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Chile: ainda há esperança de que vença o "aprovo" à Nova Constituição

Mesmo com todas as dificuldades apresentadas para que o documento seja aprovado, a surpresa e imprevisibilidade sempre fizeram parte da história
Natália Cordeiro
Expresso61
Brasília (DF)

Tradução:

Desde Valparaíso, o clima do céu que se decompõe nublado e frio me recorda o destino dos autoritarismos contrariados.

É que mesmo que os muros da joia do pacífico preservem o orgulho do poeta Pablo Neruda, que pronunciava contentamente sua verdadeira profissão como sendo a de construtor, pois segundo ele não havia nada mais bonito do que ver algo nascendo, fazendo-se diante de nós, o povo chileno ainda não se convenceu sobre a possibilidade de mudanças favoráveis que a nova Constituição pode trazer na vida dos aposentados, crianças, homens e mulheres, povos originários, dissidências sexuais, estudantes, pessoas com deficiência e das responsáveis pelo trabalho do cuidado.

Discordante da aprazente visão de Neruda, a opção pelo Rechazo, ou seja, pela escolha que refuta a beleza de se observar um Estado nascendo diante de nós, ressoa com margem de vitória.

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Vejo um país que esteve em chamas em 2019, mas que agora se mantém em sombra e incógnita, o qual a chamada da urgência para que o peso da noite não continue a se entranhar na institucionalidade, não estabeleceu unanimidade entre o povo.

Diferente do que aconteceu no plebiscito de entrada, em que 78% da população votou pela aprovação de uma nova Constituição, não é mais esse cenário que encontramos no plebiscito de saída, que ocorrerá no próximo dia 4 de setembro.

É que a densidade opressiva dos autoritarismos conseguiu emplacar entre o povo chileno a proliferação de informações falsas, campanhas de terror e teorias apocalípticas sobre os constituintes e o texto constitucional.

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Como a atuação de constituintes de direita foi minoritária na Convenção Constitucional, a estratégia dos setores encarregados de promover a rejeição foi a de descredibilizá-la, frisando que ela dividirá os homens e mulheres chilenos, difundindo a ideia de que essa nova Carta Magna parte de uma esquerda radical não alinhada à social-democracia, tampouco à uma política reformista.

Mesmo sem ter lido um artigo dos que compõe os 388 da Constituição, milhares de eleitores acreditam nas notícias falsas que circulam nos grupos de whatsapp, levando-os a crer que o Chile se transformará em uma Venezuela, que o comunismo dominará as relações políticas, que o direito à moradia será extinto, que perderão suas pensões e que o aborto será legalizado até os 9 meses de gravidez.

O que também ouço e vejo pelas ruas é o temor de que muitas mudanças sejam realizadas ao mesmo tempo. Observa-se a resistência a tantas mudanças concomitantes não apenas nas elites, que temem a perda de seus privilégios, mas também em grupos extremamente subalternizados, que temem o aprofundamento de suas vulnerabilidades.

Mesmo com todas as dificuldades apresentadas para que o documento seja aprovado, a surpresa e imprevisibilidade sempre fizeram parte da história

CE Pioneiro
Há 52 anos, no mesmo dia da votação da Nova Constituição, chilenos elegeram Salvador Allende como presidente da República

Ressentimento

O ressentimento com o estabelecimento de um Estado plurinacional e paritário também se caracteriza como um aspecto de discordância entre os que escolhem dizer não à aprovação da nova Constituição.

A vantagem que a campanha pelo Rechazo apresenta frente ao Apruebo se explica pelo imenso financiamento realizado pelos grupos empresariais, pelo apoio da grande mídia e pelos grupos conservadores. Também pelo centro e pela direita terem se adiantado na campanha do processo constitucional, encampando toda sua estratégia desde o dia seguinte à composição da Convenção. Em contraposição, a campanha pelo apruebo se iniciou mais tardiamente, após a entrega do documento político ao presidente Gabriel Boric, ocorrido há aproximadamente dois meses.

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O descontentamento com o governo Boric também nos dá pistas sobre as razões pelas quais o rechazo aparece liderando as pesquisas de opinião.

Os últimos resultados da pesquisa Pulso Ciudadano apontaram uma queda de 8,5 pontos na aprovação da atual gestão do presidente em relação à consulta anterior. A aprovação do líder chileno estava em 24,3 % durante a segunda quinzena de junho. Enquanto isso, a reprovação do presidente aumentou 6,1 pontos, chegando a 54,6%, enquanto 19,3% não souberam avaliar.

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Apesar dos movimentos sociais estarem nas ruas a todo vapor, preocupados em disseminar o conteúdo do texto constitucional e em desfazer as fake news, alguns imputam à condição climática do inverno a diminuição de fôlego de um ambiente sinérgico em ebulição nas ruas, sucumbindo um pouco o ambiente político do estallido, abrindo assim uma vantagem ao rechazo.

Proibição de pesquisas

Duas semanas antes do referendo, existe a proibição em se publicar novas pesquisas de opinião, mas as últimas conhecidas mostram 37% para a opção aprovação e 47% para rejeição (Painel de Cidadãos); 42% para aprovação e 58% para rejeição (Preto&Branco); 37% para aprovação e 46% para rejeição (Cadem) e 32,9% para aprovação e 45,8% para rejeição (Pulso Ciudadano).

