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O que o pogrom contra judeus na Alemanha tem a ver com os EUA de Biden e Trump?

No último trimestre de 2021, 330 livros foram classificados como impróprios para crianças; no Tennessee, um pastor organizou a queima de milhares de obras
Guilherme Ribeiro
Diálogos do Sul
Bauru (SP)

Tradução:

Na noite de 9 de novembro de 1938, o regime nazista iniciou um pogrom contra judeus na Alemanha e na Áustria, que se estendeu até o meio dia de 10 de novembro. Um pogrom se constitui basicamente como um ataque organizado a um dado grupo de pessoas e é particularmente associado a ações contra judeus.

Ao longo da noite e da madrugada, judeus foram agredidos, presos e assassinados, enquanto sinagogas, residências, estabelecimentos e orfanatos da comunidade judaica eram saqueados e incendiados. A quantidade de vidro estilhaçado nas ruas, das lojas destruídas, marcaram o ataque como a Noite dos Cristais.

O pogrom em questão foi convocado por Adolf Hitler e Josefh Goebbels, após o diplomata alemão Ernst vom Rath ter sido morto em Paris pelo jovem judeu Herschel Grynszpan, de 17 anos, dois dias antes. É válido mencionar que a ordem determinava que os ataques — que incluiu o bloqueio do trabalho de socorro dos bombeiros — deveriam ocorrer sem que ficasse evidente o envolvimento do governo alemão. Estima-se que mais de mil judeus tenham sido assassinados na Noite dos Cristais, além de sete mil lojas e mil sinagogas arruinadas.

Alemães observam vitrine quebrada de estabelecimento pertencente a judeus, destruído durante a Noite dos Cristais (United States Holocaust Memorial Museum)

Ainda que a comunidade judaica já sofresse violência física antes, o nazismo agia até então sobretudo nos campos político e jurídico. Em 1933, em toda Alemanha, montanhas de livros de escritores contrários ou destoantes do regime foram incendiados em praça pública, numa tentativa de “limpar” a literatura. Vale mencionar que tanto a opinião pública quando intelectuais pouco se manifestaram contra a ação.

Também em 1933, foi iniciado um boicote aos estabelecimentos de judeus, seguido da proibição de frequentarem lugares públicos, como hospitais. Em 1935, surge a “Legislação Racista de Nuremberg”, com normas sobre concessão de cidadania e contra miscigenação e relações de trabalhos entre judeus e não judeus. Já 1938 marca o ano em que crianças são expulsas de escolas e lojas são oficialmente expropriadas.

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Essas e outras medidas graves, mas pontuais, nos ajudam a perceber que o regime nazista agiu de forma gradativa para debilitar a vida dos judeus e expulsá-los da Alemanha. A Noite dos Cristais foi a ocasião em que essa hostilidade exponencial atingiu seu ápice, dando início ao Holocausto, que mataria 6 milhões de judeus na Europa.

Hoje, 2022, menos de cem anos depois, o mundo observa a ascensão da extrema-direita em vários países e nos chama atenção como esse movimento tem ganhado força num território cuja noção de democracia é vendida como exemplo para boa parte do mundo. Nos Estados Unidos, 76% da população acredita que esta mesma democracia está ameaçada, enquanto o filósofo Noam Chomsky considera que o país tem levado um “golpe brando” por forças protofascistas.

No último trimestre de 2021, 330 livros foram classificados como impróprios para crianças; no Tennessee, um pastor organizou a queima de milhares de obras

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Na maioria dos casos, as obras censuradas abordam temáticas como gênero, comunidade LGBTQ+ e racismo sistêmico

Direito ao voto

Desde a derrota de Donald Trump nas urnas em 2020, republicanos trabalham para institucionalizar a deslegitimação do processo eleitoral nos EUA e limitar a participação de minorias. Em estados como Flórida, Arizona, Iowa e Geórgia, leis visam limitar o voto antecipado ou pelos correios — meios populares entre democratas. Legislações que endurecem as regras para apresentação de documentação também foram elaboradas e, apesar de em tese tentarem prevenir fraudes — raras no voto presencial — devem afetar a população negra, especialmente uma parcela de 25% apta a votar que não possui identidade com foto emitida pelo governo.

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Na Geórgia e ao menos mais 13 estados, conservadores conseguiram aprovar leis que permitem suspender e substituir funcionários eleitorais durante o processo de votação. A questão é que o trabalho desses colaboradores é certificar resultados e apontar possíveis irregularidades e, o problema, é que a administração eleitoral é controlada pelos próprios republicanos.

