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ToggleEste artigo pretende lançar luz sobre os desafios particulares colocados pelo surto de Covid-19 à Amazônia brasileira. Os danos já causados pelo histórico de exploração da região foram dramaticamente aumentados e expostos nesta situação.
A falta de um programa global de desenvolvimento abrangente que abrace estratégias de conservação, assistência social, pesquisa e alternativas econômicas significa que essa vasta área foi esquecida em termos de desenvolvimento social e proteção ambiental.
O despreparo resultante de uma situação extrema como a pandemia evidencia a necessidade urgente de uma política inclusiva e uma reversão da política de exclusão do Brasil (que se aplica tanto às classes quanto às regiões). Além disso, a instabilidade política e a retórica negacionista estão agravando a crise global.
Em maio de 2020, o Brasil tornou-se o novo epicentro mundial da pandemia do Coronavírus, por razões ligadas às enormes desigualdades sociais do país, crises políticas e econômicas de longa duração, um serviço de saúde desigualmente distribuído (tanto entre classes como regiões) e a lamentável condução da crise atual pelos representantes do governo federal.
A Amazônia é atualmente a região mais impactada do país. Sendo um vasto bioma caracterizado por sua grande diversidade social e biológica, a Floresta Amazônica tem se mantido vulnerável e marginalizada pelas políticas de sucessivos governos e pela exploração contínua de seus recursos naturais.
Neste presente texto mostramos como a pandemia está afetando a Amazônia brasileira, levando ao colapso dos sistemas de saúde em várias cidades, colocando em risco grupos étnicos indígenas, facilitando o desmatamento de enormes territórios e gerando preocupações crescentes sobre o possível surgimento imprevisível de novas doenças zoonóticas transmissíveis.
Foto: Victor Moriyama / Greenpeace
A Amazônia é atualmente a região mais impactada do país
A Amazônia urbana
Em 16 de junho de 2020, o Brasil contava com 412 252 casos confirmados de Covid-19 e 43 959 mortes confirmadas distribuídas em todo o país. Contudo, é questionável se tais dados forneçam uma imagem precisa da situação.
Como evidenciado no Gráfico 1, a proporção de testes por milhão de habitantes no Brasil é muito pequena, quando comparada com diversos outros países. Em 16 de junho, o número de testes por milhão de habitantes foi de 7.66a (número absoluto de 1.628.482), quantidade muito limitada quando, por exemplo, analisamos os Estados Unidos (76 329, total de 25.259.077), a Alemanha (56 034 total de 4,7 milhões) e a Espanha (95 507, total de 4,8 milhões) (WORLDMETERS, 2020 e STATISTA, 2020).
De fato, a taxa de testes no Brasil é semelhante à de países como Paquistão, Índia e Bangladesh. Outros países latino-americanos como Chile (44 950, total de 858 958) e Peru (41 773, total de 1,4 milhão) tiveram um desempenho muito melhor. A falta de testes resulta em uma subestimação do real impacto do Covid-19 no Brasil e dificulta a ação adequada para combater o vírus.
Os números da Floresta Amazônica, mesmo com grande subnotificação, já indicam uma tendência alarmante, confirmada por observações in situ.
Há também peculiaridades consideráveis entre as cidades amazônicas incluídas no Gráfico 2. A situação é particularmente ruim em Manaus, capital do Amazonas. Com 2,1 milhões de habitantes, Manaus é a maior cidade da região Pan-Amazônica.
A forte e marcante presença industrial, assim como de outros serviços (p. ex., centros de pesquisa, universidades, hospitais, etc.), além de contrastar fortemente com a realidade regional atraiu, e ainda o faz, grande contingente populacional, levando a forte processo migratório regional.
Tal fato levou Manaus a ser a capital estadual que mais cresce no Brasil desde a década de 1970. No entanto, a falta de planejamento adequado para lidar com uma realidade complexa e de rápida mudança, combinada com as baixas rendas e as políticas de bem-estar fracas (em habitação, saúde e saneamento) deixaram muitas seções da população altamente vulneráveis. Essa frágil realidade se reflete agora nos casos de Covid-19.
