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ToggleO dólar bate recorde. O preço internacional da soja bate recorde. A safra brasileira de grãos baterá recorde.
O desmatamento da Amazônia, as queimadas no Cerrado e no Pantanal, tudo bate recorde ou volta aos níveis do começo do século.
Conectar os pontos é tão simples quanto simplista. Não, o dólar alto não é o único fator que eleva os preços internacionais da soja, nem a soja é a única culpada pela derrubada da Amazônia.
A pecuária e o extrativismo, o incentivo do governo de Jair Bolsonaro à devastação, o desmonte dos órgãos ambientais e o peso do pensamento retrógrado no comando de Brasília têm culpa enorme no cartório.
Mas, entre tantas questões, o real desvalorizado é um fator tão relevante quanto esquecido na análise sobre o rastro de destruição causado pelo sistema alimentar hegemônico.
O tema entrou de vez na discussão sobre inflação graças à disparada dos preços do arroz e do feijão. A exportação, mais rentável nesse momento, fez com que os estoques brasileiros de arroz baixassem, num movimento semelhante ao ocorrido com a carne na virada do ano.
Agora, podemos falar sobre um outro impacto do dólar alto. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) não tem dúvida em colocá-lo na lista de motivos que levam a um valor sem precedentes para a soja brasileira. O mesmo para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura.
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O crescimento da produção de soja é brutal.
Cambio e devastação ambiental
Calma lá. Que o câmbio guarde conexão com o valor da soja, beleza, mas o que isso tem a ver com a devastação ambiental?
O discurso oficial do governo de que o agronegócio não tem qualquer ligação com as queimadas e as derrubadas pode ser ótimo para alimentar redes sociais bolsonaristas, mas briga com a inteligência, como quase tudo o que sai da Esplanada dos Ministérios nos últimos 21 meses.
Nós falaremos sobre a soja pela relevância que tem (e que cresce a cada dia), mas a reflexão e os reflexos negativos se estendem ao modelo de agronegócio como um todo.
É uma questão de lógica: se não fosse para plantar ou criar gado, por que gastariam tanto dinheiro para derrubar a floresta? Mesmo que o Brasil seja gigante, o apetite pelo aumento do território plantado é tanto que avança sobre o Cerrado (R.I.P.) e sobre a Amazônia.
Está vendo, no mapa a seguir, o Mato Grosso, o Mato Grosso do Sul e Goiás? Tudo isso costumava se chamar Cerrado. E nem faz tanto tempo assim. Em apenas onze anos, a área cultivada com soja avançou 72%, o que já equivale à metade das áreas utilizadas em lavouras no Brasil.
Na outra ponta, o real é uma das moedas que mais sofrem desvalorização no mundo, em particular desde o início da gestão Bolsonaro. Em janeiro de 2019, um dólar valia R$ 3,70. O ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a cravar no começo de 2020 que não passaria de R$ 4 e, como em tudo o mais, ele errou feio: chegamos a quase R$ 6 em alguns momentos.
Por que a soja?
Esse panorama é traduzido ao mundo agrícola por um relatório publicado em junho pelo USDA: “O real perdeu 32% de valor frente ao dólar desde o começo do ano até a metade de maio, antes de recuar ligeiramente nas últimas três semanas. Como resultado, as commodities e os produtos agrícolas brasileiros estiveram efetivamente numa venda aquecida por compradores ao redor do mundo.”
Um outro relatório do USDA, publicado em abril, mostra que uma tonelada de soja brasileira custava US$ 313, contra US$ 337 e US$ 345 do produto nos Estados Unidos.
Mas, porque a soja? Porque esse é o produto-mor da agropecuária brasileira? O crescimento da produção de soja é brutal. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, em valores ela engole os outros oito itens seguintes da lista.
De acordo com a Conab, na safra desse ano são 120,9 milhões de toneladas em 37,8 milhões de hectares. Juntos, soja e milho respondem por 90% da safra de grãos do Brasil.
Essa é a lista de produtos exportados pelo Brasil em 2020, segundo a Secretaria de Comércio Exterior. Você pode notar que a soja, sozinha, segura quase 20% do que o Brasil arrecada no mundo, num crescimento de 30% frente ao ano passado. Entre os primeiros itens da lista, só o açúcar, também beneficiado pelo real fraco, teve um desempenho semelhante.
