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ToggleTão perto dos Estados Unidos e tão longe de seus deuses ancestrais, o México atravessa a pior de suas crises. E tudo isso por deixar-se seduzir pelas belas vestes dos economistas neoliberais, os chamados Chicago’s boys. É árduo o caminho a ser percorrido pelo recém-empossado presidente da República, López Obrador, para desfazer o que anos de neoliberalismo fizeram no país.
Reportagem publicada na revista Época de 24/8/18 põe em evidência alguns dados que ilustram bem essa situação e provocaram esta reflexão.
Entre 2006 e 2018 foram contabilizados no México 230 mil mortes por assassinato. Em 2017, 29.168. A média anual tem sido de 20,5 assassinatos por mil habitantes.
Sur.org
Como o México, estamos nos transformando num narcoestado, com sequelas igualmente graves e coincidentes.
Uma outra reportagem, no Estadão de 29/6/18, constata que, nos últimos dez anos, as gangues que aterrorizam a sociedade mexicana passaram de meia dúzia para cerca de 400.
Os cartéis não são muitos e estão sempre em confronto entre si na disputa por área geográfica. Os mais importantes, o que equivale dizer os mais poderosos:
· Cartel de Sinaloa
· Cartel de Tijuana
· Cartel do Golfo
· Cartel de Juarez
· Cartel de Jalisco
· Organización Beltrán-Leyva
· Nueva Generación (CJNG), o maior entre todos os cartéis do narcotráfico
Quem tem o controle sobre isso são os cartéis de comercialização das drogas, e, ao que parece, controlam também a economia e a política nos Estados.
Guadalajara tornou-se mundialmente conhecida devido à Feira Internacional do Livro, a maior e mais importante de Nossa América, era o equivalente à Feira de Frankfurt para a Europa. Hoje, é apenas a capital do Cartel de Jalisco.
O estado de Guerrero, no Norte, é onde se concentrou grande número de maquiladoras subsidiárias, a maioria de empresas estadunidenses. As maquilas foram embora, grassa o desemprego, a fome, as estratégias de sobrevivência.
Por que o México é importante?
Pelas semelhanças. O México é hoje o que será o Brasil amanhã. É o efeito Tequila.
Quando da crise provocada pelo não pagamento da dívida externa (moratória) do México em 1982, os condutores das políticas econômicas entraram em pânico. Os papéis que já eram voláteis perderam o lastro. A crise balançou a economia em todo o mundo, principalmente no Brasil onde, como no México, se seguia a mesma cartilha ditada pelo FMI e os boys da Escola de Chicago.
A crise ganhou o nome de “Efeito Tequila”, ao repetir-se em 1994, quando a insolvência do Estado coincidiu com revoltas de camponeses. Os Estados Unidos abriram um crédito de US$ 6 bilhões que, com outros R$ 700 milhões vindos do Canadá, aumentaram ainda mais a dependência do país ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que é o mesmo que dizer dos Estados Unidos.
Na atual conjuntura, estamos de novo diante de um “Efeito Tequila”, só que muito mais grave. Como o México, estamos nos transformando num narcoestado, com sequelas igualmente graves e coincidentes.
Lá, como aqui, começou com a implantação do pensamento único, com a hegemonia do capital financeiro, captura dos centros de decisão, instalação das maquiladoras, imposição do Nafta.
Caiu no conto do vigário
O México caiu no conto do vigário que disfarçava a estratégia do caos para a neocolonização pelos Estados Unidos.
Dizer que o Norte se industrializou e prosperou é pura mentira. Maquiladora não é indústria, é linha de montagem que paga salário aviltante, o mesmo que trabalho escravo. Trouxeram as maquiladoras. Depois de um tempo, elas foram embora buscar mais lucros em outros lugares.
O que aconteceu?
O México era “pátio trasero” (quintal) e virou pátio de despejo, um verdadeiro lixão em que campeia a miséria, com desestruturação da economia, desemprego em massa e desordem social. Como consertar? Dizem que é fácil: bastaria seguir as receitas do FMI, chamar os meninos da Escola de Chicago, ou da Escola Austríaca e tudo se arranja. As receitas são bem conhecidas por todos nós:
· Desregulamentação do trabalho;
· Desmontagem do parque industrial;
· Desestatização em massa;
· Desnacionalização do petróleo;
· Ditadura do capital financeiro e do pensamento único;
· O império do narcoestado;
Veja também:
Da segurança alimentar à fome endêmica
Durante milênios, a civilização mexicana apurou as técnicas de cultivo do milho, alimento básico [1] da população. Desenvolveram, através da seleção natural, um milho para cada finalidade: comer a espiga verde e cozida; fazer tamales (pamonha); fazer farinha para as tortillas (que é como o pão nosso de cada dia).
Cada mexicano consome 254 Kg de milho por ano, 90% na forma de tortilla, que utiliza o milho branco. Veio uma seca e prejudicou cerca de um terço da colheita. O preço subiu, e com o lucro dos comerciantes, veio a fome da população.
Seguindo a tradição herdada dos ancestrais, o milho era cultivado em todo o território em pequenas plantações comunitárias, os ejidos, que eram terras públicas.