Até o dia 16 de junho Manaus já contava com mais de 1600 óbitos confirmados por Covid-19, mas esse número contem uma subnotificação considerável. Como capital do Amazonas, estado com a segunda maior taxa de infecção do país, em Manaus localiza-se a maioria dos leitos de UTI da região e suas instalações médicas já estão severamente sobrecarregadas.
A taxa de mortalidade de 638,6 por milhão de habitantes coloca o Amazonas à frente de todos os demais estados brasileiros. Cabe citar que conta com 1442 caos por milhão de habitantes, figurando como segundo estado mais infectado, atrás apenas do Amapá, com 2193 casos por milhão. Nas últimas semanas, estima-se que mais metade das mortes de Covid-19 em Manaus tenha acontecido nas casas das pessoas, levando a enterros em massa em valas comuns.
Tudo isso evidencia a fragilidade dos assentamentos urbanos na Amazônia. Ao contrário de outras cidades maiores, com maior número absoluto de infecções e mortes (como São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife), a maioria das cidades amazônicas possuem população pequena (<50 000) espalhadas por uma vasta área, não está conectada a estradas, depende de sistemas de saúde pobres e tem canais de comunicação limitados, o que dificulta o monitoramento de sua situação.
Paradoxalmente, o afastamento dessas cidades – com um serviço de saúde fraco – pode ser um fator importante na vulnerabilidade de suas populações.
Além de Manaus, 13 das cidades mostradas no Gráfico 2 estão no estado do Amazonas. Parintins, Manacapuru e Itacoatiara estão entre as 4 maiores cidades do estado, com cerca de 100 mil habitantes cada e enfrentam desafios semelhantes aos de Manaus: crescimento rápido, não planejado, falta de capacidade de resposta e certa sobrecarga por atender às necessidades de saúde das localidades vizinhas.
Autazes, Iranduba e Presidente Figueiredo também são exemplos interessantes, pois fazem parte da Região Metropolitana de Manaus (RMM) – a Região Metropolitana de Manaus é constituída por uma estrutura administrativa que compreende a cidade de Manaus, 12 municípios do entorno e também o estado do Amazonas – que, por sua natureza metropolitana, deveriam contar com sistemas e planejamento para lidar com questões comuns, como a prontidão do sistema de saúde.
Devido ao grande número de pessoas que procuram tratamento na RMM, ela pode ter se tornado tanto um epicentro do surto como uma fonte de infecção para o interior.
O caso de cidades menores e mais isoladas, como Maués (a jusante de Manaus), Santo Antônio do Içá e Tabatinga (ambas na fronteira com a Colômbia) também são interessantes nesse sentido. Todas essas cidades não têm conexão rodoviária, dependem inteiramente do transporte fluvial e têm uma alta população indígena.
Esses municípios também se caracterizam por baixa densidade populacional. Maués, por exemplo, tem uma área administrativa de 40 000 km² (pouco menor que o estado do Rio de Janeiro, com 43.780km2) com apenas 10 000 habitantes.
No entanto, embora isoladas e limitadas em seus recursos, essas cidades atuam como polos econômicos e comerciais regionais para comunidades extrativistas ainda mais remotas, populações tradicionais e diferentes povos indígenas. Isso nos leva ao próximo tópico de nossa análise.
Comunidades isoladas e áreas de conservação
Nesta seção, examinamos a resposta ao Covid-19 em áreas remotas, como unidades de conservação e terras indígenas. Consideramos tanto os impactos diretos causados pelo vírus em comunidades isoladas e vulneráveis quanto os impactos indiretos relacionados à diminuição do controle e fiscalização ambientais, que abriram as portas para o desmatamento, invasões de terras, mineração ilegal e conflitos relacionados ao uso da terra.
