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Capitalismo é espinha dorsal do conflito na Ucrânia, estratégica para mercado energético

“Crime” da Rússia é ameaçar os interesses econômicos de Washington, que busca beneficiar os produtores de gás estadunidenses em detrimento dos russos
Gabriel Dantas Romano
Le Monde Diplomatique
São Paulo (SP)

Tradução:

Explicações convencionais e comentários públicos que tentam explicar as guerras como meras disputas entre Estados buscando poder e território não são suficientes para entender os conflitos internacionais dos últimos dois séculos. No jogo de xadrez geopolítico, as peças são movimentadas primordialmente para defender interesses econômicos. Não é possível interpretar os objetivos de um Estado como objetivos isolados e em si, mas sim sempre associados à elite econômica que ele representa.

A disputa para transformar a Ucrânia numa esfera de influência (ocidental ou russa) não acontece apenas por uma questão de busca de poder entre Estados, mas para favorecer interesses comerciais. Claro que os Estados competem por poder, influência e segurança fronteiriça, mas esses objetivos estão subordinados a propósitos econômicos de grupos específicos.

O Estado no sistema capitalista é antes de tudo representante político da elite que o sustenta e dessa forma procura sempre suprir suas necessidades. Quando os interesses econômicos das elites de duas potências colidem, os conflitos acontecem. No caso, Estados Unidos e Rússia são os principais produtores de gás natural do mundo, a Europa é uma das principais consumidoras e a Ucrânia é parte da rota de gasoduto. A médio prazo, os Estados Unidos buscam tomar da Rússia a posição de principal exportador de gás natural para Europa.

A discussão pública sobre a Ucrânia vem sendo encabeçada nem sempre por pessoas com competência para isso. Costumam evocar até Tolstói e Dostoiévski em busca de vagas explicações, mas esquecem de mencionar a disputa capitalista por mercado e as raízes econômicas do problema.

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Um texto publicado pela Folha de S.Paulo busca entender a invasão russa à Ucrânia por meio do resumo de abordagens teóricas das relações internacionais: menciona-se a permanente luta do Estado por poder, o “conflito global entre democracias e autocracias”, e a interação entre as identidades das nações. Mas em nenhum momento é cogitado que os Estados Unidos e a Rússia disputam a Ucrânia como esfera de influência em busca de favorecer os interesses comerciais e econômicos de suas próprias elites. O sistema capitalista como agente geopolítico é esvaziado da questão, a busca pela obtenção de lucro e pelo domínio de mercados é apagada. Em geral, retratam um mundo fictício ausente da influência do capitalismo em que os Estados agem por si só como máquinas irracionais e autocratas em busca de poder, enquanto na verdade o jogo geopolítico acontece dentro de uma rede capitalista e seus objetivos sequer existem isolados de uma classe dirigente.

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O capitalismo depende da busca violenta por mercados. O “crime” da Rússia é ameaçar os interesses econômicos de Washington. O Kremlin representa um entrave para o domínio norte-americano do mercado energético europeu. Os Estados Unidos, como representantes de sua própria elite, pretendem beneficiar os produtores de gás locais em detrimento dos russos. Caso se curvasse às ambições econômicas estadunidenses, a Rússia não seria um problema mesmo que continuasse autocrata e violadora dos direitos políticos. A aceleração da globalização a partir do século 20 não levou à expansão da democracia, o mercado capitalista não favoreceu um mundo livre, liberal e democrático. Os Estados Unidos são aliados reconhecidos do extremismo islâmico, sendo parceiros de países autoritários e extremistas como a Arábia Saudita sempre que isso beneficia seus interesses. Dessa forma, não há luta nenhuma entre autocracia e democracia.

