UOL - O melhor conteúdo
Pesquisar
Pesquisar
Imagens: Felix Tshisekedi - X / Jeanne Menjoulet - Flickr

Arrogância e fiasco diplomático de Macron implodem influência francesa na África

Nova geração de líderes da África rompe com o colonialismo, enfrenta Macron e redefine alianças, acelerando a decadência da influência da França
Faisal Ali
Resumen LatinoAmericano
Londres

Tradução:

Ana Corbisier

O presidente da França não pode deixar de falar, mas seus comentários condescendentes sobre a África só aceleram o colapso da influência francesa no continente.

No início de janeiro, o assediado presidente da França, Emmanuel Macron, disse a embaixadores franceses em uma conferência que nenhum dos países da região do Sahel seria soberano hoje “se o exército francês não tivesse se implantado na região” para apoiar sua luta contra os jihadistas. “Creio que alguém se esqueceu de agradecer. Não importa, virá com o tempo”, acrescentou. “A ingratidão, estou bem situado para saber, é uma enfermidade que não se transmite ao homem.”

Continua após o anúncio

O comentário de Macron foi criticado por vários líderes africanos, incluindo o presidente do Chade, Mahamat Idriss Déby Itno, que afirmou que Macron estava na “época errada”.

O primeiro-ministro do Senegal, Ousmane Sonko, também se opôs em uma publicação nas redes sociais. O presidente francês François Mitterrand afirmou que a França não tem nem a legitimidade nem a capacidade para garantir a soberania dos Estados africanos e acrescentou que o país frequentemente contribuiu para “desestabilizar determinados países africanos, como a Líbia, com consequências desastrosas para a estabilidade e a segurança do Sahel.”

Continua após o anúncio

O líder militar de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, declarou que a França deveria rezar pelos antepassados de seu país, pois, sem tê-los saqueado durante a era colonial, não desfrutaria da posição global que ocupa hoje.

Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe da nossa lista de transmissão.

Pierrette Herzberger-Fofana, ex-deputada alemã-maliense do Partido Verde, questionou se a França deveria agradecer aos africanos “que deram seu sangue pela Europa” na Segunda Guerra Mundial.

Reações na China

Eric Orlander, apresentador do popular podcast China-Global South Project, ficou sem palavras ao reproduzir o trecho em uma recente edição de seu programa. “Meu Deus”, reagiu Orlander ao transmitir os comentários de Macron a seus convidados.

Continua após o anúncio

Ovigwe Eguegu, analista do grupo de especialistas Development Reimagined e participante da conversa, verificou as declarações do presidente francês. Ele explicou que os malineses, por exemplo, tiveram uma atitude muito positiva em relação à intervenção da França em 2013, recebendo calorosamente o então presidente François Hollande, balançando bandeiras francesas e gritando “Viva a França.”

Porém, Eguegu acrescentou que, de uma iniciativa militar regional liderada pela França para outra, seja a Operação Serval, a Barkhane ou o G5 Sahel, “o que se vê é um constante agravamento da situação de segurança.”

Ruanda, Trump e coltan: os elementos da invasão contra a Rep. Democrática do Congo

Macron disse que os agradecimentos “chegarão com o tempo”, mas o tempo parece estar contra ele. A cada ano, cresce o desdém por sua administração.

Os convidados de Orlander fizeram uma pergunta simples: o que causou a instabilidade no Sahel? O governo líbio se autoderrotou e depois permitiu que armas e militantes recém-dispensados fluíssem para o Sahel? A França foi um fator chave na criação de um problema que afirmava resolver com suas intervenções pós-2013. E, à medida que aumenta o histórico de pecados franceses, mais vozes no continente denunciam Macron, seja por sua surdez política ou por tentativas deliberadas — ou equivocadas — de manipular o registro histórico.

Continua após o anúncio

Com a África, Macron descarta diplomacia

A sabedoria convencional sugere que, ao causar uma ofensa desnecessária, a melhor resposta é um pedido de desculpas. Embora isso não resolvesse completamente o problema, provavelmente encaminharia a situação para um desfecho mais favorável.

No entanto, quando se trata da diplomacia africana, a França e seus líderes parecem ignorar essa lógica, preferindo adotar uma postura sutilmente paternalista, mesclada com desprezo e condescendência.