Populações indígenas com pouco ou nenhum contato com pessoas do exterior são altamente suscetíveis a infecções e novas doenças, especialmente quando contagiosas. De fato, essa vulnerabilidade foi amplamente explorada pelos colonizadores europeus. Durante a invasão portuguesa do Brasil, vários surtos epidêmicos dizimaram as populações de diferentes grupos indígenas.
No século XX (1940-1970), a mesma estratégia de aniquilação foi adotada por colonizadores brasileiros do sul do país e militares. Com memórias disso ainda frescas em suas mentes, muitas comunidades indígenas tentam se isolar ainda mais, indo mais fundo na floresta. Segundo a Fundação Nacional do Índio – Funai (FUNAI, 2020), cerca de 27 grupos indígenas brasileiros vivem em isolamento voluntário, isolados do resto do mundo.
Vale ressaltar que pelo menos um médico que trabalha para a Funai testou positivo para o Covid-19 depois de trabalhar em um território indígena no sudoeste do Amazonas. Os oito Tikunas que estavam em contato com ele estão em quarentena desde 27 de março e não apresentam sintomas fortes.
Alguns grupos indígenas são especialmente vulneráveis como resultado da crescente pressão do setor do agronegócio e de invasões ilegais, enquanto outros têm uma organização e voz mais fortes e podem contar com o apoio de atores nacionais e internacionais e instituições religiosas.
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), mais de 2.390 casos de Covid-19 e 236 mortes foram confirmados entre 93 povos indígenas no Brasil, incluindo a Apurinã, Arapiun, Baniwa, Baré, Borari, Desana, Kokama, Galibi (Kalinã), Hixkaryana, Huni Kuin, Karipuna, Mura, Munduruku, Macuxi, Zoró, Palikur, Sateré-Mawé, Tariano, Tembé, Tikuna, Tupinambá, Tukano, Yanomami e Warao (ISAa, 2020, APIBa, 2020 e COIAB, 2020).
Com 22 mortes registradas de Covid-19 no período de 25 de março a 18 de maio, o povo Kokama tem sido até agora o mais vulnerável ao surto. Os números oficiais de infecções e mortes (independentemente da causa) entre os povos indígenas consideram apenas índios residentes em territórios indígenas.
Aqueles que morrem em assentamentos/hospitais urbanos são, comumente, registrados como “pardos” (pardo). As associações indígenas compreendem isso como uma estratégia para diminuir a representação dos índios nas estatísticas. Aqui complementamos os números de fontes oficiais com as de associações indígenas, como a Coiab e a Apib.
Esses números podem parecer baixos quando vistos do ponto de vista global, mas é importante lembrar que os grupos indígenas brasileiros representam apenas 0,47% da população total (896 mil divididas em mais de 300 etnias) e são extremamente vulneráveis a doenças contagiosas.
A maioria deles não morre sob supervisão médica no hospital, seja porque não há hospitais em áreas rurais ou porque os serviços de saúde existentes já estão sobrecarregados. A organização da sociedade civil Instituto Socioambiental (ISA) compilou um índice dos territórios indígenas mais vulneráveis, muitos dos quais estão localizados em partes isoladas da Amazônia (p. ex., nas fronteiras com Venezuela, Colômbia e Peru).
Aqui é importante citar as Terras Indígenas Yanomami, Vale do Javari, Raposa Serra do Sol e Alto Rio Negro, que constam entra as mais ameaçadas segundo o ISA. No entanto, como mostrado, mesmo esse isolamento não os impede de se infectarem.
Desde o início do surto, os órgãos estaduais e federais de conservação (o ICMBio e diferentes secretarias estaduais) e a Funai têm restringido o acesso às unidades de conservação e terras indígenas para agentes governamentais, pesquisadores e organizações da sociedade civil.
No entanto, no contexto do enfraquecimento global dos sistemas de controle e conservação e das medidas anteriores tomadas pelo atual governo, essa restrição não foi estritamente aplicada. Como mostraremos abaixo, grileiros, madeireiros e garimpeiros não estão em quarentena.
