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Após antipetismo e bolsonarismo, quem vai se apoderar do discurso "antissistema" no Brasil?

Se olharmos o que está acontecendo, vamos perceber que o “algoritmo bolsonarista” quase todo migrou para as Forças Armadas, explica Piero Leirner
Patricia Fachin
Revista IHU On-line
Porto Alegre (RS)

Tradução:

O “vetor antissistema” é o que explica a adesão de grupos sociais às manifestações e aos acampamentos que estão ocorrendo em frente de alguns quartéis desde o encerramento das eleições presidenciais com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, segundo Piero Leirner.

“Hoje, eu tenho a impressão de que este tema galvanizou mais gente. Não exatamente porque a credibilidade dos militares aumentou – pelo contrário, ela vem decaindo –, mas porque esse “vetor antissistema”, que já estava sendo mobilizado desde lá de trás, fica o tempo todo se movendo por nichos onde ele pode aderir.

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Em 2015, isso estava se aglutinando num antipetismo meio difuso; depois positivou na figura de Bolsonaro – que tem um comportamento de algoritmo, ele conduz a adesão a ele conforme a expectativa do ‘cliente’; agora, depois que Bolsonaro perdeu, este ‘sentimento outsider’ está procurando esse novo nicho, um militarismo ‘purificado’ que junta guerra, religião, moral, ideologia ultraindividualista e interesses econômicos”, diz na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Autor do livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida” (Alameda Editorial, 2020), Leirner explica a “guerra híbrida” em curso no país, onde “políticos, juízes e generais não podem mais ser tomados como peças separadas” e comenta o papel dos militares diante das manifestações.

“Há quatro anos, o TSE/STF era o algoz do PT, que dizia que eleição sem Lula era fraude, e pavimentou a eleição de Bolsonaro; hoje, Bolsonaro sugere que a eleição é fraude porque o TSE/STF pavimentou a eleição de Lula. Essas comutações de posição e inversões em série são típicas de manobras ‘em looping’ de guerras híbridas – que, aliás, em manuais colocam por escrito que ‘desestabilizar eleições em países inimigos’ é mais eficaz e barato do que promover ações militares convencionais.

Aqui no Brasil, pelo visto, o ‘país inimigo’ é o próprio”. O maior desafio do novo governo nesta conjuntura, acrescenta, “é saber sair dessa espiral do inferno”.

Piero Leirner é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Social (Antropologia Social) e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP. É também professor titular de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

Confira a entrevista a seguir.

Se olharmos o que está acontecendo, vamos perceber que o “algoritmo bolsonarista” quase todo migrou para as Forças Armadas, explica Piero Leirner

Foto: Marcos Brandão/Senado Federal
“É preciso ter em mente as perguntas fundamentais: quem ganha e o que se ganha com isso?”, questiona Piero Leirner

IHU – Como o senhor interpreta as manifestações de grupos bolsonaristas desde o resultado das eleições presidenciais, especialmente os slogans que reivindicam “intervenção militar” e “liberdade”?
Piero Leirner – O primeiro problema a ser considerado são as qualificações “grupos” e “bolsonaristas” aos manifestantes que neste momento estão produzindo intervenções na frente de quartéis e em espaços públicos como estradas. Suspeito que deve ter de tudo lá – de “grupos” mesmo (por exemplo, famílias de militares de determinadas regiões, que se entendem como grupos em outras ocasiões), passando por “organizações” (redes financiadas, setores empresariais) e até alguma adesão voluntária, individual. Isso segue padrões que já podiam ser vistos bem lá atrás, de 2013 a 2016. Naquela época quem pedia “intervenção militar” era mais quem tinha ligação com a chamada “família militar”, isto é, redes de militares das Forças Armadas e seus familiares. Note que no livro de entrevista do general Villas Bôas a Celso Castro já há uma indicação que o Comando do Exército monitorava a “família militar” nessas manifestações, mas não diz exatamente o que eles estavam fazendo lá; com uma rápida pesquisa, foi possível ver a ligação.