Temas ameaçados — e ameaçadores

O fascismo, a escravidão e o racismo fazem parte da história e do presente da sociedade nos EUA e, para a extrema-direita, obras e estudos que tratem desses temas com atenção são uma ameaça por possivelmente colocarem em xeque a idealização do patriotismo estadunidense.

Com o assassinato de George Floyd, em 2020, muitas instituições reforçaram o ensino sobre discriminação. Não demorou para que surgissem acusações de doutrinação racial e até mesmo de ressentimento contra crianças brancas. Entre as linhas de análise mais atacadas por conservadores está a Teoria Crítica Racial, que trata o racismo como elemento fundador dos EUA.

Em sentido semelhante, leis em exercício e em processo de aprovação buscam impedir a discussão de temas sobre a comunidade LGBTQIA+ em sala de aula, por serem considerados inapropriados para o desenvolvimento dos alunos, como nos estados da Flórida e da Carolina do Sul.

Em caso de descumprimento, professores podem sofrer sanções, como multas e demissão. Há, inclusive, estimulo para que pais denunciem e ajam contra estes profissionais, além de grupos em redes sociais como o Facebook para exposição de casos e oferta de recompensa a quem delatar casos de “violação de direito” ou “desrespeito aos alunos”.

Essas ações retiram a autonomia dos educadores e os colocam em risco com base em subjetividades, além do impacto no ensino e na saúde mental dos alunos, com atenção àqueles que integram minorias atacadas por essas legislações.

As restrições — que buscam delimitar a educação ao ensino de Ciências, História e Educação Cívica — tendem a sair do ambiente juvenil e chegar às universidades. Enquanto em 2021 foram 156 “leis da mordaça” aprovadas ou pré-aprovadas em 39 estados, 12 já se tornaram lei em 10 estados e 113 são atualmente debatidas em 35 dos 50 estados.

Livros censurados

Só no último trimestre de 2021, 330 livros foram classificados como impróprios para crianças por escolas nos EUA, segundo a Associação de Bibliotecas Americanas, o dobro em relação a 2020. Na maioria dos casos, as obras abordam temáticas como gênero, comunidade LGBTQIA+ e racismo sistêmico.

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Matt Krause, republicano do Texas, elaborou uma lista com 850 títulos para a Agência de Educação do estado, 60% com questões LGBTQIA+, além de racismo, educação sexual, abordo e gravidez. A ofensiva, sem surpresa, também caminha na legislação estadunidense. É de autoria do republicano Rob Standridge, senador estadual em Oklahoma, uma proposta para impedir “doutrinação nas escolas” do estado, possibilitar a remoção de livros e aplicar multas.

Há leis semelhantes já aprovadas em 36 estados contra uso em aula de obras com questões sobre racismo sistêmico, que resultaram na proibição ou perseguição de títulos como “O Olho Mais Azul”, da escritora Toni Morrison — vencedora do Nobel da Literatura — e de “Amada”, também de Morrison, que conta os horrores da escravidão nos EUA. “Maus”, de Art Spiegelman, graphic novel considerada uma das mais relevantes obras sobre o nazismo e premiado com o Pulitzer, também foi banido em várias regiões por ser considerado “obsceno”.

Não é de se espantar que, no mês passado, um pastor tenha organizado uma enorme queima de livros, com a participação de dezenas de pessoas, incluindo crianças, na cidade de Nashville, no Tennessee.

O livro “Maus” voltou à lista dos mais vendidos da Amazon após a repercussão da proibição em escolas. Além disso, existe uma ação política nomeada Eleitores do Amanhã, que busca distribuir cópias da obra e de “Amada” nos estados do Texas e da Virgínia, por acreditarem na importância da discussão de suas temáticas para mudar a sociedade.

Ainda assim, até o momento, não se vê uma mobilização massiva, um sentimento de urgência nacional para enfrentar a ofensiva conversadora promovida pela extrema-direita nos EUA. Aos poucos, a hostilidade contra minorias aumenta por meio da violência física e institucionalizada. Resta saber quantas ações, além das que já estão em curso, a sociedade vai assistir passivamente antes que decida se mobilizar — o próprio governo Biden está mais preocupado em promover conflitos e interferências em outras nações. Talvez não acreditem que uma nova Noite dos Cristais bate à porta.

Guilherme Ribeiro é colaborador na Revista Diálogos do Sul.

*Com informações de Revista Fórum, O Globo e DW.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Guilherme Ribeiro Jornalista graduado pela Unesp, estudante de Banco de Dados pela Fatec e colaborador na Revista Diálogos do Sul.

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