Desmatamento desenfreado
As medidas de isolamento relacionadas ao Covid-19 têm dificultado o controle do desmatamento e proteção de áreas de conservação por órgãos ambientais, levando a um crescente sentimento de impunidade entre diferentes grupos organizados. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento nos primeiros meses deste ano foi consistentemente maior do que no mesmo período do ano passado. Isso é muito preocupante quando consideramos que 2019 foi o pior ano da última década, quando o desmatamento atingiu mais de 10.000 km2.
Essa tendência recente obscurece o grande sucesso que o Brasil teve no combate ao desmatamento da Amazônia, que vinha caindo consistentemente desde 2005. As pressões de desmatamento são particularmente fortes na região do “arco do desmatamento” (ou seja, no sul e leste da Amazônia brasileira – as áreas vermelhas da Figura 1) e em partes dos estados de Roraima e Amapá.
A já existente e maior sensação de impunidade que surgiu com o relaxamento dos controles de desmatamento é explicitada, por exemplo, na demissão do Diretor de Proteção Ambiental do Ibama e de outros dois altos funcionários em 14 de abril de 2020. Eles foram demitidos dois dias depois de uma grande operação contra garimpeiros ilegais e madeireiros que foram pegos operando dentro de diferentes terras indígenas no Pará. A operação teve como objetivo não só paralisar suas atividades, mas também dificultar a propagação da pandemia.
No entanto, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, considerou que tais ações vão contra as diretrizes da atual gestão do ministério. Além disso, no dia 22 de abril, a Funai emitiu a Instrução Normativa nº 9/2020 (FUNAIb, 2020) sobre territórios que ainda não haviam passado por todo o processo de demarcação. Isso permite a regularização de terras privadas dentro de Terras Indígenas ainda não homologadas, um movimento que incentiva abertamente a invasão, ocupação e até mesmo a venda de terras ocupadas.
A recente invasão da Terra Indígena Ituna/Itatá, conforme denunciado pelo Greenpeace Brasil, é um exemplo sombrio de como essa legislação já está aumentando as pressões sobre as terras indígenas. O procedimento de legalização e estabelecimento de uma terra indígena no Brasil pode levar décadas e compreende várias etapas, que não foram concluídas no caso do Ituna/Itatá.
Quase 30% de todo o desmatamento registrado em terras indígenas no Brasil ocorreu em dentro de seus limites e 94% de sua área total foi registrada em mais de 200 lotes privados conforme previsto pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR) para regularização fundiária (ver Imagem 2, GREENPEACE, 2020). Isso significa que a terra poderia ser legalmente reivindicada por grileiros.
A Terra Indígena Ituna/Itatá foi criada para proteger a vida de grupos indígenas isolados (conhecidos como Isolados do Igarapé Ipiaçava). Tais invasões são historicamente controversas, ilegais e processáveis, contudo a influência política dos invasores raramente levam a sua responsabilização.
É importante ressaltar que, devido a 1) o tamanho da Floresta Amazônica, 2) o isolamento dessas áreas (territórios indígenas, unidades de preservação, etc.), e 3) os conflitos políticos que fundamentam muitas invasões, muitas violações dos direitos de terra das populações tradicionais não são processados por lei. Essa impunidade cria um círculo vicioso de conflitos fundiários e violência.
As políticas ambientais do país estão mudando de mais de uma forma durante essa pandemia. No momento da redação do presente texto, era votada a Medida Provisória 910/2019 apelidada de “MP da grilagem”, que permitiria que aqueles que adquiriram ilegalmente terras públicas no período anterior a dezembro de 2018 se tornassem seus proprietários legais. Nas discussões da medida, alguns políticos e entidades do agronegócio argumentam que isso aceleraria o processo de concessão de títulos a pessoas que já estão no terreno.
Como resultado, eles seriam capazes de produzir mais e acessar mais empréstimos. No entanto, para organizações da sociedade civil e outras instituições, a medida recompensaria aqueles que invadiram e desmataram ilegalmente florestas em terras públicas, territórios de povos indígenas e de populações tradicionais. Isso pode ser facilmente percebido como uma anistia do governo federal para garimpeiros ilegais, madeireiros, fazendeiros e especuladores de terras.
