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A banalidade do mal em uma sociedade que se formou e consolidou por meio da violência

Hannah Arendt viu a banalização do mal nas elites e nos militares da época do nazismo. No Brasil, ela é produto da história, abarca todas as classes
Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

A mídia encara estupefata diante de tanta violência praticada pelas facções dentro dos vários cárceres por todo o país, como ocorreu recentemente nos estados do Norte e Nordeste. Pura hipocrisia.

Leia também: Governo quer recriar Guarda Nacional. Será para voltar a reprimir o povo?

Hipocrisia que esconde a realidade histórica de que são vítimas esses cruéis bandidos.

De fato, há muito ódio no ar. Muita crueldade.É preciso que se faça uma reflexão profunda sobre isso: por que tanta maldade?

Não será porque essa índole violenta foi acrescentada ao povo e alimentada ao longo da história?

Um olhar para o passado descortina que esse nosso sofrido povo nunca teve um dia sequer sem violência, um dia sequer de paz. Não a paz do cemitério, mas a paz no seu sentido mais amplo, que é a que se constrói concomitantemente à formação do homem novo capaz de transformar a sociedade numa sociedade humanamente justa.

Hannah Arendt viu a banalização do mal nas elites e nos militares da época do nazismo. No Brasil, ela é produto da história, abarca todas as classes

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Pixabay

Comecemos com um olhar sobre a estrutura das cidades construídas no período colonial. Na praça principal, os três poderes: de um lado, a igreja de Roma, do outro, o Palácio do Governo e do outro a Cadeia Pública; no centro, o Pelourinho. É a pura representação da repressão e da violência.

Pelourinho não é só o nome da maravilhosa praça onde tudo acontece em Salvador, Bahia. Pelourinho é o tronco onde amarravam os escravos, chicoteados publicamente, sangrando exposto ao sol, para servir de exemplo.

Como ser pacífico diante de tanta violência?

Hoje o tronco já não está exposto publicamente. Está apoiado entre duas cadeiras, é o pau-de-arara em que penduraram e violaram nossas meninas e meninos que lutavam contra a opressão.

Tudo aqui, chamado de civilização ocidental e cristã, foi imposto e se firmou pela violência. O sistema prisional, desde os tempos coloniais, tem sido escola de violência, tanto para os algozes como para suas vítimas.

Para impor respeito, o Primeiro Comando da Capital (PCC) acha que tem que ser mais violento do que o sistema. Mesmo assim, não consegue.

Não foram seus integrantes que inventaram o esquartejamento de adversários. Eles nem tinham nascido quando esquartejaram um simples alferes desarmado só porque se opunha ao pensamento único e pregava liberdade. Não. Não foram eles que esquartejaram o Tiradentes, nem os que, nos anos 1960-70, jogaram os corpos de seus desafetos nos fornos das usinas ou nas profundezas do mar para não deixar pistas sobre o desaparecimento.

Vale lembrar a advertência do poeta e teatrólogo alemão Bertold Brecht, quando diz que todo mundo reclama da violência das águas, sem considerar a violência das margens que as aprisionam…

Soldados e bandidos assassinos são filhos desse nosso povo, são filhos da mesma violência histórica. Paranoia de uns e psicopatia assassina de outros são igualmente frutos da mesma violência histórica.

Hannah Arendt viu a banalização do mal nas elites e nos militares da época do nazismo hitlerista. No Brasil, a banalização do mal é produto da história, abarca todas as classes, indistintamente. No pós-moderno da globalização e do pensamento único, a banalização do mal é estimulada diuturnamente pela mídia, principalmente o cinema e a televisão.

Será que as redes de televisão comerciais seriam capazes de sobreviver sem o massacre cotidiano através dos filmes e seriados estadunidenses, com só violência de cabo à rabo? Será que essa violência, tanta maldade generalizada da TV e dos “games” não contribuem para a banalização da violência?

Como surpreender-se com milhões de pobres e de ricos adorando um certo capitão Bolsonaro?

Como contrapor o discurso da violência contido nas propagandas eleitorais?

O assustador é que não há respostas a essas perguntas… Essa é a triste realidade desta República que nasceu de um golpe e que caminha em direção ao caos. O caos este necessário para a dominação plutocrática e a neocolonização em favor dos Estados Unidos.

A institucionalização da violência

Segundo o informe anual 2017 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há no Brasil 729.463 encarcerados para 367.217 vagas (duas pessoas para cada vaga). Como em nas prisões de segurança não há excesso, todas as demais confinam os presos acima da decência exigida pela pessoa humana. As prisões são o estímulo à violência e ao ingresso na escola do crime organizado.

Por outro lado, o relatório de 2017 constata que o governo vem gastando menos com a Polícia Federal, Polícia Rodoviária e com o Fundo Nacional de Segurança Pública, que subsidia os Estados, e aumentando os gastos com a Força Nacional de Segurança Pública, criada em 2004 e subordinada ao Ministério da Justiça, que começou com dois mil profissionais e, em 2016, chegou a 8.178. O informe do Fórum constata que de 2002, quando o fundo foi criado, a 2016, os recursos diminuíram 50%.

O mapa da violência tecido pelo Fórum impressiona:

Em 2017, ocorreram 63.880 mortes violentas intencionais, ou seja, 175 mortos por dia, uma taxa de 30,8 por 100 mil habitantes. Além disso, apenas nesse ano, 82.684 pessoas desapareceram. São mais de 150 mil vítimas entre mortos e desaparecidos.

Registros de violência doméstica contra mulheres (Lei Maria da Penha) foram 221.238, nada menos que 606 casos por dia. Isso sem contar 60.018 estupros, 1.133 feminicídios e 4.539 assassinatos.

Mortos pela PM foram 5.144 em 2017, 20% a mais do que em 2016. Novidade? Novo é o fato de estarem contabilizando.

É realmente uma índole violenta cultural a da polícia. O Esquadrão da Morte foi chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, em São Paulo, o mesmo que integrou o comando da Operação Bandeirantes, que evoluiria para os DOI-Codis que semearam o terror por todo o território nacional.

O que faziam os membros do grupo de extermínio Escuderia Le Coc, no Rio de Janeiro, é o mesmo que continua fazendo hoje a PM carioca coadjuvada agora pelo glorioso Exército Nacional. Sim, comportamento de psicopatas assassinos.

Interessante observar que nenhum dos candidatos diz coisa diferente do que já se faz para a questão da violência social e da crise no sistema carcerário. Nem o PT, que esteve 13 anos no poder, fez algo de diferente e o que propõe na atual campanha é o mesmo do mesmo.

Por isso, insistimos na importância de lutar por uma boa escola pública, laica e universal, de tempo integral, como sonharam todos os grandes mestres da educação, no mundo todo.

Escola com partido. Com partido, sim: o partido da promoção da paz, em que se estuda em profundidade e criticamente a História. Só conhecendo a história e o pensamento de nossos próceres é que será possível traçar caminhos que levem à mudanças.

É preciso sim mudar radicalmente os currículos das escolas, principalmente das escolas de formação dos militares, das polícias, dos agentes de inteligência. Um bom começo é que se entenda que a Guerra Fria acabou faz tempo.

É hora de pensar o Brasil. Construir um Brasil para os brasileiros antes que a China tome conta dele.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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