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Cobervax: o que explica a falta de interesse da mídia pela primeira vacina sem patentes?

Vacina pode proporcionar um esquema de imunização global e impedir o surgimento de novas variantes do coronavírus, mais resistentes e mais contagiosas
Guilherme Ribeiro
Diálogos do Sul Global
Bauru (SP)

Tradução:

Por que não há um clima de entusiasmo em torno da primeira vacina para a covid-19 sem patentes e sem fins lucrativos? Produzida no Texas, nos Estados Unidos, a Cobervax, como foi nomeada, obteve sucesso na fase três dos testes clínicos e foi aprovada para uso emergencial na Índia, que enfrenta alto índice de infecções pela variante Ômicron.

A chegada de uma vacina contra a covid-19, com grande potencial para possibilitar um esquema de vacinação global como a Cobervax, pode impedir o surgimento de novas variantes do coronavírus, mais resistentes e mais contagiosas. Por lógica, uma notícia como essa deveria ter grande interesse e repercussão midiática, mas não é o que vemos. 

Esse silêncio da mídia sobre o tema chama a atenção. De acordo com o advogado e especialista em Inovação e Difusão de Tecnologias Guilherme Aparecido da Silva Maia, isso ocorre porque “ter um bom samaritano abrindo mão de um mercado bilionário não agrada as vozes do capital”. Ele destaca também que uma vacina global esbarra no elemento lucro de mercado para ser consolidada.

Além de ser uma alternativa de código aberto e custeada com recursos de filantropia, outro ponto positivo da Cobervax é que ela é fácil de ser produzida e pode ser transportada em um processo semelhante ao usado para a vacina para Hepatite B, que utiliza parte da proteína do vírus de interesse. Espera-se que essas condições ajudem a inovação a chegar a países com estruturas limitadas de produção e transporte de fármacos.

Segundo Guilherme, a crise provocada pela pandemia demandou a urgência global de desenvolver novas soluções de combate e prevenção à covid-19, e a Cobervax surge adequada a essa realidade. Ele pontua que as normas atuais que protegem as patentes de vacinas foram estruturadas no século 19 e, desde então, levam em conta interesses locais, competitividade entre nações e circulação de dinheiro. Em suma, foram pensadas para proteger interesses econômicos e não interesses humanitários.

“Ninguém está exigindo que acabe a patente das vacinas. O que se espera é um pouco de humanidade em primeiro lugar, pelo menos neste momento delicado da nossa História”, afirma Guilherme. O pesquisador explica que há um conflito entre as demandas de bem comum e o capitalismo das farmacêuticas e biotecnológicas.

Vacina pode proporcionar um esquema de imunização global e impedir o surgimento de novas variantes do coronavírus, mais resistentes e mais contagiosas

Maksim Goncharenok/Pexels
Para 2022, espera-se que mais de um bilhão de doses da Cobervax sejam produzidas.

De um lado da disputa, então coalizões médicas e associações de pacientes no campo da propriedade intelectual e preços das tecnologias médicas, desde HIV/AIDS, bem como sindicatos industriais produtores de vacinas em países em desenvolvimento, como Índia, Brasil, Senegal, dentre outros. Do outro, há entidades como a Organização Mundial do Comércio – criada em 1994 por pressão da indústria farmacêutica e cosmética americana para punir países que não cumpram as normas de proteção intelectual e assim potencializar os lucros da exploração de patentes, incluso de vacinas.

“A OMC alega que a manutenção dos direitos privados de propriedade intelectual é de fundamental importância para garantir que as vacinas continuem sendo produzidas com a mesma qualidade”, aponta Guilherme. Peter Hotez e Maria Helena Botazzi, os pesquisadores à frente dos estudos que deram origem à Cobervax, vão na contramão dessa visão e esperam que a isenção de patentes possibilite que mais países além da Índia possam fabricar o imunizante.

É importante lembrar que as pesquisas para o desenvolvimento de um imunizante, sobretudo em caráter de urgência como as lançadas para enfrentamento à pandemia, necessitam de alto investimento. O que se questiona, no entanto, é o tamanho do lucro exigido pelas farmacêuticas. Um exemplo mencionado por Guilherme é a Sofosbuvir, fármaco para tratamento da Hepatite C lançado globalmente por US$ 84 mil e posteriormente cedido voluntariamente a alguns países por US$ 840. “Podemos perceber que existe sim uma reposição do “esforço” investido na descoberta, porém, existe também muito lucro sobre a comercialização de um medicamento”, Guilherme avalia.