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Hoje, eu tenho a impressão de que este tema galvanizou mais gente. Não exatamente porque a credibilidade dos militares aumentou – pelo contrário, ela vem decaindo –, mas porque esse “vetor antissistema”, que já estava sendo mobilizado desde lá de trás, fica o tempo todo se movendo por nichos onde ele pode aderir. Em 2015, isso estava se aglutinando num antipetismo meio difuso; depois positivou na figura de Bolsonaro – que tem um comportamento de algoritmo, ele conduz a adesão a ele conforme a expectativa do “cliente”; agora, depois que Bolsonaro perdeu, este “sentimento outsider” está procurando esse novo nicho, um militarismo “purificado” que junta guerra, religião, moral, ideologia ultraindividualista e interesses econômicos. Por isso, vemos essa coisa contraditória, “intervenção militar e liberdade”. Dito isso, ainda que tenha uma mobilização mais ou menos espontânea, e sentimentos mais ou menos reais envolvidos, é preciso ter em mente as perguntas fundamentais: quem ganha e o que se ganha com isso? Aí a gente vê a outra ponta: atores conscientes que estão usando este fato para seus interesses.

O que estas manifestações indicam?
Vamos sair da perspectiva de que há “grupos” como se fossem categorias mais ou menos estanques. Então há grupos e redes, e indivíduos. Outra coisa é o que está acontecendo neste meio-tempo e o que vai acontecer futuramente, se daí vai sair alguma coisa mais organizada. A julgar pela dinâmica geral desse campo, que podemos chamar de “ultradireita”, desde 2015-2016, eles têm uma tendência muito volátil. Eles se aglutinam, formam grupos que logo depois se dissolvem. Mas o “metacampo” ultradireita continua a existir, e repete essa operação de tempos em tempos. Isso tem a ver com várias coisas, que vão da própria natureza do “outsider” convertendo-se em parte do “jogo” até a dinâmica “plataformizada” que opera numa simbiose entre internet, rede social e redes sociológicas concretas, como bem mostra minha colega Letícia Cesarino em vários textos e entrevistas.

No entanto, há uma máquina que opera (n)essas redes de forma blindada e criptografada, que é organizada, coesa, hierárquica e autorregulada, que é a máquina militar. Aí o “espontaneísmo” desce a níveis mínimos. Esta tem um comando que sabe o que faz, e está em um lugar que não é trivial, pois não só representa um centro de força como também de informações, com uma gigantesca engrenagem de ferramentas à disposição para produzir direcionamentos políticos. E não só eles, mas – é preciso dizer – toda a máquina punitiva, isto é, o Judiciário também – só que este com dispositivos mais ortodoxos e mais claros de constrangimento. Então, quando pensamos nestes termos, o que dá para dizer do Brasil? Em poucas palavras, “as instituições não estão funcionando normalmente”.

O que significa o silêncio das Forças Armadas, do ponto de vista institucional, diante dos protestos e dos acampamentos em frente aos quartéis? A postura dos militares joga por terra todas as análises interpretativas sobre possibilidade de golpe no país nos últimos anos?
Não é muito silencioso, né? Houve aquela nota horrorosa, e há manifestações de militares – como a de um general de Divisão na 10ª Região Militar, em Fortaleza. E de militares da reserva que estão, sim, sujeitos à lei e, portanto, à hierarquia e disciplina. Como é uma cadeia de comando, tudo que é feito em uma instância reflete-se, de alguma forma, também no topo – que está endossando o que seus subordinados fazem ou deixam de fazer. Então, precisamos voltar àquelas perguntas acima: quem ganha e o que se ganha com isso?

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Seria uma certa ingenuidade achar que, para o topo da cadeia de comando ter manifestantes rezando em muros de quartéis emulando o Muro das Lamentações – e assim passando a sensação de que estamos diante de algo psiquiátrico-hospitalar de tanta dissonância cognitiva –, isso tudo é só um “reconhecimento ao brio e honra militares”. Então do que se trata? Para entender o que um militar pensa, é preciso recorrer aos fundamentos do que, como e para que ele pensa. E isso é uma questão de “pensar (n)a guerra”, não na religião nem na política somente.