A combinação dessa Medida Provisória com a Instrução Normativa nº 9/2020 trará problemas socioambientais sem precedentes para a Amazônia brasileira e seus povos.
Diferentes organizações indígenas têm tomado medidas em resposta às pressões crescentes. Por exemplo, os Waimiri-Atroari (localizados ao norte de Manaus) obrigaram o governo federal a publicar cartas esclarecendo ações, que tiveram impactos adversos sobre as populações indígenas no Brasil.
Inúmeras associações indígenas em todo o país afirmam que as ações da Funai são insuficientes e até mesmo prejudiciais em face ao Covid-19 e já estão elaborando um plano nacional independente indígena contra às ameaças do Coronavírus, recorrendo até mesmo a apelos internacionais.
O povo Guajajara no arco do desmatamento, cujo território tem sido alvo de invasões recentes, adotou uma abordagem mais ativa na defesa de seus direitos fundiários e criou uma força-tarefa chamada Guardiões da Floresta para vigiar suas terras. Confrontos com grileiros já levaram ao assassinato de 49 defensores da floresta, o último dos quais foi assassinado em 31 de março de 2020.
Assim, os impactos da crise covid-19 sobre a natureza podem ser sentidos em todo o mundo, mas são especialmente perigosos para comunidades nativas e tradicionais que já sofrem perseguições que duram séculos. Quando confrontado com a ineficiência e negligência do governo, o surto global assume uma característica genocida que ameaça as últimas populações nativas remanescentes na Terra.
A negação da realidade
O negacionismo científico do governo federal está afetando todos os aspectos acima mencionados do surto. Jair Bolsonaro sempre tentou impor, junto com os seus ministros, um sistema neoliberal agressivo, assim como políticas antiambientais e de perseguição à povos originários e organizações da sociedade civil.
Desde o início de seu mandato, Bolsonaro tem negado repetidamente a validade dos estudos científicos e do valor dos povos originários e de seus conhecimentos ancestrais na defesa da Amazônia. No segundo semestre de seu primeiro ano como presidente (2019), ele criticou o Inpe por divulgar dados sobre as altas taxas de desmatamento ocorridas na Floresta Amazônica durante esse período, alegando que os dados eram imprecisos.
O respeitado diretor e pesquisador do Inpe, Ricardo Galvão, foi posteriormente demitido. No entanto, a realidade por trás dos dados era tangível em São Paulo, a maior cidade da América do Sul. Em 19 de agosto de 2019, a cidade foi tomada pela escuridão, em plena luz do dia, devido à fumaça oriunda dos incêndios no norte do país. A Figura 3 mostra o céu da cidade às 15h.
Os incêndios também foram amplamente noticiados fora do Brasil depois que a NASA divulgou fotos de satélite da região amazônica, com altas densidades de fumaça. Vale ressaltar que São Paulo fica a mais de 1.500 km da Amazônia.
Mesmo diante do Covid-19, Bolsonaro insiste em questionar os perigos da pandemia e as medidas tomadas para combatê-la, incluindo as adotadas pelos governadores estaduais e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso está afetando o comportamento da população. As críticas de Bolsonaro aos apelos pelo distanciamento social levaram a uma ampla desobediência pública a essas medidas.
Um estudo que reuniu dados de localização de 60 milhões de telefones no Brasil no dia seguinte a um dos discursos televisionados de Bolsonaro mostrou um aumento significativo na circulação de pessoas, especialmente nas regiões que o apoiam fortemente, incluindo a cidade de Manaus. Brasileiros para os quais suas declarações são referência estão optando por desrespeitar as regras de distanciamento social, contribuindo ainda mais para a instabilidade política e a disseminação do vírus.
Tais políticas tendenciosas e opiniões conflitantes sobre as medidas do Covid-19 não se restringem ao Brasil. Em alguns países, as pessoas estão tomando as ruas para exigir um retorno ao antigo normal. Movimentos de extrema direita estão se agarrando a esses protestos, além de negar a gravidade da crise e até mesmo a existência do vírus.
