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Atentado contra associação israelita foi usado para reverter eleições de 2015 na Argentina, denuncia Cristina Kirchner

"Não posso acreditar que a 27 anos da tragédia da AMIA, estamos ainda discutindo isto, que é uma montagem mentirosa para ganhar eleições" disse a ex-mandatária ao denunciar o lawfare contra ela
Helena Iono
Diálogos do Sul Global
Buenos Aires

Tradução:

Em audiência pública perante o Tribunal Federal Oral (TOF 8), a atual vice-presidenta e senadora argentina, Cristina Kirchner, ministrou uma aula magistral e comovedora de jurisprudência e política.

Através de um vídeo transmitido pelo YouTube — que foi acompanhado ao vivo por cerca de 23.800 pessoas —, ela desmontou a narrativa do lawfare que o macrismo criou para fundamentar a acusação de traição à Pátria apresentada na denominada “Causa pelo memorando com o Irã”.

Confira o vídeo na íntegra

De que se trata esta causa?

Há 27 anos, em 1994, durante o governo de Menem, uma terrível explosão na AMIA (Associação Mutual Israelita) provocou a morte de 86 pessoas e deixou cerca de 300 feridos, cuja causa, conforme reconhece a Justiça argentina, continua até hoje desconhecida.

No vídeo, Cristina Kirchner relata que o processo baseia-se no fato de que em 1996, quando exercia o cargo de senadora, interessou-se pelo tema e, por isso, participou de uma Comissão Bicameral — que funcionou até 2001 — que objetivava investigar os casos dos atentados perpetrados contra a embaixada de Israel (1992) e à AMIA (1994). 

Cristina ressalta que o atentado à AMIA foi um fato que provocou enorme comoção e preocupação na Argentina, com consequências políticas internas e externas.

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Apesar disso, tanto a investigação, como o processo judicial sobre o episódio, permaneceram estagnados por vários anos, e só foram retomados durante os governos de Néstor/Cristina Kirchner, que na busca pela verdade e em respeito aos direitos humanos dos familiares e das vítimas, criaram a Procuradoria Especial da AMIA (UFI-AMIA), designando o promotor Alberto Nisman para conduzir as ações judiciais relacionadas ao tema.

Porém, posteriormente, reverenciado e incentivado pelos noticiários da mídia oligárquica hegemônica (Clarín, La Nación e grupo Magnetto) e, também, apoiado pelos serviços de inteligência argentinos, reconhecida e historicamente tutelados pelos governos dos EUA e Israel, Nisman foi guindado a uma posição de “herói nacional”.

Neste contexto e, na verdade, atuando como agente do chamado partido judicial e dos poderes hegemônicos, Nisman cria a narrativa que fundamenta as acusações contra “supostos” responsáveis pelo atentado à AMIA, “envolvendo” ainda cidadãos, membros do governo do Irã e do comando Hezbollah no Líbano.

"Não posso acreditar que a 27 anos da tragédia da AMIA, estamos ainda discutindo isto, que é uma montagem mentirosa para ganhar eleições" disse a ex-mandatária ao denunciar o lawfare contra ela

Agência Brasil
A vice-presidenta e senadora argentina, Cristina Kirchner, ministrou uma aula magistral e comovedora de jurisprudência e política.

Conteúdo e contexto do memorando

Em 2013, Cristina Kirchner e o seu ministro das Relações Exteriores, Héctor Timerman (falecido de câncer em fins de 2018, após um impiedoso linchamento midiático), firmam um memorando de entendimento entre a Argentina e o Irã.

Tal memorando foi aprovado pelo Parlamento argentino e determinava que os depoimentos dos “acusados” iranianos fossem prestados no seu próprio país, sem que se suspendessem os alertas vermelhos da Interpol.

Ao final de seu veemente e comovedor pronunciamento perante o Tribunal, exibiu uma foto dela e do ex-presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, na época publicada nas revistas e jornais da mídia internacional, com a legenda: “Argentina e Irã, aliança vergonhosa. Um pacto com o diabo?”  

Em sua apelação no Tribunal, Cristina ressalta que: “Este acordo assinado em janeiro de 2013 — tinha o único objetivo de que os acusados de serem os autores ideológicos do atentado contra a Mutual Israelita — fossem ouvidos pelo juiz, sem o que não haveria qualquer possibilidade de serem processados e julgados“.

Como detalhado e comprovado em artigo de R. Kollmann, no qual a Interpol desmente as acusações de Nisman de que Cristina/Timerman fizeram gestões para suspender as ordens para a captura dos cidadãos iranianos acusados.

