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Chacina de Paraisópolis: Expressão cruel e visceral das relações de classe no Brasil

As relações de trabalho sempre foram de exploração e a presença de projetos sociais não resolveu os problemas estruturais da comunidade e seu entorno
patricia-fachin
Revista IHU On-line
Porto Alegre (RS)

Tradução:

O assassinato de nove jovens em Paraisópolis no dia primeiro de dezembro deste ano é resultado da confluência de quatro fatores recorrentes na região: “a histórica violência exercida pelos órgãos repressores do Estado brasileiro contra trabalhadores, negros e moradores de periferias e favelas; o aumento da tensão entre os órgãos repressores do Estado e a favela de Paraisópolis; a criminalização do funk; e o contexto de aumento do autoritarismo no país, que autoriza esse tipo de ação”, diz o sociólogo Tiaraju D’Andrea à IHU On-Line.

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O pesquisador, que já publicou vários estudos sociológicos sobre uma das maiores favelas paulistas, conta, na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a história da ocupação de Paraisópolis, composta majoritariamente por uma população de trabalhadores provenientes do Nordeste, e a relação dos moradores com o bairro vizinho, o Morumbi. 

“Essa relação é sempre tensa. As relações de trabalho sempre foram de exploração e a presença de projetos sociais não resolveu os problemas estruturais de Paraisópolis. Do ponto de vista do entorno rico, o maior problema a ser sanado sempre foi o da segurança. Qualquer assalto na Avenida Giovanni Gronchi fazia o entorno entrar em contato com os órgãos de repressão do Estado, pedindo intervenção na favela”, diz.

Tiaraju D’Andrea também comenta a atual situação social dos moradores de Paraisópolis, afetados tanto pela crise econômica do país quanto pela redução dos investimentos sociais do Estado.

“É comum ver famílias se queixando de cortes de benefícios e programas sociais. O alto nível de desemprego no país e a pauperização da classe trabalhadora também incidiram na população local”, informa.

Tiaraju D’Andrea (Foto: Periferia em Movimento) Tiaraju Pablo D’Andrea é professor da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Campus Zona Leste/Instituto das Cidades, e coordenador do Centro de Estudos Periféricos – CEP. Também é pós-doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, atuou como pesquisador convidado da Université Paris VIII, França (2017-2018) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris, França (2016-2017). É doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela USP. Trabalhou como pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, entre 2001 e 2008, no Centro de Estudos da Metrópole – CEM, entre 2003 e 2009, e na Usina (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado), entre 2006 e 2009.

As relações de trabalho sempre foram de exploração e a presença de projetos sociais não resolveu os problemas estruturais da comunidade e seu entorno

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Protesto na favela de Paraisópolis |

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia o episódio que aconteceu no Baile da 17 em Paraisópolis no dia 1º de dezembro, que culminou com a morte de nove jovens?

Tiaraju Pablo D’Andrea – Paraisópolis é uma expressão visceral das relações de classe no Brasil. O assassinato de nove jovens pode ser entendido como a confluência de quatro fatores: a histórica violência exercida pelos órgãos repressores do Estado brasileiro contra trabalhadores, negros e moradores de periferias e favelas; o aumento da tensão entre os órgãos repressores do Estado e a favela de Paraisópolis; a criminalização do funk; e o contexto de aumento do autoritarismo no país, que autoriza esse tipo de ação.

O que é o Baile da 17 e quem costuma participar dessa festa?

Dada a escassez de equipamentos públicos de cultura e lazer em favelas e periferias da cidade de São Paulo, o baile funk organizado na rua, o chamado fluxo, é a única opção para vastas parcelas da população, fundamentalmente jovem e moradora desses locais. Para além da música dançante, da paquera e da sociabilidade decorrente do encontro, o sucesso desses bailes se deve também ao baixo custo de produção, fato que permite que dele participem os setores mais empobrecidos da população. Muitas vezes, para a existência de um fluxo, basta a criação de um evento nas redes sociais e um carro com som alto ligado em uma rua. A maioria da juventude pobre moradora de periferias e favelas não possui recursos financeiros para pagar a entrada em bares e casas de shows, ou mesmo estádios de futebol, local que outrora era frequentado por esse setor social. Essa população não possui recursos nem para pagar uma passagem de ônibus. À falta de investimento público soma-se a privatização dos espaços. Dessa situação resulta o sucesso dos bailes funks na rua, abertos e públicos.

