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Mesmo após mudanças, Partido Militar segue hegemônico no governo Bolsonaro

Pesquisadora analisa as razões e os impactos das mudanças no Ministério da Defesa e nos comandos das Forças Armadas
Ana Penido
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Existiam dois grandes problemas nas salas do Planalto. O primeiro, Ernesto Araújo. Sem nenhuma sustentação política, exceto o olavismo. Para setores importantes na base do governo, como as forças armadas e o agronegócio, o ex-ministro já poderia ter caído faz tempo.

O outro grande problema na sala não incomodava tanto o presidente, mas incomodava muito as forças armadas, e passou a perturbar também a turma da Faria Lima – o general Pazuello. Isso sem mencionar a insatisfação popular com a falta de vacinas, a fome, e as mortes se avolumando.

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Fora da sala, ressurgiu um elefante: o STF julgou Lula inocente. O ódio ao Lula unifica de A a Z, e a reaviva a natural aliança entre militares e Moro.

Bolsonaro reacomodou interesses, dando uma arrumada na casa, e militares iniciaram uma “Operação Limpa Lambança”. Voltarei a isso. Por enquanto, vejamos quais posições Bolsonarou ganhou:

– Atender ao Centrão: será viabilizado através dos ministérios da Saúde e de Governo, e, principalmente, através da enorme margem para emendas parlamentares que ficou no orçamento aprovado. São concessões, mas a chave das nomeações fica na Casa Civil, na qual Bolsonaro manteve seu fiel general Ramos (que internamente, é mau visto). O Centrão não ganhará espaço no MD, na AGU e nem no Itamaraty. Atendeu parcialmente.

– Atender a “Famiglia”: controlará o Ministério da Justiça (e as interlocuções com as Polícias Militares). Enquanto salvam o pescoço de quem gostam, seguirá o uso da Lei de Segurança Nacional, acelerará o PL contraterrorismo e ainda mantém a polêmica sobre a interpretação do artigo 142 viva.

– Atender às Forças Armadas Brasileiras (ffaa) e entregar Pazuello: justiça seja feita, Bolsonaro tentou propor quarta estrela, ministério, alocação em outras pastas ou outras saídas honrosas para o colega, mas nada colou. Então, Bolsonaro resolveu mexer nas pastas de “dentro de casa”. No plano macro, dos diversos segmentos que sustentam o governo, o local onde é mais fácil para o presidente movimentar uma peça é o Ministério da Defesa, porque seria substituir alguém de um segmento por outro do mesmo segmento na base de composição política do governo (mesmo jogo no Itamaraty).

– Atender ao seu núcleo político nas ffaa: Braga Netto, desde a intervenção militar no RJ, tem a ficha dos envolvimentos políticos das milícias. Pensa num rabo preso… Ramos, seu braço direito, segue no controle das nomeações e do governo. Chama a atenção que mudanças no GSI não foram sequer cogitadas (e que, enquanto o circo pegava fogo, o general Heleno estava com o desembargador Thompson Flores).

– Atender os neofascistas: aqui, na realidade, ele só deu uma agitada por causa do 31 de março. Com militares ou sem militares, a turma adora a data, e Bolsonaro mostrou TIMING POLÍTICO. Além disso, eles vinham perdendo espaço no governo, e estavam insatisfeitos.

Isso não é um golpe

Bolsonaro não tem apoio internacional para isso, não há grave situação de desestabilização interna (mesmo com mais de 317 mil mortos e o preço da cesta básica), não tem apoio da camada de cima (mesmo com a cartinha da Faria Lima, os estudos de cadeias de valor na área de energia e agronegócio, por exemplo, não apontam para perdas), e não tem da imprensa.

Como apontamos desde o início do governo, as FFAA estão contentes por voltar ao poder através de eleições. Mesmo em 1964 cuidaram de construir uma fachada normativa democrática.

“AS FFAA NÃO SERÃO AS PROTAGONISTAS DE UM AUTOGOLPE NO BRASIL, O QUE NÃO QUER DIZER QUE ELAS SEJAM MAIS DEMOCRÁTICAS QUE BOLSONARO”.

Um cenário mais provável de golpe é, caso seja necessário e em outro momento, algo como a via Boliviana, com as PMs fazendo o trabalho sujo público e depois as FFAA vindo salvar a nação e arrumar a casa.

Daí a importância da carta dos governadores relatando incitação para motins, o desenrolar positivo das crises da PM na Bahia e da Guarda Municipal em Juiz de Fora, e as informações da inteligência da PM de SP que implicaram em uma mudança de residência do governador Doria.

Sem números exatos, são 411 mil PMs, 431 mil vigilantes armados, e as Guardas Municipais que, em 19 das 26 cidades onde existem, portam armas de fogo. Além disso, mesmo contra pareceres do Exército, as regras de comercialização de armas e munições veem sendo flexibilizadas pelo presidente.