Após sugerir que os parceiros africanos de segurança de Paris deveriam ser mais gratos à França pelo envio de seu exército a seus países, o enviado especial de Macron ao continente, Jean-Marie Bockel, reafirmou os comentários insensíveis do presidente. “A França nem sempre pode estar arrependida ou em mea culpa”, disse Bockel. Quando perguntado se compreendia por que alguns líderes africanos se sentiram ofendidos, ele respondeu à Jeune Afrique que não queria “avivar as chamas.”

O veterano político e diplomata não apenas não compreendia por que estavam ofendidos, mas também parecia claro que, se pressionado, admitiria acreditar que a França não só deveria deixar de se desculpar, como também merece gratidão.

Adeus, Francáfrica: os impactos e desafios pós-queda do exército francês na Costa do Marfim

Coleção de ofensas

Esse, no entanto, não é um incidente isolado com Macron. Trata-se apenas do mais recente episódio de uma longa série de declarações grosseiras e desastradas dirigidas a líderes e cidadãos do Sul Global. Isso nos leva a questionar: em qual momento Macron esteve, de fato, em uma postura de “arrependimento ou mea culpa”, como sugeriu Bockel?

É verdade que ele disse que a colonização francesa da Argélia foi um “crime contra a humanidade”, mas isso é simplesmente reconhecer a realidade. O governo argelino estima que mais de cinco milhões de pessoas perderam a vida por causa dela. Não é uma concessão nobre afirmar um fato.

Emmanuel Macron também saiu do roteiro durante uma visita à ilha de Mayotte, no oceano Índico, território governado pela França, após a passagem do ciclone Chido, uma tempestade devastadora. Naquele momento, o número oficial de mortos era de 31, e Mayotte carecia de suprimentos essenciais, como medicamentos e água.

Macron respondeu a uma multidão de habitantes indignados, que criticavam a fraca resposta do governo francês ao desastre, dizendo que eles deveriam se considerar afortunados por fazer parte da França, pois, do contrário, estariam em uma “merda 10 mil vezes maior”.

A “merda 10 mil vezes maior” à qual Macron provavelmente se referia era o restante do arquipélago das Comores, que declarou independência da França em 1975, sem Mayotte. Macron sugeriu que a França faz muito pela ilha, embora problemas básicos, como a escassez de água potável, tenham provocado cortes de abastecimento na capital. Isso gerou uma campanha de políticos e ativistas com o lema “Mayotte a soif” (“Mayotte tem sede”).

Estamos no Telegram! Inscreva-se em nosso canal.

Macron tentou diversas vezes desviar a responsabilidade de si mesmo e da França pelos problemas das ex-colônias africanas, minimizando o impacto do legado colonial ao questionar o que (não) ocorreu após a independência. Segundo ele, essa seria a razão pela qual esses países, como afirmou certa vez, enfrentam “problemas de civilização”.

Em sua visão, a França não é realmente responsável por esses problemas e, em todo caso, está contribuindo para solucioná-los.

Durante uma viagem ao continente em 2023, Macron cometeu um erro semelhante ao perder a compostura durante uma visita que deveria esboçar uma nova parceria entre a França e seus aliados africanos, em uma turnê por quatro países: Angola, Congo-Brazzaville, Gabão e República Democrática do Congo (RDC).

Entrada da Etiópia no Brics avança após Kazan. Como o país pode ser beneficiado?

O discurso começou de forma promissora. “Os dias da Françafrique terminaram definitivamente”, disse Macron em Libreville, capital do Gabão. O tom de sua declaração sugeria arrependimento. No entanto, não demorou muito para que voltasse à sua postura habitual.

Em sua primeira visita à República Democrática do Congo, Macron fez uma análise não solicitada sobre a persistente insegurança em algumas partes do país. “Desde 1994, e não é culpa da França, lamento dizer isso tão claramente, vocês não foram capazes de restaurar a soberania – nem militar, nem de segurança, nem administrativa – de seu país”, declarou a Félix Tshisekedi. “Construam um exército sólido, estabeleçam segurança em todo o Estado (…), imponham uma justiça de transição para que não haja criminosos de guerra ainda no comando ou em atividade”, sugeriu publicamente Macron, soando mais como um professor repreendendo um aluno incompetente do que como um chefe de Estado falando com um líder de igual status.

Em outro momento de sua visita à República Democrática do Congo, o presidente Félix Tshisekedi precisou confrontar Macron, dizendo-lhe que frequentemente adotava um “tom paternalista, como se sempre tivesse razão”.