A soja já é quase o dobro do segundo item da lista, o minério de ferro, e é cinco vezes mais que os outros dois produtos agrícolas em destaque (açúcares e carne bovina). E isso é apenas o grão in natura, sem processamento. Se somarmos farelo e óleos, a situação fica ainda pior. O Brasil produz, sozinho, 36% da soja mundial.
Por um Brasil do século XVII
O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) é uma das principais referências no monitoramento dos preços de mercado agrícola. Vejamos o que diz o relatório mais recente da instituição:
“Na parcial de agosto (até o dia 21), o Indicador ESALQ/BM&FBovespa Paranaguá (PR) subiu significativos 11,5%, indo para R$ 132,80/saca de 60 kg na sexta-feira, 21 – patamar recorde nominal da série histórica do Cepea, iniciada em março de 2006. Em termos reais, os valores negociados na última semana se aproximam do patamar recorde da série do Cepea, de R$ 139,20/sc, registrado em setembro de 2012.”
A Conab, na publicação Perspectivas para a agropecuária, também em agosto, assinala que alguns segmentos de produção de alimentos foram particularmente afetados pelo dólar alto porque dependem da importação de insumos. “Para grãos o câmbio não afeta tanto porque no barter a quantidade de sacas comprometidas pelos insumos é relativamente constante e independe do câmbio.”
Em outras palavras, a soja e o milho se dão muito bem porque, mesmo que o preço dos insumos cresça, a valorização no mercado internacional é tamanha que continua valendo muito a pena plantar. E, quanto mais plantar, melhor. É fácil entender isso quando olhamos para o outro lado da balança comercial. Não houve um crescimento significativo na importação de adubos e fertilizantes, compostos e inseticidas, fungicidas, herbicidas.
Mas essa é uma ótima notícia, então? A soja está garantindo divisas fundamentais para que a gente consiga colocar o feijão na mesa, oras! Hum. Não mesmo. Começando pelo lado positivo da moeda, que é justamente essa condição de sustento da economia, o fato é que o Brasil se tornou profundamente dependente de produtos primários. Os primeiros itens da balança comercial de 2020 poderiam ser os primeiros itens da balança comercial de 1600. Voltamos a ser meramente um país de extrativismo e agricultura.
Essa situação deixa o país extremamente vulnerável. Por mais tecnologia que se empregue, a soja continua a ser uma cultura agrícola e, portanto, passível de sofrer com fenômenos da natureza. Uma pequena quebra de safra pode ter um impacto gigantesco na balança comercial.
O gráfico abaixo registra nossos principais compradores de soja em 2020. Como você pode ver, a China banca mais do que a soma de todos os outros. Se os humores políticos chineses mudarem, ou se o governo de Pequim decidir migrar, com o tempo, a algum outro país produtor, podemos ter sérios problemas, ainda que hoje nada indique essa possibilidade. Na balança comercial geral, a China já responde por um terço de todos os produtos que exportamos.
Da Amazônia à inflação
E o que isso tem a ver com a sua vida? Muitas coisas. Para que a soja continue avançando, algo tem de sair do lugar. Ou florestas, ou alimentos de verdade. Um recente levantamento da Forests and Finance (F&F) mostrou que, ao invés de diminuir, o financiamento de commodities associadas ao desmatamento aumentou 40% desde dezembro de 2015. A organização vasculhou R$ 990 bilhões investidos entre 2016 e 2020 na produção de carne bovina, óleo de palma, papel e celulose, borracha, soja e madeira em três regiões do mundo. Mais da metade do total veio para o Brasil, e boa parte para investimentos industriais em áreas de desmate.
E aqui, de novo, podemos retomar o raciocínio básico em relação ao dólar: o real desvalorizado faz o dinheiro desses fundos valer mais. Logo, é possível que esses recursos acabem financiando ainda mais iniciativas e, portanto, exercendo mais pressão sobre as florestas.
Agora é a hora de olhar para a inflação de alimentos básicos. Esse é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, a inflação oficial do Brasil:
Diante de um cenário de retração geral nos preços, o índice específico para alimentação se destaca. O arroz avançou quase 20% no ano, enquanto o feijão preto já bate nos 30%
Sai feijão, entra soja
Recentemente, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) renovou a queixa em relação à indústria de alimentos, num jogo de empurra que já havia se desenhado no começo da pandemia, diante da perspectiva de inflação.
