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Cannabrava | Brasil não é só cristão. Laicidade não pode apagar religiões de matriz africana

Carmem de Oxum dialoga com Paulo Cannabrava Filho sobre as perseguições sofridas pelo povo de terreiro
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Educado em São Paulo, com uma mãe católica romana, que ia à missa todos os domingos e, às vezes, nas rezas de fim de tarde, tendo estudado em colégio de padres Salesianos, demorei muito para me interessar por outros cultos e, quando o fiz me tornei um exegeta: quis conhecer todas as religiões. Hoje sou um aba (pessoa velha) que continua aprendendo.

Na São Paulo da minha infância e juventude não havia Candomblé, (pelo menos no meu universo), só algumas casas de culto de Umbanda, escondidas, quase clandestinas porque a perseguição era grande.

A gente ouvia ou lia nos jornais sobre Joãozinho da Gomeia, pai de santo que saiu da Bahia, criou um templo em Caxias, no Rio de Janeiro, e fez um grande sucesso midiático, sendo procurado por artistas e políticos. Até o ex-presidente Getúlio Vargas o recebeu.

Em 1958, eu trabalhava com o Museu de Cera de Paris, que estava exposto no Parque do Ibirapuera, e o proprietário resolveu levar a exposição para Salvador, na Bahia. Lá, em pavilhões na frente do Zoológico do Parque Ondina, ficamos um tempo e pude mergulhar não só na cultura soteropolitana, como ir pelas profundezas do sertão.

Pedi para a senhora que trabalhava na cozinha que me levasse à casa de culto à qual estava filiada. Mulher de um pescador, moravam na recém criada Invasão de Ondina, na costa, um ou dois quilômetros distantes.

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Entramos no terreiro, o rufar dos atabaques, o cheiro forte dos temperos, o movimento dos corpos me embasbacou. Eu ali, parado, o pai de santo que estava sentado, levanta, me reverencia e me diz que sou filho de Oxóssi.

Eu nem sabia quem era Oxóssi, quanto mais o que significava ser filho dele. Foi meu primeiro mergulho na cultura negra, negra baiana, negra-branco-índia, raiz da nação brasileira.

Senti a magia de estar num espaço sagrado em que o humano, a natureza e a arte  interagem com o sagrado. Ali se despertam todos os sentidos. Tudo é reverência. Ritmo, música, canto e poesia, os símbolos, a profusão de cores, as vestimentas, a culinária com seus odores e sabores. 

Tive o privilégio de conhecer Mãe Menininha do Gantois, a ialorixá das ialorixás, quem fez uma verdadeira revolução nos costumes da Bahia com reflexo em todo o Brasil. Ela não via diferença entre as várias religiões. São Salvador das 365 igrejas curvou-se às mães de santo que assistem à missa paramentadas cada uma com a veste de seu Orixá. 

Mãe Menininha era quituteira e modista… ou seja, tinha uma profissão para seu sustento. No Candomblé, ninguém vive às custas dos Orixás nem os Orixás cobram para serem orixás, pois são entidades, não precisam de nada.

Carmem de Oxum dialoga com Paulo Cannabrava Filho sobre as perseguições sofridas pelo povo de terreiro

Zak Moreira – Flickr

O Brasil é um país diverso e a gente se orgulha disso; por causa disso o Estado é e tem que ser laico




Estado laico

É um Brasil de todas as religiões, de todos os povos que aqui aportaram. Dos negros do Senegal, do Congo, da Nigéria e de Angola formou-se o Candomblé brasileiro que fala kibundo e iorubá, principalmente, que se tornou um léxico para as cerimônias. 

O Brasil recebeu contribuições do mundo que falava árabe ou ladino, das centenas de línguas e religiões do povo que vieram da Europa, da Eurásia ou da África, cada um com seu deus, com suas crenças, suas maneiras de cultuar a divindade. É um país diverso e a gente se orgulha disso. Por causa disso o Estado é e tem que ser laico.

Carmem de Oxum, mineira de Curvelo, foi iniciada com 17 anos, já era casada e com filho, e criou uma casa de culto dedicada a Oxum. Hoje, o Centro Cultural Ilê Olá Omi Asé Opo Araka, em São Bernardo do Campo. Cresceu, tem casa de Culto em São Paulo, Santo André e Embu das Artes.

Como negra já sofreu assédio, discriminação por ser mulher e por ser negra… é a fatalidade de estar nesse Brasil escravagista, mas sofreu assedio mais grave, perseguição pelas autoridades do estado e até mesmo prisão. Nas últimas décadas, com a expansão das denominações religiosas pentecostais e neopentecostais, oriundas dos Estados Unidos, sofreu outros tipos de agressão. Quem é que pode demonizar uma religião?

Confira a íntegra da entrevista com Carmem de Oxum:

Paulo Cannabrava Filho, jornalista latino-americano e editor da Diálogos do Sul.


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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