A possibilidade de a Cobervax ser produzida por países em desenvolvimento e com poucos recursos representa a quebra, mesmo que em pequena escala, de um ciclo histórico de dependência em relação aos países ricos – com grande poder de investimento e exportação de inovações e patentes. “Como as vacinas são fruto do desenvolvimento científico e tecnológico, é claro que elas são produzidas primeiro lá, para imunizar primeiro lá, e não cá. Aqui vem depois”, Guilherme observa. No entanto, segundo o especialista, tal dependência poderia não ser o caso do Brasil, caso houvesse interesse dos nossos governantes: “Cadê a vacina brasileira? Porque ela ainda não foi produzida?! Ela é prioridade do Estado brasileiro?!”, questiona.

Quase dois anos depois do início da pandemia, o Brasil caminha para a produção de uma vacina nacional e sem dependência de insumos importados: a Butanvac, do Instituto Butantan. Conforme a organização informa em seu portal, os ensaios clínicos que vão comprovar se a vacina é segura e eficiente já foram autorizados e os testes em humanos serão iniciados em breve.

Assista na TV Diálogos do Sul

O pesquisador Guilherme Maia assinala que a Cobervax deve se juntar a outras iniciativas, como o convênio COVAX Facility –  formado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a GAVI Alliance e a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias – cujo objetivo é garantir a imunização igualitária no mundo. Em fevereiro de 2021, o consórcio foi responsável pelo envio de 600 mil doses de vacina para Gana e 500 mil para Costa do Marfim. Mas muito ainda precisa ser feito: “Essa ação, mesmo significativa, não foi o suficiente, nem naquela época tampouco no futuro próximo, visto que a demanda é gigantesca”, explica Guilherme. Em torno de 100 países nas Américas, Ásia, África e União Europeia dependem de auxílio para imunizar a população.

As pesquisas, produção e negociação de fármacos destinados ao enfrentamento de uma pandemia global demandam novos olhares, bem como as regras de proteção de inovação envolvidas. Conforme menciona Guilherme em seu artigo Novos Contornos Jurídicos Dos Direitos De Propriedade Intelectual Envolvendo As Patentes De Vacinas Contra A Covid-19, escrito em parceria com a pesquisadora Lídia Maria Ribas, a patente de um motor automotivo não deve ser a mesma de uma vacina, tampouco a ponderação de valores humanos.

Segundo o professor, há pedidos à OMS, como da Costa Rica, para licenças voluntárias não apenas de patentes, “mas também de materiais biológicos, planos e modelos de dispositivos médicos, dados de ensaios clínicos, know-how, ou seja, todos os componentes necessários para reproduzir uma tecnologia”.

“Conhecimento é poder. Essa é uma máxima que vem tomando força a cada século que vivemos”, lembra Guilherme. Ele observa que antes o domínio era avaliado pela propriedade de terras e máquinas, os “bens tangíveis”, e que hoje soma-se a isso os “bens intangíveis”, como as patentes, marcas e segredos de negócio: “Esses elementos são responsáveis pela movimentação de bilhões e bilhões de dólares e euros no mundo. Quem chegou ao topo do mundo não quer descer, não é mesmo?!”.

Produzida com recursos de filantropia, a Cobervax se mostrou superior à Covishield, da AstraZeneca, na produção de anticorpos neutralizantes. Além disso, é 90% eficaz contra o coronavírus e pelo menos 80% mais eficaz contra a variante Delta, segundo informou as instituições Texas Children’s Hospital, Houston’s Baylor College e a companhia indiana farmacêutica Biological E. Limited, responsáveis pela criação da Cobervax. Para 2022, espera-se que mais de um bilhão de doses da vacina sejam produzidas.


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Guilherme Ribeiro Jornalista graduado pela Unesp, estudante de Banco de Dados pela Fatec e colaborador na Revista Diálogos do Sul.

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