Essa é a variável principal que torna as eleições de 2022 distintas das anteriores.

Pesquisadora analisa as razões e os impactos das mudanças no Ministério da Defesa e nos comandos das Forças Armadas

Marcos Corrêa/PR
Forças Armadas promoveram "Operação Limpa Lambança" após trocas ministeriais promovidas por Bolsonaro, avalia analista

“Operação Limpa Lambança”

Nos últimos tempos, as insatisfações militares veem sendo depositadas no STF. Com a absolvição do Lula, a caserna em geral ficou indignada. Não estão insatisfeitos com Bolsonaro. As nomeações em pastas seguem, e as conquistas pra carreira também, única com aumento salarial em 2021.

Mas as ffaa estava insatisfeitas com a exposição das suas entranhas que o Pesadelo na ativa e no Ministério da Saúde provocava. Tentaram fazer com que ele fosse pra reserva usando da sua coerção social, mas não funcionou, e Pesadelo seguiu na ativa (graças à nossa legislação absurda, ele podia tomar essa decisão individualmente se quisesse). Bolsonaro gostava da fidelidade do seu general Ministro da Saúde, mas cedeu para que ele saísse. Entretanto, o que fazer com esse ENORME BODE QUE CONTINUOU NA SALA?

No final das contas, o bode virou boi de piranha, e enquanto isso, as ffaa ganham tempo para rearrumar a casa. O TIMING DAS MUDANÇAS PRAS FFAA também não é ruim.

De toda maneira, algumas cadeiras girariam com as promoções dos novos 4 estrelas em 31 de março e alguns comandantes completando dois anos nas tarefas, indo pra rotação. Essas provavelmente eram pautas sendo tratadas com o presidente, o ministro e as ffaa na última quarta, e entre o ministro e os comandantes na sexta.

Por que sobrou pro general Fernando Azevedo? O que mudou de sexta pra segunda? Vejamos:

1) Interessa aos militares participar das boquinhas mil do governo, mas não interessa participar de intervenção para controlar motins policiais

2) Bolsonaro sentiu que as FFAA tentam novamente (dizemos novamente pois é presente em todas as declarações desde 2018 o mantra das instituições de Estado) o descolamento retórico (lockdwm interno, poucas mortes, Pujol caladinho diante do 31.03 e do Lula livre) e cobrou a fatura. Se querem ganhar tanto no governo, que fiquem com o ônus também, ainda mais em um momento de isolamento

3) Pelos dados disponíveis, Bolsonaro pediu o cargo. A nota em tom moderado mostra que Azevedo sabe que o governo “pode ser uma bosta, mas é deles”.

Um palpite: decretar estado de sítio não cola. Um autogolpe com as ffaa na cabeça também não. Uma alternativa soft ao estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal e estado de calamidade pública parece estar sendo construída.

O deputado major Victor Hugo propôs na última quinta-feira (25) um PL para regulamentar o que seria decretar Mobilização Nacional. A iniciativa partiria do presidente, subsidiado por um comitê de 10 pessoas, que pela atual composição ministerial, contaria com 4 membros das ffaa e 1 delegado da PF.

A crise sanitária é, nesse sentido, uma oportunidade. Diferente do estado de sítio, o decreto de mobilização não precisaria ser aprovado pelo Congresso. No dia 11 de março, o Ministério da Defesa aprovou seu novo Manual de Planejamento para Mobilização Militar.

O Partido Militar segue hegemônico no governo, mesmo com as mudanças. Bolsonaro tem o apoio militar, aliás, o único partido que sustenta o seu governo. Mas acuado por outros setores, Bolsonaro poderia até pressionar por comprovações de fidelidade, declarações públicas.

As forças seguiriam o mantra retórico desde o início do governo. “Somos instituições de Estado”, mesmo comprometidos até o último fio de cabelo com o governo. Mas daí a uma ruptura entre fardados e governo, falta muito.

Pra entrar Braga Netto, seria provável que Pujol saísse, não é uma regra, ou tradição, mas existem egos e ele é mais antigo (a tradição deveria ser um ministro civil, mas aí nem vale a discussão nesse momento). Daí Bolsonaro matar dois coelhos com uma machadada.

Mas a saída dos demais comandantes em solidariedade é inédita desde o fim do regime dos generais e denota crise.

Braga Netto entra fragilizado, mas a escolha do seu nome aponta que Bolsonaro estica a corda, mas nem tanto, ou teria nomeado um ministro civil. A tendência seria a retomada da normalidade, e para isso, a escolha dos novos comandantes deveria recair sobre os mais antigos de cada força, mas a crise ainda é presente, e de desenlace incerto. Quanto se trata de Bolsonaro, o método é o caos.