Desse ponto de vista, a minha interpretação vai na seguinte direção: seu interesse no momento é o da desestabilização e, por isso, quanto mais a performance na frente dos quartéis parecer uma coisa de malucos e fanáticos, melhor para eles. Maior é a sensação fabricada de que as coisas podem fugir do controle. E por que eles querem desestabilizar?

Porque o “dispositivo de contraefetuação da estabilização” – por ora, vamos chamar assim a “política” que venceu as eleições – deve ser, do ponto de vista desta máquina militar, emparedado para ser controlado. Note que para tudo isso fazer efeito é preciso que toda esta coisa se torne bastante verossímil, a ponto de até mesmo militares entrarem no jogo. Mas o topo da cadeia de comando deixa a coisa correr de forma consciente, pensada e calculada. Tudo poderia facilmente ser resolvido numa canetada, numa nota.

O senhor declarou recentemente que as manifestações em frente aos quartéis “servem para manter os militares com cacife para pressionar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva”. Pode explicar melhor essa ideia?
Para entender, é preciso recuar até o “problema das urnas”, que está na raiz desse processo de desestabilização. Note que antes ele tinha sido sequestrado por Bolsonaro, depois os próprios militares, vendo que a operação inicial já tinha cumprido seus requisitos, entraram como “coadjuvantes que passaram ao protagonismo”. Por que digo que a “operação inicial” já cumpriu seus requisitos? Porque o papel de Bolsonaro nessa história era bem claro: produzir o consenso contrário de que as urnas eram infalíveis e deixar todo o problema da auditoria etc. como uma espécie de narrativa fantasiosa, maluca e, de fato, cheia de furos.

Porque Bolsonaro só associou ao “problema do artefato urna” narrativas idiotas; de outro lado, havia gente séria e bastante discussão acadêmica que procurava aperfeiçoar a confiança do artefato “urna”, inclusive com a impressão do voto tal como prometia fazer o modelo apresentado por Gilmar Mendes no Tribunal Superior Eleitoral em 2017. Colocar Bolsonaro nessa equação é a certeza de melar o jogo. E o que os militares ganharam com isso? Eles, a partir daí, se colocaram como uma segunda instância de validação da urna, inclusive convidados pelo ministro [Luís Roberto] Barroso. Era a senha que precisavam para controlar a estabilidade do processo, pois passaram a ter o poder de justamente torná-lo instável.

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Então, de certa forma todo desdobramento que vemos agora passa pelas mãos deles. Se eles baterem o carimbo, um acordo se forma e o governo de conciliação pós-caos bolsonarista segue em céu de brigadeiro. Enquanto eles não fazem isso, o futuro governo gasta sua energia em tentar estabilizar o Brasil polarizado. Se olharmos o que está acontecendo, vamos perceber que o “algoritmo bolsonarista” quase todo migrou para as Forças Armadas. Na minha opinião, isso tem a ver com a tomada de controle do processo eleitoral, que ainda não se resolveu.

Em que consiste a guerra híbrida que tem ocorrido no Brasil, tema do seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”? Quem são os atores dessa guerra e com quais propósitos ela tem ocorrido?
É uma questão muito ampla, que transcende o Brasil e o momento atual. Só permita-me dizer, para que fique claro o que disse acima: o que vem a ser o “híbrido” dessa forma de guerra? Basicamente é quando se junta duas ou mais coisas que eram separadas ou independentes e elas passam a existir de forma dependente, numa relação em que uma não opera mais sem levar em conta os efeitos na outra, e supondo que os efeitos na outra terão por sua vez efeitos em si mesma, em uma retroalimentação.

