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ToggleDepois de poucos meses e muitas – muitíssimas – mortes, alguns aprendizados “técnicos” em relação à propagação do novo coronavírus levaram às orientações básicas gerais: evitar contato, lavar as mãos, o corpo e tudo o quanto for lavável com água e sabão. Usar máscaras, luvas, álcool em gel, água sanitária, substituir todas as atividades presenciais por atividades realizadas por meio digital, testar os casos suspeitos, isolar os casos confirmados em locais e com tratamento adequado, tratar os casos graves nos hospitais.
Que país está preparado para seguir à risca essas orientações razoavelmente simples? Quais desdobramentos delas preocupam mais e se colocam aos tomadores de decisões e ao senso comum como prioritários?
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A resiliência aqui é um luxo. Fechar fronteiras terrestres, marítimas, aéreas, trancar as pessoas em casa em situação de soberania alimentar, habitabilidade, salubridade e segurança, manter uma dinâmica de governo e governança digital, educação digital, lazer digital, produtividade e circulação digital de capital, na era digital – quem diria! – é um luxo ao qual uma parcela muito pequena dos países consegue lidar. Estrutura de sistema de saúde para atender todo mundo também parece ser um luxo. Estrutura sociopolítica para colocar a resiliência objetivamente à frente de partidarismos, disputas e conchavos geopolíticas, esse é dos luxos mais raros. Todo o avanço tecnológico e econômico mundial parece ter contribuído pouco na resiliência mundial em relação às ameaças historicamente mais significativas: a guerra, a fome e a peste.
Mas se, por um lado a resiliência, assim como “bloco” e conceito geral, é um luxo, no caso do coronavírus ele tende a causar um impacto muito significativo e de longo prazo na maioria dos países por onde se espalha. Os níveis e as maneiras como esse impacto se realiza têm inúmeros nuances que escancaram as múltiplas desigualdades que caracterizam o mundo hoje em qualquer escala.
Jornalistas Livres / Foto: Tuane Fernandes
A pandemia colocou em destaque diversos aspectos da desigualdade urbana
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Como e, porque o aumento dos índices de escolaridade e do acesso à informação, no mundo todo, parece ter aprofundado a desigualdade intelectual? Em primeiro lugar, há de se falar em desigualdade intelectual, que não se refere apenas ao nível de escolaridade, mas em capacidade de desenvolver um certo nível de reflexão sobre um aspecto da realidade a partir do acesso a alguns dados e de um conjunto de experiências pessoais com esse determinado aspecto. A partir do momento em que um vírus começa a matar gente em progressão geométrica, em um país rico, que exporta gente e coisas para o mundo todo, as pessoas constroem ou adotam certas narrativas, em detrimento de outras. Isso expressa altos – altíssimos – níveis de desigualdade intelectual no mundo, mesmo em situações de alta escolaridade e renda.
A quantidade de pessoas que optou por não acreditar que o vírus que mata existe e se espalha é gigantesca. Tomadores de decisões, como chefes de Estado, formadores de opinião e amplo apoio popular têm colocado o mundo todo em risco por essa posição que não é estatisticamente irrelevante e não caracteriza um setor uniforme em termos das estratificações socioeconômicas mais comuns. Nos anos recentes tem havido uma preocupação cada vez maior com a influência de notícias que circulam nos meios digitais, em especial as notícias falsas, pois elas se tornaram fatores de muita relevância nas tomadas de importantes como nas eleições.
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As atitudes de combate novo coronavírus deixaram bastante claro que é preciso discutir sobre a eficácia de estratégias contra esse tipo de desinformação, pois as fake news funcionam e o que acabamos vendo são pessoas que escolhem acreditar em notícias que não resistem a um pingo de reflexão racional sobre a realidade. Novamente, incluem-se aqui pessoas com alta escolaridade e renda e que têm facilidade de acesso a informações de qualidade. Essas pessoas colocam o próprio corpo e a própria vida em risco.
Em segundo lugar, há que se repensar a discussão sobre a “era digital” e (re)situar seus aspectos tomando como base a enorme desigualdade que ela, eventualmente, desconsidera. A proposta de manter uma parte significativa das dinâmicas sociais, econômicas e políticas contemporâneas funcionando, com as pessoas em casa, através dos meios digitais pressupõe uma universalização digital que simplesmente não existe. Falta acesso à internet nas casas, falta internet de qualidade, falta acesso à internet “ilimitada”. Na situação atual, as pessoas só conseguem ter acesso às informações da internet em um dado intervalo de tempo e em que velocidade. Faltam equipamentos com processadores, tamanho de tela e resolução adequados. Os adultos desempenhando suas funções produtivas no computador, os jovens fazendo cursos universitários de qualidade por EAD, as crianças fazendo home schooling digital monitorada e a família passeando pelos maiores museus do mundo por meio digital nos momentos de lazer são atividades impossíveis de serem realizadas por imensa parte da população mundial.