Perguntas incômodas que a imprensar deveria fazer

1. Se Pazuello incomodava tanto, por que Pujol não o convocou de volta? Por que permanecem militares no Ministério da Saúde? E no restante do governo, particularmente os da ativa?

2. Se são técnicos, por que não adotaram para o governo as recomendações do documento do CEEx? Quem mandou tirar o documento do ar? Foram feitos novos documentos? O Exército adotou internamente as recomendações do documento, se configurando como uma ‘nação dentro da nação’? Isso não configura insubordinação ao presidente?

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3. Os militares cederam espaço para o centrão no governo? Além das cabeças dos ministérios e autarquias, como estão os corpos? Foi feito algum levantamento posterior ao do TCU, que já completa quase um ano?

4. Quais as informações sobre as milícias cariocas que Braga Netto levantou enquanto interventor federal? Elas envolvem em alguma medida o presidente ou seus familiares?

5. Como a troca do ministro da Defesa se articula com a troca no ministério da Justiça e Segurança Pública?

6. Quais são os novos 4 estrelas das forças armadas? O que foi publicado no último mês no Diário Oficial da União? Que tal usar menos informantes em off, e noticiar mais o que de fato as Instituições estão fazendo?

7. As manifestações favoráveis a um golpe militar ou ameaçando outros poderes feitas por militares da ativa em redes sociais tiveram algum objetivo? Houve alguma punição, mesmo que apenas internamente? E nas polícias? E as manifestações de rua, inclusive na porta de quartéis desde 2020, pedindo por golpe militar, tiveram algum desenlace, inclusive judicial?

8. O que será feito diante da carta dos 16 governadores denunciando incitação à motins nos seus estados?

9. No último mês, setores militares receberam menos incentivos do presidente? Houve mudança no salário, orçamento, regalias, nomeações ou outras questões que pudessem levar a uma insatisfação na caserna com o presidente?

10. Nossa legislação protege a democracia brasileira da intromissão política das FFAA? Ela protege as próprias FFAA? O que acontece se um comandante não autorizar a ida de um subordinado para o governo? Isso já ocorreu?

11. Pazuello pode ter se tornado o boi de piranha público, mas o que fazer com o enorme bode que continua na ativa e na sala do Alto Comando do Exército? De quem foi a ideia de promover o Pazuello, um Intendente, a 4 estrelas? Quem vetou?

12. Qual a base de sustentação do presidente? Quem hegemoniza essa base de sustentação? As trocas ministeriais mudam essa situação ou apenas agitam a superfície?

13. Quem serão os novos nomeados para o comando e para o Ministério?

14. Para a demissão do ministro da defesa, qual foi a gota d’água? Pediu a cabeça de algum subordinado? Não topou um endurecimento? Não topou dar alguma declaração? Como quem tem a resposta pra essa pergunta é apenas o ex-ministro e o presidente, não vale a pena investir muito nela. As declarações de outros atores são especulações ou interpretações.

15.  Qual papel os militares devem ter no regime democrático brasileiro? Em que medida a atual situação do país é tributária dos 21 anos de ditadura? Outra condução da pauta sobre a Memória, Verdade e Justiça teria alterado esse cenário?

Síntese

A politização das ffaa é ruim para a política e para elas mesmas. Elas se mostram politizadas quando tuítam, quando compõem o governo, e quando saem dele, de forma discreta (Azevedo) ou estridente (Santos Cruz).

Agora é o exemplo perfeito: se saem, foi por insubordinação. Se ficam, são golpistas. A politização expõe as FFAA.

A tragédia social em que vivemos é também responsabilidade das FFAA: cloroquina, privilégios diante dos demais trabalhadores brasileiros, desnacionalização na infraestrutura, ministro da ciência que destrói universidades, Almirante que permite apagão, etc, etc…

Com o Bode isso era mais nítido. Transformar ele em boi de piranha não resolve o problema. Se, de fato, as FFAA querem limpar a sua barra, têm que desembarcar em peso do governo, aos milhares, assim como o ocuparam.

Não acho que isso vá ocorrer. Terão que ser tirados, com eleições e medidas legislativas.

Bolsonaro manterá sempre a ameaça de golpe/endurecimento. Ter medo disso não adianta. Há que se antecipar cenários, travar a batalha das ideias e, essencialmente, dialogar com a população sobre as razões da tragédia em que nos encontramos.

NOSSOS MORTOS, DE ONTEM E DE HOJE, NENHUM MINUTO DE SILÊNCIO, MAS TODA UMA VIDA DE LUTA.

 

Ana Penido é pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (GEDES – UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. 

Edição: Poliana Dallabrida


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