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O encontro de pessoas pobres e jovens, em sua maioria negros, nunca foi bem visto pelos setores hegemônicos no Brasil. Com o argumento de que o som alto e o suposto uso de entorpecentes estariam incomodando vizinhos, os órgãos repressores do Estado passaram a uma sistemática violência contra os fluxos. Episódios de repressão contra esses fluxos ocorrem todo fim de semana e em várias quebradas da cidade, denotando que a única política pública eficaz para o jovem pobre é a repressão. Cabe notar que bailes funks também ocorrem em bairros ricos e clubes de elite. No entanto, nesses locais não há repressão.

O baile da 17 é um dos bailes mais famosos de São Paulo. Além da população jovem de Paraisópolis, muitos jovens de outras favelas e periferias frequentam o baile. Paraisópolis é uma espécie de centralidade das favelas do entorno, dadas as opções de lazer existentes nessa favela e não existentes em outras.

Pode nos dar um panorama de Paraisópolis e explicar o que a diferencia de outras favelas e bairros periféricos de São Paulo?

A principal característica de Paraisópolis é a sua localização, encravada e cercada por um bairro rico, o Morumbi.

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Paraisópolis nasceu no final da década de 1930, após o loteamento de ruas da antiga fazenda Morumby. Ao que parece, os compradores dos lotes não foram habitar o local, que aos poucos foi sendo ocupado por trabalhadores da construção do Palácio dos Bandeirantes. Com o passar do tempo, o bairro foi crescendo à medida que foram sendo edificadas as mansões e os edifícios do Morumbi. Paraisópolis sempre foi o bolsão de mão de obra barata da região.

O grande salto demográfico de Paraisópolis ocorreu entre as décadas de 1960 e 1980, fundamentalmente pela chegada de migrantes nordestinos de Pernambuco e da Bahia. Nesse momento o local ganhou características de favela.

A década de 1980 foi marcada pelas ameaças de remoção levadas a cabo pelo poder público sempre pressionado pelo entorno rico. Essas ameaças fizeram a população se organizar e fundar em 1983 a União de Moradores do Paraisópolis. É nessa época também que a mobilização dos moradores conquista água e energia elétrica para a favela, dentre outras melhorias básicas.

Relacionada com a imposição do modelo neoliberal no Brasil, a década de 1990 é marcada pela instalação na favela de uma série de ONGs e projetos sociais financiados por empresas privadas nacionais e internacionais. A quantidade de projetos sociais serviu em algum momento para o discurso de que Paraisópolis era uma favela pacificada e boa para se viver. De fato, os moradores de Paraisópolis possuíam mais oportunidades que os moradores de outras favelas. No entanto, essa presença do terceiro setor e de empresas privadas foi também uma forma de esvaziar o potencial político da população local.

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Em paralelo, o discurso que atribuía ser Paraisópolis uma favela-modelo ocultava as relações de exploração e de classe entre a favela e o entorno rico. Muitos moradores de Paraisópolis trabalham nesse entorno como porteiro, jardineiro, cozinheira, babá, empregada doméstica ou na construção civil. Estas relações sempre foram permeadas por baixos salários, informalidade e reproduzem a estrutura de relações herdada da escravidão.

Nos anos 2000 se operaram algumas mudanças na favela e na relação dela com o entorno. A privatização das empresas fornecedoras de saneamento básico e energia elétrica modificou o caráter de atuação destas empresas. Funcionando já não mais a partir da lógica da prestação de serviço, mas sim a partir de uma racionalidade neoliberal, estas empresas visualizaram nos moradores das favelas todo um mercado a ser conquistado. Sob o discurso da regularização, o que se pretendia era a transformação dessa população em cliente. É dessa maneira que observamos a chegada das contas de água e de luz para essa população nessa década, inclusive com alguma tensão na instalação das caixinhas de luz.