Dificultando ainda mais a situação do apruebo, inesperadamente, o último final de semana de campanha antes do plebiscito figurou com um imenso infortúnio à campanha pela aprovação.

Na noite de sábado (27), em Valparaíso, uma polêmica performance sexual com a utilização de uma bandeira chilena encerrou o ato de um evento promovido pelo prefeito Jorge Sharp e pelas constituintes Alejandra Pérez, Manuel Woldarsky e Tania Madariaga.

Sem a anuência da produção do evento, um grupo artístico chamado Las Indetectabes chocou todo país, causando a exigência de medidas legais tanto dos cidadãos como dos setores políticos. O próprio governo o denunciou ao Ministério Público.

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A poucos dias antes do povo decidir seu destino político, a oposição e os setores do rechazo desfrutaram do episódio para influenciar ainda mais os cidadãos chilenos.

Reação

Uma das primeiras pessoas a reagir ao evento, e que até o momento encontrava-se na espreita, foi o ex-candidato presidencial Antonio Kast.

Em sua conta do twitter, as palavras pronunciadas foram “A Aprovação de Valparaíso, liderada pelo prefeito Jorge Sharp, convida as famílias a abortar o Chile e desonrar nossa bandeira nacional. O Legado da Convenção”.

No tópico, ele ainda acrescentou “espero que a Defensoria e o Subsecretário da Criança tomem medidas para proteger as crianças que testemunharam este ato brutal”.

Na mesma rede social, o prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, também reagiu e condenou o ato “Quero expressar minha absoluta condenação ao que aconteceu hoje em Valparaíso. Não representa de forma alguma o sentido do ato que convocou mais de 3 mil pessoas, nem representa o Aprovo Transformar – muito menos Aprovo. A ação em questão não era conhecida anteriormente”.

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Esse ato irresponsável, realizado isoladamente pelo mencionado grupo artístico, deu margem a cooptação de indecisos para o rechazo e reforçou a imagem de insígnias que o apruebo incansavelmente procura desfazer quando desafia o conservadorismo e constitucionaliza os direitos das dissidências sexuais, por exemplo.

Outro estapafúrdio evento ocorrido no domingo (28) se deu em Santiago, quando uma carruagem conduzida por um apoiador do rechazo atropelou manifestantes ciclistas que defendiam o apruebo.

Mas, foi a performance das Las Indetectables que levou o trend topics do Twitter.

Se no próximo dia 4 vencer o rechazo, opção de grande parte da direita, uma das possibilidades é a de que a Constituição de 1980 continue a vigorar, mas com o indicativo de muitas reformas.

Entretanto, como o povo chileno decidiu no plebiscito de entrada que queria uma nova constituição, e que ela fosse redigida por representantes do povo, o governo do presidente Gabriel Boric já sinalizou que terá que acertar uma fórmula com o Congresso Nacional, significando um impasse e uma derrota pessoal do presidente.

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Dividido aproximadamente entre 50% de parlamentares a favor e 50% contra a aprovação da Constituição, os corredores da casa legislativa sinalizam que será o Parlamento que deverá acordar as regras da continuação para a chamada de um novo processo constituinte.

Eventualidade de rejeição

O secretário geral da presidência, Giorgio Jackson, já anunciou que na eventualidade de rejeição, os próximos constituintes “têm que ser pessoas dedicadas e eleitas para poder elaborar uma nova proposta”. Mas também não se descarta a ideia de que uma nova Constituição seja redigida pelos próprios parlamentares, decisão que vai de encontro à vontade do povo, que votou no plebiscito de entrada pela aprovação de uma Convenção eleita por voto popular.

Caso a cidadania escolha pela aprovação da Constituição, no dia 4 de setembro será reiterada a vitória de um projeto de justiça social e de ampliação democrática ao Chile, em data que ressoa ao ocorrido há 52 anos, quando no mesmo dia os eleitores chilenos elegeram Salvador Allende como presidente da República.

Naquele lendário 4 de setembro de 1970, o discurso de Allende serve de inspiração para a aprovação e esperança de um novo modelo de sociedade que se abria para o Chile, o “caminho feliz para uma vida diferente e melhor”, prometia o presidente. Mesmo com todas as dificuldades apresentadas para que a Constituição seja aprovada, a surpresa e imprevisibilidade sempre fizeram parte da história.

Assim como aquela data representava o ineditismo de um socialista chegar ao poder por um caminho democrático, ainda quero estar confiante que o povo chileno escolherá pelo apruebo, por um caminho inédito que aviva profundamente a potência revolucionária do que um povo que se revoltou e marchou nas ruas para que um Estado social, democrático, plurinacional, intercultural, regional, ecológico e paritário seja colocado em prática, e que os valores da nova Carta sejam intrínsecos e irrenunciáveis de sua vida social.

Natália Cordeiro, mestranda em direito pela UnB. Atualmente em programa de visita, realizando pesquisa de campo no Chile sobre o processo Constituinte e o Plebiscito.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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