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Na guerra híbrida, por exemplo, guerra, política e direito estão nessa relação, e assim seus agentes principais também: políticos, juízes e generais não podem mais ser tomados como peças separadas. Quando vemos este imbróglio entre urnas, eleições e política sob a óptica de manobras e engrenagens de guerras híbridas, entendemos por que, por exemplo, fica mais difícil falar de uma quartelada, um golpe “clássico” hoje em dia. Claro que tudo isso deve ser considerado dentro de cenários; não é uma bola de cristal nem uma profecia autorrealizável líquida e certa, como alguns querem fazer acreditar quando se enuncia as palavras guerra e híbrida.

Um dos conceitos abordados no livro é o de “cismogênese, ou seja, a criação de divisões sociais com o objetivo de impossibilitar qualquer pacto social”. Pode explicar como isso tem acontecido a partir da política?
Não é bem disso que se trata a cismogênese – “impossibilidade de pacto social”. A começar por esta ideia de pacto social, acho ela meio ruim, pois supõe toda uma cosmologia que coloca como “dado” que haveria um outro “estado” (por exemplo, uma “natureza” de tipo hobbesiano) e que um tipo de acordo faz emergir essa coisa chamada sociedade. Não é bem assim que as coisas funcionam, pelo menos se tomarmos o tipo de teoria antropológica que pode se beneficiar de um conceito como o de cismogênese, que veio de um autor inglês, Gregory Bateson, que na década de 1930 viu um fenômeno entre os iatmul, na Nova Guiné, e o enunciou como tal.

A cismogênese prevê, de certa forma, o conflito como relação, e não como ausência. Esse conflito pode ocorrer de forma simétrica – como numa corrida armamentista, por exemplo – ou de forma complementar – como numa relação de exploração e submissão. O que interessa na cismogênese é que um comportamento sempre retroalimenta o outro, gerando esse mecanismo igualmente importante na teoria de Bateson (e que depois influenciou muito o campo da cibernética), que é o feedback. Isso foi aproveitado de maneira sintomática pelos teóricos militares que passaram as décadas de 1980, 1990 e 2000 desenvolvendo as tais teorias da guerra híbrida – ou qualquer outro nome que se tenha dado, “guerras ilimitadas”, “neocorticais”, “cognitivas”, “psicológicas de espectro total”, “não convencionais”, enfim, tem um monte de tipos que se nutriram dessas discussões.

Quando pensamos na cismogênese e sua operacionalização como um dispositivo militar hibridizado na política, pensamos justamente na ideia de que o campo jurídico-político “caiu em looping” numa modalidade de conflito insolúvel. É meio desesperador, porque de certa forma ficamos com a perspectiva de que esse negócio não vai se resolver jamais.

De que modo essa divisão social, gerada pela guerra híbrida, tem afetado psicologicamente as pessoas e que imaginário social tem sido criado a partir dessa guerra?
São tantas pontas que é impossível citar aqui todas elas. Para se ater a duas, basta ver o pingue-pongue em que o judiciário está. E, é bom frisar, está porque quer e alimenta esse jogo. Não era o momento dos ministros se recolherem a uma posição discreta? O que aconteceu? Foram para Nova York, entraram em polêmicas desnecessárias. Barroso e Cristiano Zanin (advogado de Lula) não se deixaram ser vistos jantando? Isso alimenta ou murcha o “viés de confirmação” golpista? Então esse conflito é tácito, a cúpula do Judiciário entrou de sócia dos generais nele.

Há quatro anos, o TSE/STF era o algoz do PT, que dizia que eleição sem Lula era fraude, e pavimentou a eleição de Bolsonaro. Hoje, Bolsonaro sugere que a eleição é fraude porque o TSE/STF pavimentou a eleição de Lula. Essas comutações de posição e inversões em série são típicas de manobras “em looping” de guerras híbridas – que, aliás, em manuais colocam por escrito que “desestabilizar eleições em países inimigos” é mais eficaz e barato do que promover ações militares convencionais. Aqui no Brasil, pelo visto, o “país inimigo” é o próprio.

Quais são os desafios do novo governo?
Para mim, o maior desafio é saber sair dessa espiral do inferno. Não há receita pronta para isso, mas localizar a fonte dos problemas já é um grande passo.

Patricia Fachin | Revista IHU On Line


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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