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ToggleNa quinta-feira (24), o Supremo Tribunal Federal (STF) deu sequência ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, que trata da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Após um ajuste do voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que antes havia se manifestado por descriminalizar o porte para consumo próprio de todas as drogas e agora o restringiu à maconha, o ministro Cristiano Zanin proferiu o primeiro voto contrário à inconstitucionalidade alegada na ação.
Em sua leitura, ele reconheceu problemas na aplicação judicial do artigo 28 da Lei de Drogas, que leva ao encarceramento em massa de segmentos em situação de vulnerabilidade social, mas afirma não ser possível declarar sua inconstitucionalidade por entender que este é o único dispositivo da legislação brasileira que diferencia usuários e traficantes.
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“Não tenho dúvida que os usuários de drogas são vítimas do tráfico e das organizações criminosas para exploração ilícita dessas substâncias. Mas, se o Estado tem o dever de zelar pela saúde de todos, tal como previsto no artigo 196 da Constituição da República, a descriminalização, ainda que parcial, das drogas poderá contribuir ainda mais para o agravamento desse problema de saúde”, disse Zanin.
O trecho em si reflete algo que é bastante comum em julgamentos no Brasil, inclusive no Supremo, onde se fazem afirmações que não encontram base factual para se fundamentar votos ou decisões. Magistrados por vezes recorrem apenas à chamada “livre consciência”, sem buscar efetivamente subsídios, análises de especialistas ou pesquisas, se apartando do contexto social e produzindo uma realidade própria.
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Neste caso específico, por que a descriminalização parcial poderia contribuir para o agravamento do problema de saúde das drogas? É sabido que o estigma social e a criminalização afastam o usuário do sistema de saúde, o que prejudica o tratamento das pessoas que necessitam. Também impossibilita o conhecimento da verdadeira dimensão do problema em função da ausência de dados a respeito, dificultando a elaboração de estratégias e políticas públicas, contradizendo a premissa de Zanin. Mas como o STF debate agora a descriminalização restrita à maconha, é fundamental recorrer ao que já se sabe sobre alguns impactos na saúde de quem implementou políticas alternativas.
Segundo estudo publicado na revista Economic Inquiry, em 2019, estados que legalizaram o uso da maconha nos Estados Unidos tiveram uma redução de pelo menos 20% nas mortes ligadas a overdoses de opioides. “Os estados onde a maconha foi legalizada não são tão negativamente afetados como os que não a legalizaram”, disse um dos autores, o economista da Universidade de Massachusetts Amherst, Nathan Chan. Importante ressaltar que, nestes locais, houve legalização da cannabis, que é um passo adiante da mera descriminalização.
Não existem evidências científicas de que a descriminalização aumente o consumo de drogas e, ainda que isso ocorra, que vá existir uma consequente sobrecarga do sistema de saúde. No Uruguai, por exemplo, que criou um mercado regulado para uso recreativo e medicinal de maconha em 2013, a Junta Nacional de Drogas (JND) apontou em seu último relatório, divulgado no final de 2022, que o número de “usuários problemáticos” de drogas (com exceção do amplamente legalizado álcool) foi reduzido de 18% para 13% no universo de consumidores frequentes entre os anos de 2011 e 2021, sendo que menos de 3% destes utilizam só maconha. O uso de cannabis, ao menos uma vez por ano, entre jovens do ensino médio ficou em 19%, em 2021, abaixo do previsto de acordo com a média de 20 anos, e a idade média de uso pela primeira vez, que era de 14,9 anos em 2001, manteve-se igual.
“O consumo de cannabis entre adolescentes e jovens no Uruguai cresceu menos que a média regional, com países que não legalizaram. Por exemplo, o Brasil. A cannabis continua sendo a droga preferida de quem foi adolescente durante o proibicionismo, e não é a de quem foi adolescente durante a legalização”, aponta o fundador e primeiro presidente da Câmara de Empresas de Cannabis Medicinal do Uruguai, Marco Algorta, em entrevista à Agência Brasil.
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
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As drogas e a Justiça
O sistema de Justiça brasileiro tem uma relação no mínimo difícil com o tema das substâncias ilícitas. A atual Lei de Drogas, implementada em 2006, determina que o usuário não pode ser preso em flagrante, por exemplo, como ocorria anteriormente à sua vigência. Contudo, não define de forma objetiva o que diferencia a condição de usuário da de traficante, o que acaba ficando a critério de cada juiz. A mesma legislação ainda aumentou a pena mínima de prisão para o crime de tráfico, que passou de três para cinco anos, inviabilizando a adoção de penas alternativas ao cárcere.