“O setor supermercadista tem sofrido forte pressão de aumento nos preços de forma generalizada repassados pelas indústrias e fornecedores. Itens como arroz, feijão, leite, carne e óleo de soja com aumentos significativos”, afirmou, para complementar: “Conforme apuramos, isso se deve ao aumento das exportações destes produtos e sua matéria-prima e a diminuição das importações desses itens, motivadas pela mudança na taxa de câmbio que provocou a valorização do dólar frente ao real.”
Como sabemos, novamente seria simplista atribuir a alta de preços de alimentos unicamente ao dólar elevado. Embora, nessa situação, não reste dúvida de que é um fator central para explicar o problema. Porém, não se trata apenas de importação e exportação dos alimentos em si, mas de uma disputa territorial: os agricultores plantam aquilo que tem mais mercado.
Em dez anos, a área cultivada com arroz caiu 40,9%. De novo, sem resumir tudo a uma única questão, sabemos que oferta e demanda têm impacto nos preços, e que os preços têm impacto no consumo. Não é acaso que a recente Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE tenha flagrado uma redução drástica no consumo de arroz e feijão no país ao longo do Século da Soja.
Como já vimos, o real valorizado não serve apenas para a soja. O arroz é apenas o 63º produto da lista de exportações do Brasil. Não contribui quase nada para a balança comercial, mas os R$ 270 milhões exportados esse ano de arroz já processado representam um crescimento de quase 60% frente a 2019. Já o arroz bruto triplicou as remessas ao exterior, chegando a R$ 130 milhões. Arroz que vai pra lá é arroz que falta por aqui.
E esse é um dos problemas de transformar alimentos em mercadorias que são comercializadas no mercado financeiro da mesma maneira que automóveis, produtos tecnológicos e minérios. Diferentemente de outras áreas, quando se trata de alimentos, oscilações repentinas podem condenar milhões de pessoas à fome. O governo de um país africano, de uma ilha no Caribe ou de uma mega nação asiática tem pouca capacidade de controlar os preços, atrelados aos mercados internacionais, e, assim, é possível que itens essenciais da dieta de uma população se tornem repentinamente inacessíveis – a alta do quilo do arroz no Brasil é um exemplo bem claro.
O desmatamento futuro está garantido
Voltamos à análise mais recente do Cepea. “Diante disso, vendas de soja para entrega entre fevereiro e julho de 2022 também já vêm sendo verificadas (safra 2021/22). Pesquisadores do Cepea indicam que esse tipo de comercialização envolvendo o produto que será colhido daqui duas safras é um fato inédito.” O que isso significa? Que os agricultores buscarão expandir a área de plantio.
A Conab projeta crescimento de 2,8%, o que significa um milhão de hectares a mais. Trocando em medidas palpáveis, é exatamente tudo o que sobrou para a primeira safra feijão em 2020, ou exatamente o que foi desmatado na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020. China à frente, o Brasil venderá quase 87 milhões de toneladas de soja, ou cinco milhões a mais.
Como bem define a publicação Perspectivas para a agropecuária, “o mesmo movimento também é observado nas operações de mercado futuro (hedge), muito comuns entre produtores de grãos e outras commodities”.
Dissemos no nosso podcast Prato Cheio, ainda no começo do ano, que, onde sai o feijão, entra a soja. Nas palavras da Conab ao falar sobre as perspectivas de curto prazo para o feijão: “Caso a rentabilidade da soja e milho aumente até a efetiva decisão do plantio, poderá haver mudança nesse cenário.”
Diante desse cenário, não é surpreendente que o governo federal não tenha qualquer plano. Há uma série de instrumentos que o poder público pode (e deve) usar para influenciar preços, oferta e demanda na produção e no consumo de alimentos. Mas o Estado pra-lá-de-mínimo só consegue produzir exortações.
Como tudo em Bolsonaro, o raciocínio é falho. Ainda que se pudesse acreditar que se trata de patriotismo, as duas principais redes de supermercados do Brasil, Casino (Extra-Pão de Açúcar) e Carrefour, são francesas.
João Peres, é autor de “Corumbiara, caso enterrado” (Elefante, 2015), Foi editor e repórter da Rede Brasil Atual entre abril de 2009 e novembro de 2014, especializado em política alimentar.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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