Tal negacionismo está alimentando uma sensação de impunidade em relação ao desmatamento, à mineração ilegal e à grilagem de terras, minando os esforços do Brasil para combater tanto o surto quanto a perda da Floresta Amazônica.
O desmatamento da Floresta Amazônica pode dar origem a outra onda de epidemias. De acordo com o professor Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), muitos patógenos passaram de animais selvagens para humanos (por exemplo, HIV e Covid-19) e a Amazônia, com sua vasta biodiversidade, pode ser fonte de novos surtos pandêmicos.
Isso é ainda mais preocupante quando consideramos o desmatamento desenfreado descrito acima, o que poderia aproximar as populações humanas da vida selvagem e aumentar o consumo de animais caçados. Esse novo cenário torna a conservação da Floresta Amazônica ainda mais urgente.
Algumas propostas para solucionar o problema
Acreditamos que as seguintes medidas precisam ser tomadas em resposta ao surto atual assim como para fortalecer a Amazônia brasileira a longo prazo.
- A reorganização do sistema de saúde brasileiro para atender a uma parcela maior da população, especialmente as mais pobres e em áreas remotas;
- Implantação de políticas de desenvolvimento que valorizam a Amazônia não apenas como fonte de recursos naturais, mas como berço de inovações de ponta, que permitam uma descentralização econômica e protagonismo regional da Amazônia.
- Regularização fundiária na Amazônia brasileira e aplicação da lei contra invasões e violência contra comunidades tradicionais e grupos indígenas (além do fim das ações judiciais destinadas à anistia de grileiros ou à comercialização de terras indígenas);
- Inclusão de grupos tradicionais na formulação de políticas públicas, a fim de garantir que suas necessidades e perspectivas estejam sendo consideradas;
- Reconhecimento da importância do conhecimento científico no tocante à pandemia do Coronavírus e desenvolvimento de políticas de conservação e desenvolvimento sólidas para a Amazônia.
Na ausência de mudanças reais que levem a um desenvolvimento mais equitativo entre as regiões brasileiras e um reconhecimento do valor da Amazônia e de seu povo, textos como este continuarão a traçar a progressiva destruição do bioma amazônico.
Esperamos que o sofrimento atual seja sublimado em esforços de conservação e desenvolvimento, e que o Covid-19 seja um divisor de águas entre o negacionismo científico e a perseguição étnica, por um lado, e uma sociedade global inclusiva e respeitosa, por outro.
Artur Sgambatti Monteiro tem atuado em diferentes área da gestão ambiental, desde o monitoramento e remediação de derramamentos de óleo, até arquitetura sustentável, planejamento urbano, planejamento territorial e conflitos socioambientais. Atualmente é bolsista do IASS-Potsdam (Institute for Advanced Sustainability Studies), onde analisa a cooperação internacional na conservação da Amazônia brasileira com foco em acordos internacionais, alternativas econômicas e resiliência da sociedade civil. Antes disso, trabalhou em políticas de uso da terra na Floresta Amazônica, bem como em políticas de desenvolvimento urbano, manejo de água e planos de conservação de espécies ameaçadas na Fundação Vitória Amazônica, em Manaus. É Mestre em Urbanismo (UFRJ) e Bacharel em Gestão Ambiental (USP) e membro da Rede BrCidades.
Lucas Lima dos Santos é doutorando atualmente em antropologia social pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Possui doutorado em Culturas e Identidades Brasileiras (USP) e graduação em Biologia (UNESP). Pesquisador experiente nas áreas de biologia e antropologia, Lucas Lima tem realizado projetos de pesquisa com povos tradicionais e indígenas no litoral brasileiro e na Floresta Amazônica. Passou grande parte de sua carreira até agora analisando as relações entre políticas ambientais e culturas tradicionais. Lucas também trabalhou com a instituição ambiental do Governo do Estado de São Paulo para desenvolver planos de gestão para áreas de conservação.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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