Além da distribuição profundamente desigual de acesso digital, a estrutura e a dinâmica das casas da maior parte das pessoas do mundo não é essa. A imagem de todo mundo feliz em casa com casas que se limpam sozinhas, comidas que se fazem sozinhas e crianças e adultos des-corporificados a ponto de ficarem satisfeitos com sua vida toda digital se contrapõe à realidade das casas com mais pessoas que equipamentos digitais, com os moradores de todas as idades em estado de tensão constante, insegurança e medo em relação à pandemia, pessoas tensas com relação à sua sobrevivência econômica, crianças totalmente fora de controle por estarem presas vinte e quatro horas por dia em moradias pequenas. Grande parte das famílias vivem confinadas em casa sempre à espera da carga viral do dia que vai chegar através daqueles integrantes que não têm a opção de ficar em casa.
A Islândia pode fazer uma Constituição a partir de um processo democrático conduzido por meio digital. Quem mais?!? Existe uma distância imensa entre “todo mundo” ter celular com Facebook, Instagram e WhatsApp – e sair “pegando wi-fi” onde dá – e fazer uma aposta na internet como panaceia para os problemas de trabalho lazer, educação e governança que o isolamento devido ao avanço do novo coronavírus vem impondo. Algumas escolas de Ensino Fundamental rapidamente fizeram parcerias com Google Education e lançaram suas plataformas para homeschooling monitorado, aproveitando a pandemia também como “janela de oportunidade” para exibir diferenciais de mercado e testar formas muito mais lucrativas no “negócio” da educação. A maior parte da escolas públicas do mundo não tem acesso à internet em quantidade e qualidade suficientes, não oferecem formação em plataformas digitais, não têm alunos com acesso às condições objetivas e subjetivas necessárias e, em muitíssimos casos, nem mesmo os professores têm. No caso das Universidades, a situação é semelhante: não é possível presumir hoje que todos os alunos de universidades têm em suas casas condições de realizar à distância seus cursos presenciais. Também no caso das universidades, a desigualdade na percepção e no tratamento da educação produz a distorção de transformar a crise da pandemia em uma janela de oportunidade de negócios: forçar a conversão para EAD de formações cuja natureza não permite a formação à distância através da criação de um precedente experimental. Em relação ao trabalho é a mesma lógica: enquanto alguns países estão preocupados em proteger o trabalhador e criar estratégias de segurança, em outros, a pandemia se torna um subterfúgio para redução de direitos e reduções de salários, criando precedentes que, na prática, se tornarão poderosos. Trabalhar de casa e ganhar menos.
A realidade social escancarada pela pandemia
Há um outra desigualdade escancarada pela pandemia que é aquela referente aos recursos ambientais – ela não acontece da mesma forma para todo mundo. Embora há décadas a “questão ambiental” venha sendo debatida, inclusive em sua dimensão universal, fica ainda mais evidente agora que é necessário qualificar melhor essa “universalidade”. A poluição do ar, da água e do solo, bem como os desastres ligados às mudanças climáticas, acontecem no mundo todo. Mas, de repente, vem uma pandemia cujos principais inimigos cotidianos são água e sabão e, só então, é que se pergunta: qual água? Uma parte imensa da população mundial simplesmente não tem água para lavar as mãos. Nem para lavar o resto do corpo. Nem a casa. Nem as roupas. Aquelas pessoas sobre as quais, eventualmente, nos lembramos que não têm água para beber e cozinhar voltam agora e nos devolvem a pergunta sobre uma coisa tão absolutamente básica a ponto de nem ser uma questão em outros lugares: mas com que água lavar as mãos?!?!?
Some-se a isso tudo a desigualdade urbana. A pandemia colocou em destaque diversos aspectos da desigualdade urbana. Em termos geopolíticos, nas suas expressões em relação às fronteiras físicas e simbólicas, à distribuição das forças objetivas de enfrentamento, ao poder de construir e impor narrativas, à capacidade de desenvolver, de produzir medicamentos e de distribuir medicamentos, ao posicionamento dos agentes globais em relação a outros agentes setores que perdem e que ganham com certos aspectos da pandemia, à captura do problema por certos agentes e interesses. A indústria farmacêutica é um exemplo significativo. Quem não se lembra, há poucos anos, do “casamento” de Bayer e Monsanto?
Como é que uma pandemia vira uma também uma questão entre usar um medicamento que existe e tem funcionado e precisar desenvolver um “concorrente”, ainda menos testado, mas muito mais inserido na indústria farmacêutica e nos agentes públicos e privados a ela ligados? E os “critérios” entredentes que definem diferentes níveis e tipos de fechamento ou controle de fronteiras, demonstrando, mais uma vez, limites e particularidades que sempre existiram à circulação global no grande mundo urbano sem fronteiras?