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“Denúncias” utilizadas como armas eleitorais

Em janeiro de 2015 (ano eleitoral), o promotor Nisman — apoiando-se em supostas ações que visavam blindar os iranianos — apresentou uma denúncia contra a presidenta Cristina Kirchner e o chanceler Timerman, acusando-os de “traição à pátria”. Quatro dias depois, Nisman apareceu morto.

No documentário — “O promotor, a presidenta e o espião” — se revelam situações pessoais e políticas vividas por ele, como um provável suicida, constrangido a declarar inverdades contra a  ex-Presidenta Cristina Kirchner, perante o Parlamento.

Até hoje, a oposição política tenta acusá-la midiaticamente pela morte de Nisman. O escritor Pablo Duggan, autor do livro ¿Quem matou Nisman? argumenta sobre a hipótese do suicídio.

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Cristina Kirchner, uma das maiores vítimas do lawfare, com fibra e sabedoria política de quem não defende a si mesma, mas a verdade histórica das maiorias pobres e injustiçadas do planeta, esmiúça a Causa do Memorando com o Irã e defende a dignidade de Timerman, Larroque e todos os acusados como Carlos Zannini, Luis D’Elia,  e outros perseguidos sem prova, por delito de encobrimento. “Isso é um disparate judicial, institucional e político” (…)

“Estamos acusados de encobrir o atentado, gente que não tinha nenhum tipo de responsabilidade institucional, nem conexão no tempo e no espaço com esse delito; delito este, ainda impune. A impunidade do atentado é produto desta manobra política que se deu à causa”.

A advogada Graciana Peñafort do ex-chanceler Timerman, também expôs uma comovente defesa e leitura de suas palavras antes de morrer de câncer, acusado, e sem poder ver sua absolvição.

O juiz federal Daniel Rafecas havia encerrado a causa em fevereiro de 2015 por inexistência de delito, segundo as normas do Direito, confirmadas na Câmara de Apelações. Mas em fins de dezembro de 2016, já eleito presidente, Maurício Macri, o processo pelo Memorando foi reaberto.

Os autores desta Causa de lawfare

Assim que Macri ocupa o poder político, o lawfare e a perseguição aos seus opositores se apodera da Argentina. A exposição da ex-Presidenta Cristina, sobre todos os fatos ocorridos nos quatro anos de macrismo, põe à luz fatos e nomes que desnudam o conluio entre vários juízes indicados a dedo pelo Executivo e a mídia hegemônica para perseguir opositores:

“Nos primeiros dias começaram a surgir fatos institucionais graves, com a clara intenção de tomar controle do poder judicial por parte do executivo para usá-lo como instrumento de perseguição a opositores políticos”. (…) “Tudo isso ocorreu na Argentina durante os quatro anos do governo de Maurício Macri, enquanto este falava de independência do Poder Judicial”.

Cristina revela como todas as causas contra ela caíam nas mãos dos mesmos juízes de primeira instância, como Claudio Bonadio (uma espécie de Moro, já falecido) e Julián Ercolini. E todas terminavam na Câmara de Cassação Superior controlada automaticamente pelos juízes Gustavo Hornos e Mariano Borinsky, que foram comprovadamente denunciados de visitas constantes ao ex-presidente Macri na sua residência de Olivos e na Casa Rosada.

Isso sem contar outros juízes indicados a dedo pelo Executivo, como Leopoldo Bruglia e Pablo Bertuzzi, que compunham a famosa doutrina Irurzun que permitia a prisão preventiva de um funcionário do governo anterior, sem que tivesse sido condenado. 

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Cristina citou também procuradores agora processados como Carlos Stornelli, responsável pela perseguição montada contra políticos kirchneristas e empresários na causa dos Cadernos, através de “arrependidos”(delatores premiados); e um operador judicial de Macri como Pepín Rodríguez Simón, processado e prófugo no Uruguai.

São tantas as garras do lawfare que atingiram a inolvidável e injustiçada líder social, e deputada do Parlatino, Milagro Sala, ainda presa pelo governador Gerardo Morales de Jujuy, desde o início da gestão macrista. Enfim, essa é a teia tenebrosa do lawfare na Argentina, denunciada por Cristina Kirchner:

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“Querem fazer crer que todas estas causas judiciais são legítimas e legais. Nunca vi uma ilegalidade, ilicitude deste tamanho! Juízes mentindo acerca dos seus próprios atos vinculados com suas próprias causas nas quais são juízes. É um escândalo monumental! Nunca visto! E isso é tolerado. É ocultado ou dissimulado pelos grandes meios hegemônicos.”