Macron faria melhor se guardasse para si suas opiniões privadas, já que, a cada vez que fala no continente africano, parece estar destruindo o que resta da deteriorada reputação de seu país na região (Imagens: Felix Tshisekedi – X / Jeanne Menjoulet – Flickr)

O ativista senegalês Cheikh Fall classificou o episódio como um ato de “desprezo”, enquanto Abdennour Toumi, pesquisador argelino do Centro de Estudos do Oriente Médio (Orsam), na Turquia, afirmou que toda a visita foi um “fracasso total”. Macron foi à África para tentar melhorar a imagem da França, mas, em vez disso, agravou ainda mais a situação e recebeu duras críticas.

Novos tempos

Diferentemente do que ocorria no passado, Macron já não pode se escudar na passividade dos líderes africanos, que antes evitavam confrontos por excesso de cautela.

Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.

Por toda a África, cidadãos continuam encontrando formas de deixar claro que não compartilham a visão de Macron sobre o papel da França como salvadora de povos supostamente condenados, apesar da insistência do presidente francês no contrário.

No Senegal, Macky Sall foi derrotado por Bassirou Diomaye Faye, que chegou ao poder em meio a um forte sentimento antifrancês. Em Mali, Burkina Faso e Níger, os regimes militares emergentes adotaram uma posição geopolítica declaradamente antifrancesa, explorando alianças com potências não ocidentais e até mesmo com o Corpo Africano, uma versão mais discreta e rebatizada do grupo Wagner.

E no Chade e na Costa do Marfim, a França viu a última etapa de sua presença militar no continente, exceto em Djibuti, que recebeu uma ordem de despejo.

Enquanto a França faz as malas para abandonar a África Ocidental, hoje há mais Al-Qaeda, mais deslocamentos e mais instabilidade. Por que não estar agradecido?

Os Léopold Sédar Senghors e Hamani Dioris da África Ocidental e Central deram lugar a Bassirou Diomaye Fayes e Ibrahim Traorés. E isso está se espalhando.

Esses líderes mais jovens conseguem ouvir melhor seus públicos e sintonizar-se com suas frequências, o que permitiu o surgimento de uma brecha entre a França e a imaginação política de muitos africanos. “Antes, quando Paris tossia, Dakar espirrava”, disse um amigo próximo de Ousmane Sonko.

Nova jornada de manifestações no Quênia exige queda de Ruto e das políticas abusivas do FMI

O primeiro-ministro senegalês disse a Macron, em entrevista ao Le Monde, enquanto a França lidava com a perspectiva de uma instabilidade política prolongada após o chamado de Macron para eleições no verão passado: “A nova geração já não vê Paris como o metrônomo de nossas vidas”.

O colapso quase total do poder brando da França é uma consequência das tentativas do país de livrar-se da imagem de uma antiga potência colonial arrogante sem, no entanto, alterar realmente suas crenças ou a natureza de seus compromissos com os países africanos. Isso explica, em parte, por que esses incidentes continuam ocorrendo.

Quando uma mudança na retórica sobre a colonização e outros temas não foi suficiente para o público africano, Macron voltou a dizer o que realmente pensa. A grande ironia é que, se Macron algum dia estivesse genuinamente em um estado de “arrependimento” pelos crimes coloniais da França, as coisas poderiam melhorar. Mas, mesmo sem esse arrependimento, a reputação da França não necessariamente entraria em colapso automaticamente.

Macron, no entanto, parece decidido a acelerar esse declínio com seus comentários impulsivos e excessivamente opinativos. Faria melhor se guardasse para si suas opiniões privadas, já que, a cada vez que fala no continente africano, parece estar destruindo o que resta da deteriorada reputação de seu país na região.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Faisal Ali Jornalista multimídia no The Guardian e um escritor baseado em Londres. Também faz parte da equipe editorial da Geeska , uma revista focada em cultura, política e atualidades da África.

LEIA tAMBÉM

Defenderemos nossa soberania, adverte Putin sobre possível uso da Groenlândia contra Rússia
Defenderemos nossa soberania, adverte Putin sobre possível uso da Groenlândia contra Rússia
Rearmamento europeu culpa Rússia, enriquece indústria bélica e faz povo pagar a conta
Rearmamento europeu culpa Rússia, enriquece indústria bélica e faz povo pagar a conta
Regime de al-Julani massacra minorias na Síria com “aval” do Ocidente, alertam especialistas
Regime de al-Julani massacra minorias na Síria com “aval” do Ocidente, alertam especialistas
Cegueira política, militar e de inteligência como Israel facilitou ação do Hamas no 7 de outubro
Cegueira política, militar e de inteligência: como Israel facilitou ação do Hamas no 7 de outubro