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As eleições, o canto de sereia e a ausência de debate programático

É hora de irmos além da política do possível, de debatermos, portanto, o programa que guiará a candidatura de Lula (PT)
Eduardo Rezende
Diálogos do Sul
Campinas (SP)

Tradução:

O canto da sereia é poderoso: ele arrasta aqueles que se perdem dos objetivos maiores. Por que, neste ano eleitoral que se inicia, parte considerável da esquerda brasileira insiste em não debater o programa que será oposto ao do candidato neofascista nas urnas? Sob essa pergunta, ensaio três respostas e traço alguns comentários.

Primeiramente, parte considerável da esquerda brasileira se esquiva do debate do programa porque muitos de seus intelectuais e organizações — e, assim, também as suas ferramentas de comunicação, agitação e propaganda —, confiam que tendo a “pessoa ideal”, teremos um programa ideal. E, ao confiar na pessoa ideal, com a capacidade de implementar um programa ideal, são arrastados e arrastam o conjunto das forças democráticas e populares.

Parte da esquerda brasileira secundariza que a cena política é mais que a figura à frente do palanque; sendo os acordos feitos nos bastidores, as propostas contidas no programa que se sustenta sob as alianças de classes e frações de classe, que dirigem as políticas governamentais — desde o crédito e o incentivo à família camponesa até os lucros dos latifundiários, do investimento em políticas sociais até a abertura ao capital financeiro, e por aí vai.

É hora de irmos além da política do possível, de debatermos, portanto, o programa que guiará a candidatura de Lula (PT)

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Secundarizam, por sua vez, o fato de que um programa comprometido com os interesses da classe trabalhadora deve ser antineoliberal e anti-imperialista, pois só assim seremos um país soberano. E, aqui, é importante advertir que pressionar o programa político nesta direção não nos torna irresponsáveis diante da tarefa de realizar a campanha e eleger aquele que se opõe ao governo neofascista, uma vez que a agitação das bandeiras máximas também deve corresponder com a realidade e a situação conjuntural.

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Lições do golpe de 2016

 Parece que não aprendemos tanto com o golpe de 2016, ferida ainda aberta, que depôs a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Não foi meramente o seu jeito de fazer a política a causa do golpe, e tampouco a vexatória carta do seu vice, Michel Temer (MDB). Foi, sim, a crise econômica internacional e a incapacidade deste governo em dar respostas a ela. Incapacidade por justamente estar preso às regras da burguesia, que queria aumentar suas taxas de lucro, e abandonado pelo conjunto da classe trabalhadora, que ao passo em que sentia os impactos do ajuste fiscal aplicado pelo próprio governo, não o via como motivo de mobilização política nas ruas, sobretudo aqueles setores mais precarizados, que migraram seus votos do Partido dos Trabalhadores para Bolsonaro (eleito pelo PSL, atualmente PL), dois anos depois.

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Eis o segundo motivo de parte da esquerda brasileira secundarizar o debate do programa. Ignora-se a despolitização promovida pelos governos neodesenvolvimentistas, por um lado, e, por outro, se guia pela crença de que é possível voltar ao que vivenciamos de 2003 até 2016 (as redes sociais estão cheias dessas expectativas), quando o Brasil crescia para a sexta maior economia mundial e reduzia a pobreza com políticas sociais de transferência de renda, dentre outros muitos fatores que, evidentemente, mudaram a qualidade de vida do povo brasileiro para a melhor.

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Ocorre que a crise econômica se aprofunda em nosso país, combinada com as consequências devastadoras das medidas neoliberais tomadas pelos governos pós-golpe, tanto no plano da geração de emprego e renda quanto da promoção de direitos. Além disso, destaca-se a própria redução da qualidade de vida do povo diante dos efeitos da crise sanitária.

Não teremos um governo neodesenvolvimentista nos moldes de 2003 até 2016. Diante do que se demonstra atualmente, talvez um ensaio do que foi aquela experiência: um governo de viés progressista, ainda amarrado ao tripé macroeconômico. Para retomar aquele programa, que está longe de ser anti-imperialista e antineoliberal, será preciso revogar todas as contrarreformas empreendidas por Temer e Bolsonaro e, ainda, impulsionar uma política de desenvolvimento econômico em meio à crise internacional. E aqui surge a pergunta: queremos aquilo, ou ir além?

O papel da classe trabalhadora

Por fim, imbricada às duas respostas apresentadas, está o fator da participação política da classe trabalhadora — compreendendo a participação como algo além de um voto de confiança. É fato que grande parte da classe trabalhadora brasileira, diante de uma história marcada pela opressão e pelo silenciamento, discute e participa da política apenas diante das eleições. Nesta mesma direção, é notável que parte considerável da esquerda também aprendeu a se mover politicamente apenas nas eleições, rumo ao voto e aos cargos institucionais, e se esqueceu da política perene, feita nos bairros, no local de trabalho, nas universidades etc.

Eleger um presidente progressista não nos torna necessariamente um país governado segundo os interesses diretos da classe trabalhadora, da mesma forma que eleger o candidato que se opõe diretamente ao neofascismo não nos tornará livres do neofascismo nas entranhas da sociedade. É preciso retomar a prática do trabalho de base não apenas para ganharmos e mantermos um governo, mas, sobretudo, para guiá-lo, contribuindo com a transformação da sociedade em curto, médio e longo prazo — indo além do calendário eleitoral, dos cargos eleitorais, da política eleitoral e institucional.

O canto da sereia é poderoso: ele arrasta aqueles que se perdem dos objetivos maiores. É hora de irmos além da política do possível, de debatermos, portanto, o programa que guiará a candidatura de Lula (PT) e seu vice.

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Permanecer em movimento para que ocorram eleições e o não fechamento do regime, e guiar a candidatura de Lula — a mais capaz de derrotar o neofascismo nas urnas, e, ainda, a mais próxima da esquerda — por um programa político que seja comprometido com os interesses da classe trabalhadora, portanto, antineoliberal e anti-imperialista, é uma tarefa essencial que deve ser empreendida pelo conjunto das forças de esquerda, democráticas e populares: tarefa que é responsável pelo futuro do nosso país, diante das lições deixadas pelo golpe de 2016.

*Eduardo Rezende Pereira é mestrando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), jornalista, escritor e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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