Os conflitos internacionais no Leste Europeu não são simplesmente conflitos entre Estados, não são choques de civilizações, culturas, simbolismos e identidades, são conflitos entre projetos econômicos de duas potências. A Rússia hoje se apresenta como um sistema concorrente e alternativo aos objetivos dos Estados Unidos na Europa. A questão não é cultural, não vem do cristianismo ortodoxo contra o mundo ocidental, os discursos ideológicos são meros subterfúgios, apesar de desempenharem papel importante e terem graves consequências. Mas o cerne da questão é: o Leste Europeu vai ser influência do Ocidente ou da Rússia? O Leste Europeu vai facilitar a obtenção de lucro para empresas norte-americanas ou russas?

Em 2018, durante  conversa com o secretário-geral da Otan Jens Stolttenberg, o então presidente Donald Trump enfaticamente levantou objeções contra a aproximação econômica da Alemanha com a Rússia, afirmando que a dependência de gás russo a tornava refém do país.

No evento em questão, Trump questionava os gastos norte-americanos na Otan para “defender” a Alemanha da Rússia enquanto a própria Alemanha enriquecia o rival pela compra de gás. A lógica era simples: a Alemanha deveria comprar gás dos Estados Unidos, para enriquecer os produtores norte-americanos, e não os russos. Disse Trump:

“Eu acho muito triste quando a Alemanha faz um grande acordo de petróleo e gás com a Rússia quando deveria estar se protegendo da Rússia; e a Alemanha sai e paga bilhões e bilhões de dólares por ano para a Rússia. Então, estamos protegendo a Alemanha, estamos protegendo a França, estamos protegendo todos esses países e vários deles saem e fazem um acordo de oleoduto com a Rússia, pagando bilhões aos russos.

“Crime” da Rússia é ameaçar os interesses econômicos de Washington, que busca beneficiar os produtores de gás estadunidenses em detrimento dos russos

Pixabay
O Kremlin representa um entrave para o domínio norte-americano do mercado energético europeu

[…] Acho que o comércio é maravilhoso. Eu acho que a energia é uma história totalmente diferente. Acho que a energia é uma história muito diferente do comércio normal. E você tem um país como a Polônia que não aceita o gás. Você dá uma olhada em alguns dos países – eles não vão aceitar, porque não querem ser cativos da Rússia. Mas a Alemanha, no que me diz respeito, é cativa da Rússia, porque está obtendo grande parte de lá. Então devemos proteger a Alemanha, mas eles estão recebendo energia da Rússia.”

Assim, como bem falou o professor de Relações Internacionais Guy Laron, a disputa pela Ucrânia como zona de influência deve ser entendida no contexto da competição entre Estados Unidos e Rússia para servir energia à Europa. “A Rússia e os Estados Unidos têm uma história de décadas de competição pelo mercado de energia europeu. Muitas vezes, eles usaram ideologias ou preocupações de interesse nacional para explicar a causa do atrito. Mas, com a mesma frequência, o verdadeiro motivo por trás de inúmeras crises foi a simples e velha concorrência comercial.”

Nesse sentido, os Estados Unidos precisam isolar a Rússia do resto da Europa para cumprir seus objetivos. Boicotar o Nord Stream 2 foi a tentativa de impedir o fornecimento de gás russo à Europa, para que os produtores de gás norte-americanos tivessem mais espaço e oportunidades de vendas. Da mesma forma, controlar a Ucrânia é controlar a rota de gasoduto que transporta parte do gás russo. Uma Ucrânia próxima ao Ocidente fornece vantagens incomparáveis aos Estados Unidos e ameaça os interesses dos produtores russos. Já uma Ucrânia dominada pelo Kremlin daria controle total à Rússia sobre a própria rota de gasodutos.

Porém, com a invasão violenta da Ucrânia, a Rússia desencadeou o próprio isolamento do Ocidente. Os Estados Unidos poderão ocupar o espaço deixado pelos russos e assim se firmarem como principais fornecedores de gás da região.

Gabriel Dantas Romano é estudante de História da Universidade de São Paulo.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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