Pesquisar
Pesquisar

Boaventura: Nova guerra fria dos EUA está em curso contra China e Rússia

O presidente dos Estados Unidos anuncia aos quatro ventos a nova cruzada. Desta vez, os termos parecem diferentes, mas os inimigos são os mesmos
Boaventura de Sousa Santos
Lisboa

Tradução:

As trombetas da guerra fria voltaram a soar. O presidente dos Estados Unidos anuncia aos quatro ventos a nova cruzada. Desta vez, os termos parecem diferentes, mas os inimigos são os mesmos: China e Rússia, principalmente. Trata-se da “guerra” entre democracias e autoritarismos (ditaduras ou governos democráticos truncados pelo domínio absoluto de um partido). 

Como de costume, os governos ocidentais e os comentaristas de plantão se alinharam fielmente para o combate. Os portugueses que na idade adulta viveram na época da ditadura de Salazar não duvidam em distinguir entre democracia e autoritarismo e em preferir a primeira ao segundo. 

Os nascidos depois de 1974, ou pouco antes, quando não aprenderam de seus pais o que foi a ditadura, muito provavelmente tampouco o aprenderam na escola. Encontram-se, pois, em disposição de confundir ambos os regimes políticos. 

Por sua vez, a realidade de muitos países considerados democráticos mostra que a democracia atravessa uma profunda crise e que a distinção entre democracia e autoritarismo é cada vez mais complexa. 

Em vários países do mundo acontecem protestos nas ruas para defender a democracia e lutar pelos direitos vulnerados, direitos que quase sempre estão consagrados na Constituição. Muitos desses protestos se dirigem contra líderes políticos eleitos democraticamente, mas que exerceram o cargo de maneira antidemocrática, contra os interesses das maiorias, às vezes frustrando enormemente as expectativas dos cidadãos que votaram neles. 

O presidente dos Estados Unidos anuncia aos quatro ventos a nova cruzada. Desta vez, os termos parecem diferentes, mas os inimigos são os mesmos

Montagem: Diálogos do Sul
Xi Jinping e Vladimir Putin são os grandes opositores de Joe Biden no cenario mundial

São os casos de Brasil, Colômbia e Índia, e foram também os casos de Espanha, Argentina, Chile e Equador nos últimos anos. Em outros casos, os protestos têm como objetivo evitar a fraude eleitoral ou fazer cumprir os resultados eleitorais, sempre que as elites locais e as pressões externas se neguem a reconhecer a vitória dos candidatos apoiados pela maioria. Foi o caso do México durante anos, o caso da Bolívia nos últimos tempos e, na atualidade, o caso do Peru. 

À primeira vista, há algo estranho nesses protestos, porque a democracia liberal tem como característica fundamental a institucionalização dos conflitos políticos, sua solução pacífica no marco de procedimentos inequívocos e transparentes. 

Trata-se de um poder político que se conquista, se exerce e se abandona democraticamente, através de regras consensuadas. Por que razão, neste caso, os cidadãos estão protestando fora das instituições, nas ruas, mais ainda quando correm graves riscos de enfrentar-se a uma força repressiva excessiva?  E o mais intrigante é que os governos de todos os países que mencionei são aliados dos Estados Unidos, que quer contar com eles em sua nova cruzada contra a autoritarismo da China e seus aliados. 

A perplexidade se instala. Se, por um lado, é crucial manter a diferença entre democracia e autoritarismo, por outro lado, os traços autoritários das democracias realmente existentes se agravam a cada dia. Vejamos alguns. A Rússia detém autoritariamente o dissidente Alexei Navalny; as democracias ocidentais, pressionadas pelos Estados Unidos, deixam morrer na prisão ao jornalista Julian Assange, que provavelmente em umas décadas receberá, a título póstumo, o Prêmio Nobel da Paz. 

Nos regimes autoritários, os meios de comunicação não são livres para dar voz aos diferentes interesses sociais e políticos; nas democracias, a apreciada liberdade de expressão se vê cada vez mais ameaçada pelo controle dos meios de comunicação por parte de grupos financeiros e outras oligarquias, assim como pelas redes sociais que utilizam algoritmos para impedir que as ideias progressistas cheguem ao grande público e permitir que ocorra o contrário com as ideias reacionárias. Os governos autoritários eliminam os opositores que lutam pela democracia em seus países; as democracias destroem alguns destes países (Iraque, Líbia) e matam milhares de inocentes para defender a democracia. 