No interior, graças à política servil do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari (1988 a 1994), as monoculturas mecanizadas, que necessitam de enormes extensões de terra, propriedade de empresas ou de cidadãos estadunidenses, avançaram sobre os ejidos, e, claro, sobre as comunidades de camponeses.
No lugar do milho ancestral, o milho transgênico da Monsanto, o milho amarelo para produção de etanol exportado para os Estados Unidos. E outros milhos em grandes extensões para alimentar as gigantescas criações de porcos e de aves, também de empresas estadunidenses.
O povo entre as milícias, o narcotráfico e o Estado
Veja que dramática situação.
Deslocados de sua cultura milenar, sob a pressão (repressão) do Estado e dos cartéis do tráfico, para defender-se alguns desses camponeses criaram suas próprias milícias. Atentos a essa oportunidade, a inteligência de Israel treinou e armou esses milicianos. Claro, viraram todos bandidos.
Hoje, as milícias dividem com os “exércitos” dos cartéis o controle das regiões do país. As Forças Armadas e as forças policiais mexicanas, logicamente, não conseguem reverter essa situação, ao contrário, contribuem para aumentar a violência, com a presença dos assessores e dos agentes do Departamento de Combate ao Narcotráfico (DEA) estadunidenses.
No Estado de Guerreiro, no norte do México, 64% da população está em situação de pobreza e 22% em situação de extrema pobreza. Neste estado em convulsão é que desapareceram os 43 estudantes de Ayotzinapa, não se sabe se por obra do Estado, das milícias ou do narcotráfico.
Em todo o México, a pobreza atinge 40% da população. O Plano Prospera (equivalente ao Bolsa Família brasileiro), alcançou 20% dos pobres, uns 25 milhões de pessoas, e, lá como aqui, de nada adiantou.
Pressionada por familiares, opinião pública e, inclusive, repercussão internacional no esforço por encontrar os rapazes, o Estado prendeu 111 pessoas, 78 eram policiais. Mas não prendeu o ex-presidente Enrique Peña Nieto (e sua esposa) quando descobriram que eles moram numa mansão avaliada em US$ 7 milhões, pertencente ao Grupo Higa, prestador de serviços ao governo.
É importante também destacar a presença de Israel treinando e armando, seguramente também financiando, grupos insurgentes. Importante porque é muito grave. Velha tática dos aparatos de inteligência dos Estados Unidos, envolvendo seus aliados.
São inúmeros os casos, como o dos talibãs e agora das milícias mexicanas, criados para desestabilizar política e economicamente os países. Na América Central, quase vizinha ao México, houve a guerra dos “contra” financiados, armados e treinados pelos EUA para impedir o avanço da Revolução Sandinista na Nicarágua.
Todos os jornais noticiaram, sem nenhuma crítica, que os Estados Unidos estavam financiando e armando os rebeldes da Frente Al-Nusra (hoje autointitulado Jabhat Fateh al-Sham), extensão do Al Qaeda, como sendo contra o presidente Bashar al-Assad, mas que, na realidade, era uma tentativa de dividir a Síria. Só não tiveram êxito pela interferência da Rússia de Vladimir Putin.
Não devemos esquecer que os Estados Unidos diziam estar combatendo o autointitulado Estado Islâmico (Isis) quando na verdade, como foi revelado pelo WikiLeaks, estavam armando e financiando o grupo. E no Iêmen quem é que está por trás da Arábia Saudita, vendendo armas e assessoria de guerra? Isso não é segredo pra ninguém, apenas se noticia como um entre muitos episódios sem importância.
Deu no El País da Espanha: EUA de Trump fechou acordo para venda de US$ 110 bilhões em armamento para a Arábia Saudita e assessoria militar para a guerra que trava contra o Iêmen.
O texto cita que o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (Sipri) indica que, entre 2012 e 2016, as importações de armas por nações do Oriente Médio aumentaram 86% e que a Arábia Saudita foi o segundo maior importador de armas do mundo entre 2012 e 2016 e os EUA foram o maior exportador de armas do planeta.
Em 2016, os Estados Unidos venderam US$ 9,9 bilhões (cerca de 8,8 bilhões de euros) de armamento, o que representa 2,9%, menos que em 2015, quando as vendas alcançaram US$ 10,2 bilhões (cerca de 9 bilhões de euros). Nos dois anos, em conjunto, foram US$ 20 bilhões (cerca de 17,7 bilhões de euros).
Segundo o Sipri, o segundo maior exportador mundial de armamento, a Rússia, vendeu pouco menos de US$ 12 bilhões (cerca de 10,6 bilhões de euros), em dois anos. Ou seja, Washington vende mais dois terços das armas vendidas por Moscou.
É sintomático que para o Oriente Médio tenham sido 47% das vendas dos Estados Unidos dos últimos cinco anos. Só em 2016, 13 países da região concentraram cerca de 70% das vendas. Sozinha, a Arábia Saudita ficou com quase 20% do total, com US$ 1,9 bilhões (cerca de 1,7 bilhões de euros), o que significa dois terços dos gastos de Riad com importação de armamento.
Por que é sintomático?
Ora, não é lá que estão todas as guerras? Até quando?
*Jornalista editor de Diálogos do Sul
[1] Mais que alimento básico uma expressão simbólica vital, legendaria – o Popol Vu –em que o povo nasceu de uma espiga de milho.