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É também nos anos 2000 que começam os grandes projetos de urbanização de Paraisópolis. Esses projetos ameaçaram de remoção parcelas da população local. O que de fato estava em jogo naquele momento histórico era a regularização de uma série de serviços e a entrada dessa população na formalidade. No entanto, para essa população, a entrada na formalidade resultaria na impossibilidade de se manter no local, fato que aumentou a tensão na favela.

Qual é o perfil dos moradores de Paraisópolis e qual é a situação social e de infraestrutura da favela?

A favela é dividida em cinco regiões. O Grotão e o Grotinho são as regiões mais empobrecidas, com a população vivendo em condições dramáticas. Nas outras regiões, a predominância é de trabalhadores de baixa qualificação, trabalhadores do setor de serviços e alguns pequenos comerciantes. Devido ao fato de que Paraisópolis é cercada por um bairro rico, a favela foi obrigada a ser autossuficiente internamente. Desse modo, o comércio é muito pujante no local. Do ponto de vista dos serviços públicos, o local é deficitário.

Nos últimos anos, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – Pnad demonstram que houve um aumento da pobreza em várias regiões do Brasil. Isso tem acontecido em Paraisópolis também?

Sim, isso também ocorreu em Paraisópolis. É comum ver famílias se queixando de cortes de benefícios e programas sociais. O alto nível de desemprego no país e a pauperização da classe trabalhadora também incidiram na população local.

Como os moradores de Paraisópolis se relacionam com o entorno da favela, como o bairro Morumbi e o bairro Jardim Colombo, por exemplo?

Essa relação é sempre tensa. As relações de trabalho sempre foram de exploração e a presença de projetos sociais não resolveu os problemas estruturais de Paraisópolis. Do ponto de vista do entorno rico, o maior problema a ser sanado sempre foi o da segurança. Qualquer assalto na Avenida Giovanni Gronchi fazia o entorno entrar em contato com os órgãos de repressão do Estado, pedindo intervenção na favela.

O seu artigo intitulado “Visões de Paraisópolis: violência, mídia e representações” denuncia uma cobertura feita pela mídia em 2003, a qual associava Paraisópolis à violência. Qual era a situação da favela à época em relação à violência e qual é o quadro hoje?

Creio que nessa época, concomitante à racionalidade neoliberal operada pelas empresas de saneamento básico e de energia, também a criminalidade muda sua forma de atuação. De favela semipacificada, Paraisópolis passa a possuir pontos de tráfico de drogas, operando para atender a demanda do entorno rico. Todas essas modificações atingem a sociabilidade local. Essa tensão latente resulta em um levante popular no ano de 2009. A resposta para esse levante foi a Operação Saturação, levada a cabo de maneira espetacular pelos órgãos de repressão do Estado e que visava fundamentalmente acalmar os moradores do entorno rico.

Alguns dos seus artigos sobre Paraisópolis descrevem o local como uma comunidade sitiada, onde há violência contra os moradores. Pode nos contar sobre a sua experiência como morador de Paraisópolis? Quais foram suas impressões enquanto morador do bairro?

Em Paraisópolis há uma pobreza muito grande; uma população trabalhadora, em sua maioria proveniente do Nordeste brasileiro; uma forte presença de comércio; uma alta densidade demográfica e diversos níveis de violência contra sua população. Existe a violência física, operada pelos órgãos de repressão; existe a violência das relações de trabalho; existe a violência do racismo e do preconceito; existe a violência simbólica da riqueza ostentatória ao lado da pobreza; e existe a violência da invisibilidade, ao não se permitir que as decisões sobre Paraisópolis sejam tomadas pela própria população.

*Patrícia Facchin é jornalista na Revista IHU On-Line

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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