Com o perfil punitivista do Judiciário e do Ministério Público no Brasil, houve um expressivo aumento do encarceramento em massa após a entrada em vigor da Lei de Drogas. Em 2005, havia 296.919 pessoas encarceradas no Brasil, já em 2022 este número alcançou 832.295 pessoas, segundo dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A seletividade judicial permanece como marca: 68,2% da população carcerária são negros.
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Mesmo iniciativas consagradas por experiências internacionais naquilo que preocupa o ministro Zanin, a questão da saúde relacionada ao uso de drogas, enfrentaram dificuldades na Justiça para serem implementadas. A adoção da redução de danos (RD) de forma pioneira pela cidade de Santos, no fim dos anos 1980, é um exemplo.
À época, na gestão da prefeita Telma de Souza (PT), o secretário de Saúde David Capistrano, médico-sanitarista e um dos principais nomes da mobilização política em torno da Reforma Sanitária colocou o também médico Fabio Mesquita para coordenar a primeira política municipal de enfrentamento à Aids no Brasil. A estratégia contava com a distribuição de seringas descartáveis aos usuários de drogas injetáveis e recolhimento das usadas, já que mais da metade dos casos de infecção por HIV na cidade, que tinha o maior número de soropositivos por cem mil habitantes do país, era pela utilização de substâncias injetáveis.
Por conta do programa, o Ministério Público Estadual, baseado na Lei 6.368/1976, processou Telma, Capistrano e Mesquita por crime de tráfico. “Houve uma interpretação equivocada de alguns setores da sociedade que não compreenderam que nosso objetivo era evitar maior disseminação da doença através da redução dos índices de contaminação, nos acusando de incentivar o consumo de drogas”, explicava Fábio Mesquita em 2001, ressaltando que em dez anos de políticas orientadas pela RD o número de infecções de HIV reduziu de 69,5 para 50,9 casos para cada 100 mil habitantes, fazendo com que Santos caísse da primeira para a 11ª posição do ranking de cidades atingidas pela Aids no Brasil.
No estudo Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”, os pesquisadores Eduardo Henrique Passos e Tadeu Paula Souza definem com precisão o embate jurídico acerca do programa santista. “A ação judicial que David Capistrano sofreu não será tomada como um episódio de uma história pessoal, mas sim como um acontecimento político que evidencia o encontro entre as forças conservadoras que sustentam uma política antidrogas e as forças progressistas que adotavam a RD como uma estratégia em defesa da vida e da democracia. A retaliação judicial e policial sofrida por essa secretaria municipal de saúde pôs em evidência a contradição da própria máquina estatal, na medida em que o poder judiciário suspende o direito constitucional de acesso universal à saúde.”
Modelo falido
Falando ainda da saúde pública e entorpecentes, o que dizer dos efeitos múltiplos da “guerra às drogas”? Aumentar o encarceramento e enviar pessoas para o insalubre sistema prisional é, muitas vezes, condená-las à morte. Maíra Rocha Machado, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Natália Pires de Vasconcelos, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), realizaram uma pesquisa considerando mais de 112 mil casos entre os anos de 2017 e 2021 de falecimento de pessoas que estavam privadas de liberdade. Entre as mortes dentro das cadeias, 62% tiveram como causa insuficiência cardíaca, infecção generalizada, pneumonia ou tuberculose. Segundo as pesquisadoras, a prisão piora os indicadores de saúde a longo prazo, acelerando o envelhecimento dos custodiados.
A repressão policial baseada em um modelo ultrapassado e questionado em inúmeros países atualmente também causam outros efeitos danosos para a saúde e à própria economia. O estudo Custo de bem-estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em junho, estima que o custo de bem-estar correspondeu a cerca de R$ 50 bilhões em 2017, equivalente a 0,77% do Produto Interno Bruto (PIB).
“Já passa do momento de a sociedade, policy makers e academia deixarem de lado as visões preconcebidas e tabus e passarem a debater seriamente alternativas ao problema das drogas, como outros países, inclusive os Estados Unidos, vêm fazendo, em que a violência é abandonada e substituída por ações mais inteligentes de natureza educacional, por políticas de redução de danos e por regulação e legalização dos mercados”, alerta o autor do estudo Daniel Ricardo de Castro Cerqueira.
Reprodução acrítica de conceitos equivocados só alimenta um debate negligente de uma questão relevante que conta com pesquisas, dados, estatísticas e experiências já adotadas nacional e internacionalmente suficientes para um aprofundamento mais responsável. A “livre consciência” não pode ser um salvo conduto para se eximir de análises que possam contradizer mesmo crenças de foro íntimo. Ainda mais quando tantas vidas estão em jogo.
Glauco Faria | Jornalista, ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual.
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