 5 de outubro. A dívida consta no site do Ibama no seguinte status: “Para nova homologação, devido a alterações”. Galvão ainda não teve de pagar nada, portanto.
Essa multa de outubro de 2004 motivou um embargo, relativo a 500 hectares na Fazenda Vale do Surubim, em Anapu. O embargo é uma medida protetiva para garantir a recuperação da vegetação devastada. A data é a mesma da autuação, mas Galvão foi inserido na lista de pendências do Ibama em junho de 2007. Veja abaixo:
Mandantes foram acusados de trabalho escravo
A propriedade de Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, segundo o Ibama, não tem áreas embargadas. Mas, naquele mesmo ano, ele acumulou R$ 3 milhões em multas na região. São duas multas, em meses diferentes, de R$ 1,5 milhão cada. Assim como Taradão, Bida também não precisou ainda por a mão no bolso em razão das multas. A de agosto foi baixada por prescrição. Ou seja, o Ibama considerou que não conseguiu cobrá-la em tempo hábil e cancelou a punição.
A União tenta na Justiça cobrar o valor da multa aplicada em novembro daquele mesmo ano, na mesma data em que Taradão levou uma de suas autuações. Confira:
As duas multas para Bida foram as primeiras autuações milionárias do Ibama no município de Anapu, conforme a pesquisa histórica feita pelo observatório. Somadas, as duas multas para Taradão totalizam R$ 1,5 milhão, o que coloca o assassino entre os 4.620 maiores autuados por desmatamento dos últimos 25 anos — exatamente o período que coincide com a aplicação de multas milionárias.
A dupla de fazendeiros não foi acusada apenas de crimes contra o ambiente em 2004. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho flagrou, naquele ano, 28 trabalhadores em situação de trabalho escravo na Fazenda Rio Verde, a 60 quilômetros de Anapu, na região da Transamazônica, em fazenda pertencente a eles. Os trabalhadores foram encontrados no meio da mata fechada e tinham como único abrigo um barraco de palha e plástico preto, com chão de terra batida.
O acampamento não tinha sanitários, fossas, fornecimento de água potável ou materiais de primeiros socorros e os trabalhadores não recebiam equipamentos de proteção individual. Eles foram denunciados pelo Ministério Público Federal por manter os trabalhadores em situação análoga à escravidão em 2007, três anos depois do flagrante e dois anos após o assassinato da missionária.
Montagem / De Olho Nos Ruralistas
Violência em Anapu continuou em alta
Dorothy Stang foi alvo de seis tiros disparados por dois pistoleiros. Além dos mandantes e dos executores, um quinto homem foi condenado por ser o intermediário entre eles. A missionária tinha 73 anos e chegou no Brasil em 1966, no município de Coroatá, no Maranhão. Desde os anos 1970 estava na Amazônia, onde trabalhava com proteção ao meio ambiente e geração de emprego e renda para comunidades pobres. Ela foi assassinada dois meses depois de ter sido condecorada com o Prêmio de Direitos Humanos José Carlos Castro, conferido pela OAB-PA, por sua atuação em defesa dos direitos humanos. O caso teve repercussão internacional. Saiba mais sobre quem foi a missionária em nossa série sobre líderes da resistência no campo: “De Olho na História (III) — 15 anos após assassinato, Dorothy Stang inspira resistências na Amazônia“.
Taradão só foi preso em abril de 2019, após o STF revogar um habeas corpus que o mantinha em liberdade. Bida, que começou a cumprir pena em 2010, já estava em regime semi-aberto no ano passado. Mesmo cumprindo pena, ele mantinha boas relações com policiais e empresários da região. Tanto que foi apontado como suspeito de ser o intermediário do comandante regional da PM em Altamira na venda de proteção policial a empresários.
A violência agrária na região permaneceu em alta mesmo após a repercussão internacional do assassinato da missionária. Foram pelo menos dezessete homicídios cometidos contra trabalhadores desde 2005, segundo um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O último deles ocorreu em dezembro. A vítima era testemunha de defesa do padre José Amaro Lopes de Sousa, braço-direito e depois sucessor de Dorothy.
Amaro chegou a ficar três meses preso no ano passado, acusado pelos fazendeiros da região de uma série de crimes, inclusive extorsão. Ele acabou solto graças a um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça. A CPT vê as acusações como retaliação ao trabalho do religioso na defesa do ambiente e dos acampados. E observa que, depois da morte de Dorothy, apenas outro mandante de seu assassinato foi identificado e preso.
Acusado de facilitar fuga é mega desmatador
A Agropecuária Vitória Régia está em oitavo lugar entre os maiores desmatadores do Brasil, conforme levantamento feito pelo De Olho nos Ruralistas com base em mais de 280 mil multas por flora aplicadas pelo Ibama nos últimos 25 anos. O dono da empresa é o fazendeiro Laudelino Delio Fernandes Neto, que chegou a ser acusado de facilitar a fuga de Bida. Ele conseguiu levar, em um único dia de 2009, uma multa de quase R$ 170 milhões:
Ao contrário do que ocorreu com Taradão e Bida, essa autuação foi lavrada quatro anos após o assassinato de Dorothy Stang. O autuado foi notificado, mas, mais de onze anos depois, o Ibama continua aguardando o pagamento. Em 25 anos, apenas 1,42% das multas por flora foram quitadas: “Apenas 1% das multas por desmatamento nos últimos 25 anos foram pagas“.
Vice-prefeito de Anapu, eleito em 2008, e candidato a prefeito no município em 2012, o mineiro Delio Fernandes declarou ao Tribunal Superior Eleitoral possuir R$ 10,2 milhões em bens, sendo R$ 9 milhões relativos a 9 mil hectares em Anapu e Senador José Porfírio, município vizinho, a oeste.
A mesma propriedade que motivou a multa do Ibama foi a responsável por um embargo, movido no mesmo dia pela autarquia. A pendência foi registrada 15 dias depois. Como se pode ver ao lado, a Agropecuária Vitória Régia também sofreu um embargo em 2014, em Belém.
Apontado como interessado na morte da missionária, Delio Fernandes também já havia sido denunciado pelo Ministério Público Federal por desvios de mais de R$ 7 milhões da Sudam, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia.
O irmão do político, Silvério Albano Fernandes, foi vice-prefeito de Altamira e teve seu nome especulado para assumir a chefia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na região no governo Bolsonaro, para o qual fez campanha.