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Lá na outra ponta, a da cidade, a pandemia coloca em destaque as desigualdades de suas expressões e enfrentamentos na estrutura e nas dinâmicas metropolitanas. Entre as pessoas que não podem deixar de trabalhar, que precisam sair de casa por causa de um serviço indispensável, para comprar comida, para visitar um familiar que não pode ser deixado sozinho por muito tempo ou que tem uma demanda de saúde, quais serão expostas a maior carga viral? Quais poderão optar por sair à pé, por não pegar ônibus ou metrô, por ir de bicicleta ou de carro? Para quem, nas metrópoles mundo afora, a casa é um lugar seguro? Quais grandes cidades do mundo estão preparadas para acolher com segurança os moradores em situação de rua? As pessoas que vivem em lares disfuncionais, que são submetidas a abusos e que têm, no ambiente de trabalho e/ou no ambiente escolar, as únicas horas de segurança física e emocional do dia? Quais conjuntos resultantes de política habitacional no mundo oferecem reais condições de uma família conseguir ficar confinada 20, 30, 40 dias?
A desigualdade urbana global contemporânea produz diferentes vulnerabilidades em relação à pandemia. Uma aldeia indígena tem ocupação rarefeita no território e acesso a ar puro, água e sol, mas também não tem estrutura digital, médica e hospitalar como um centro urbano. Se eles se fecham, ficam protegidos. Mas eles são submetidos à indústria do turismo internacional, às fronteiras escancaradas para alguns, são expostos impositivamente ao vírus e são contaminados também. Em sentido amplo, talvez, seria possível dizer que a atual pandemia experimentada é essencialmente urbana. E, com isso, ela, em grande medida, diz respeito à dimensão coletiva da produção do espaço. É assim que a pandemia expõe, com uma crueza nauseante, a fratura estrutural da identidade latino-americana, que é, precisamente, a produção de uma identidade cindida de sua dimensão social.
A fratura estrutural da América Latina
Na América Latina, os processos históricos estabelecidos desde a invasão e dominação por europeus estabeleceram um modelo urbano específico que, diferente de ter sua lógica estabelecida por uma conjuntura sociopolítica, econômica e tecnológica endógena, foi construído como aliança entre os únicos setores poderosos locais – os agentes financeiros e os agrários – com os novos setores poderosos “globais” – os novos agentes financeiros e a burguesia industrial – como forma de, preventivamente, garantir seu poder diante dos processos de urbanização. Essa forma de produzir o mundo urbano na América Latina “de fora” e “para fora” desde sempre criou mecanismos que impediam a construção de uma cultura urbana propriamente dita.
A produção de espaço, historicamente, foi também a produção de identidades sociais e urbanas alijadas na consciência do aspecto mais essencial de qualquer mundo urbano, que é a sua dimensão coletiva. Historicamente, sempre que havia uma possibilidade real de construção de um projeto endógeno de reprodução do espaço ou de construção de uma cultura urbana real, imediatamente essas dinâmicas se tornavam em novas torres de Babel. Os latino-americanos amam e fetichizam a propriedade privada plena individual e absoluta da terra, têm horror a qualquer tipo coletivização, confundem tudo que têm a palavra “social” com “comunismo”, acreditam que a cidade é um conjunto de propriedades individuais independentes, acreditam no valor de troca do imóvel urbano dando origem a si mesmo e acreditam que “livre iniciativa” é não fazer nada por ninguém. E, naturalmente, continuam pobres.
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Trata-se de uma distorção historicamente construída e consolidada. É muito difícil a apropriação, mesmo nos meios especializados, do conceito de função social da propriedade na América Latina. Direito Urbanístico, muitas vezes, é, no fim das contas, Direito Civil aplicado ao espaço urbano. Sendo de essência urbana, a pandemia atual escancara essa fratura na identidade latino-americana, colocando em destaque a dimensão coletiva da produção do espaço urbano e também a impossibilidade de enfrentamento eficaz a partir de um conjunto de ações individuais e de políticas que defendam estes interesses.
Na América Latina, em que todas as desigualdades destacadas anteriormente estão presentes e são profundas, existe ainda esse desafio ligado à cultura urbana. Ele é um desafio difícil porque a vida urbana é cotidiana, e é a delicada relação entre ações individuais e consequências coletivas, no cotidiano, que definem a eficácia maior ou menor de controle da propagação do vírus. Isso serve tanto para cada decisão individual em relação aos comportamentos de risco para si e para os outros quanto para as mobilizações e pressões em relação às estratégias de enfrentamento adotadas na esfera governamental.
Se, até agora, essa cultura urbana fraturada tem feito com que esses países permaneçam “pobres” e dependentes, a pandemia tem mostrado que também os torna suicidas.
Natália Lelis é Urbanista (UFV), Doutora em Geografia (UFMG), Professora de Urbanismo e Planejamento Urbano (UFOP), Consultora em conflitos jurídico-urbanísticos, Membro do Internacional Research Group on Urban Law and Urban Space (IRGLUS), da Rede Iberoamericana Proterra.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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