O pedido de anulação da causa já foi feito pelo Dr. Carlos Beraldi e o corpo de advogados, com chances de aprovação no TOF 8.  O que fica claro da intervenção da ex-Presidenta é que urge finalizar a votação da Reforma Judicial, proposta pelo presidente Alberto Fernández, na Câmara dos Deputados e já aprovada no Senado. Os apoiadores da Frente de Todos pressionam por agilizar os mecanismos constitucionais e políticos e remover os empecilhos para uma Justiça verdadeira na Argentina.

A raiz desta Causa do Memorando

Com um desfecho contundente e comovedor, Cristina Kirchner expôs a razão econômica-política central por trás desta Causa do Memorando com o Irã. Entre 2014/2015, o seu governo que contava com Axel Kicillof,  então ministro da economia, finalizava os acordos para a renegociação do pagamento da dívida externa com os seus credores.

Os Fundos Abutres, haviam declarado guerra à Argentina e insistiam em cobrar com altíssimos juros. “Naquela época o chanceler Timerman, num triunfo diplomático ressonante, havia conseguido aprovar na ONU uma legislação global em que se estabelecia como deviam negociar-se as dívidas soberanas dos países. Graças a essa lei, agora se requer que 66% dos países concordem com a reestruturação das dívidas”.

Nesse momento, Cristina expôs a foto de uma revista internacional, financiada por lobistas dos Fundos Abutres, que fazia campanha contra o memorando com o Irã.

“Pagados pela Task Force da Argentina, tropas de choque dos Fundos Abutres para conseguir torcer nossa mão. Quiseram dobrar as minhas mãos, há anos, para que pagasse uma quantidade enorme e me neguei. (…) : Queriam que pagássemos, dizendo que depois vinha a bonança. Era injusto que pagássemos aos que representavam somente 7% dos credores. Não pode ser!”. 

Para encerrar, expôs um gráfico sobre a evolução da dívida em relação ao PIB. “Em 2004, devíamos 116% do PIB. Em 2015, quando termina o nosso governo, 37,4% do PIB”. Agora, no fim do governo Macri em 2019, a curva da dívida subiu a 72,6% do PIB. Isso se deu graças à perseguição a dirigentes do governo peronista-kirchnerista e à colocação de macrista em postos da Procuradoria Geral da República, da Oficina Anticorrupção (OA), Unidade de Informação Financeira (UIF) com funcionários do FMI e do Banco HSBC.

Depois da completa radiografia na fala de Cristina Kirchner, não restam dúvidas de que o chamado lawfare serve para sustentar poderosos grupos financeiros internacionais. 

Cristina Kirchner finaliza: “não posso acreditar que a 27 anos da tragédia da AMIA, estamos ainda discutindo isto, que é uma montagem mentirosa para ganhar eleições (este ano há eleições legislativas) e para colocar a culpa naqueles que, bem ou mal, podemos dizer que, quando tivemos que governar a Argentina, o fizemos para as pessoas poderem viver melhor”.

Antes de fechar este artigo, foi notificado que Maurício Macri e sua ex-ministra de Segurança, Patricia Bullrich, acabam de ser acusados e serão investigados pelo envio da Argentina de um arsenal de 70 mil munições e material repressivo contra o povo irmão da Bolívia, em novembro de 2019, apoiando o golpe militar contra o ex-presidente Evo Morales.

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O lawfare dos “golpes suaves” através da Justiça e das fake news se desmascara com a atuação de Macri neste golpe boliviano. Quando a forma suave fracassa, o golpe apela para a força. Fica evidente a sintonia entre lawfare e Plano Condor contra a democracia, a justiça e o bem-estar dos povos. Fica claro também que o lawfare não é nacional, mas é internacional.

A intervenção de Cristina Kirchner não é uma simples autodefesa do kirchnerismo em uma das tantas causas judiciais. É uma denúncia completa do mecanismo do lawfare inerente a vários processos na América Latina de imposição do neoliberalismo sob as asas do Plano Condor; é um alerta e um chamado a pôr um ponto final a esse mecanismo de perseguição e golpe judicial-político-midiático que se repetiu na Bolívia, no Equador e no Brasil, em todas as campanhas eleitorais (Peru), e nos ataques a todos os partidos, movimentos (Colômbia e Chile) e governos (Cuba, Venezuela, Nicarágua) que tentem questionar as políticas do poder e do establishment dos EUA, sobretudo quando se alinham à Rússia e à China.

Helena Iono, Colaboradora de diálogos do Sul desde Buenos Aires.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Helena Iono Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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