Leia Mais: Muito além de Trump e do globalismo: Joe Biden radicaliza antagonismo com China e declara nova guerra fria

Os regimes autoritários eliminam a independência judicial; as democracias promovem perseguições políticas por meio do sistema judicial, como ilustra dramaticamente a operação Lava-Jato no Brasil. Nos governos autoritários, os líderes não são eleitos livremente pelos cidadãos; nas democracias, a forma em que os poderes fáticos inventam e destroem candidatos é cada vez mais preocupante. 

Nos governos autoritários, todos os procedimentos são incertos para que os resultados sejam certos (ou nomeação ou eleição dos líderes eleitos de forma autocrática). Nas democracias se aplica o contrário: procedimentos certos para obter resultados incertos (a eleição de líderes eleitos pela maioria). 

Mas é cada vez mais comum que aqueles que têm o poder econômico e social também tenham o poder de manipular os procedimentos para garantir os resultados desejados. Com tal manipulação (fraude eleitoral, financiamento ilegal de campanha, fake news e discursos de ódio nas redes sociais etc.), os procedimentos democráticos, supostamente certos, se tornaram incertos. Com isto, se corre o risco da inversão da democracia: processos incertos para resultados certos.

Além destes exemplos, entre muitos outros, a dualidade de critérios é flagrante. São governos autoritários e, portanto, hostis, China, Rússia, Irã, Venezuela; mas não são hostis, apesar de ser autoritários, Arábia Saudita, as monarquias do Golfo, Egito e, muito menos, Israel, apesar de submeter mais de 20% de sua população (os árabes israelenses) à condição de cidadãos de segunda classe, e submeter a Palestina a um regime de apartheid, como reconheceu recentemente Human Rights Watch. 

Por sua vez, as embaixadas e instituições estadunidenses encarregadas de promover “regimes democráticos amigos dos Estados Unidos”, e inclusive as fundações alimentadas para os mesmos fins com o dinheiro dos multimilionários, acolhem com preferência políticos e partidos de direita e inclusive de extrema direita, sempre que jurem lealdade aos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados Unidos. Na Europa, Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump, promove forças de extrema direita, antieuropeias e católicas conservadoras que se opõem ao Papa Francisco.

Leia Mais: Governo Biden vê Brasil como peça-chave no crescente confronto global com China e Rússia 

Todo isso desemboca em uma situação paradoxal: enquanto o discurso da Guerra Fria exalta a diferença entre democracia e autoritarismo, as práticas das potências hegemônicas não se cansam de reforçar os traços autoritários, tanto das democracias como dos regimes autoritários. Alguém está enganando alguém. A Europa faria bem em convencer a si mesma de que a nova Guerra Fria tem pouco a ver com democracia versus autoritarismo. É só uma nova fase do confronto entre o capitalismo multinacional estadunidense e o capitalismo de Estado chinês (onde a Rússia está se integrando). 

É uma luta nada democrática entre um império em declive e um império em ascensão. A Europa, excluída por primeira vez em cinco séculos do protagonismo global, teria todo o interesse em manter uma distância relativa de ambos os antagonistas e seguir uma terceira via de autonomia relativa. Bastaria seguir o exemplo de países do Sul global reunidos na conferência de Bandung (1955), talvez agora com mais possibilidade de êxito. Muito mais perto de nós, talvez seja suficiente  ler e seguir as encíclicas do papa Francisco.


*Académico português. Doutor em sociologia, catedrático da Faculdade de Economia e Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Professor distinguido da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) E de diversos estabelecimentos acadêmicos do mundo. É um dos cientistas sociais e pesquisadores mais importantes do mundo na área da sociologia jurídica e é um dos principais dinamizadores do Fórum Social Mundial. 

** Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na Tv Diálogos do Sul

   

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Boaventura de Sousa Santos

LEIA tAMBÉM

As crises globais, a construção de um novo multilateralismo e o esgotamento da ONU
As crises globais, a construção de um novo multilateralismo e o papel da ONU
Repressão transnacional dos EUA contra o jornalismo não pode virar regra, aponta Assange
Repressão dos EUA contra jornalismo global não pode virar regra, aponta Assange
Terrorismo israelense no Líbano reflete debilidade, não força
Terrorismo de Israel no Líbano reflete debilidade, não força
EUA - eleições em meio à ditadura (1)
EUA: eleições em meio à ditadura