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ToggleDurante Revolução Russa, Kerensky procurou fazer uma acomodação de classes, mas foi em Lênin que o povo apostou para derrotar os czares
Desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, o Brasil foi submetido ao neoliberalismo sem freios do vice Michel Temer, seguido do ministro Paulo Guedes, que implantou seus princípios à vontade, levando o País à ruína.
Nesta reportagem, o professor de Geopolítica André Martin, da USP, mostra uma identidade entre Brasil de hoje e Rússia revolucionária de 1917, que podem ser úteis nessa encruzilhada.
Martin implode dogmas do neoliberalismo e aponta opções de desenvolvimento, como a criação de uma rede nacional estatal de trens rápidos de passageiros.
Pode até parecer estranho, mas é possível estabelecer um paralelismo entre a situação do Brasil de março de 2022 e a Rússia, em fevereiro de 1917. As Forças Armadas do Brasil foram fragorosamente derrotadas na batalha contra a Covid-19. Viram-se humilhadas pelo vírus — pontua o professor — da mesma forma como as tropas do governo provisório de Alexander Kerensky, o moderado Ministro da Guerra e Primeiro-Ministro russo em 1917.
Em fevereiro, os revolucionários aboliram o regime do czar Nicolau II, mas só em outubro começaram a implantar o socialismo. Eles tiveram de abandonar o campo de batalha derrotados pelos alemães na Primeira Guerra Mundial. Isso gerou uma inquietação muito grande tanto na Rússia, como hoje ocorre no Brasil.
“O bolsonarismo deixa um legado de inquietação muito grande nos quartéis”, interpreta André Martin, autor da correlação entre os fatos, tão distantes na linha do tempo. Ele ressalta a revolta popular diante da situação de fome, descalabro e falta de perspectivas tanto do atual governo do Brasil quanto da Rússia de então.
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Em sua avaliação, o regime implantado por Bolsonaro está deixando muito nítido o tipo de aliança que tem emperrado o desenvolvimento brasileiro: latifúndio, imperialismo e capital financeiro, que por sua vez subordina a mídia. Esse conjunto de fatores é que estaria sustentando o bolsonarismo.
Para o estudioso, tais fatores estariam deixando as coisas mais evidentes para o brasileiro. As eleições marcadas exatamente para o ano da comemoração do bicentenário da independência tornam a escolha ainda mais crucial: independência ou, literalmente, morte.
Frei Betto: No bicentenário da independência do Brasil, teremos razões para comemorar?
Mas voltemos à Rússia. Em 1917, aconteceu a revolução de fevereiro contra a política do czar. Com sua política moderada, Kerensky liderava o Parlamento e procurava fazer uma acomodação de classes. Essa seria a ideia principal de sua política. Já Vladimir Lenin pregava o contrário, o momento era revolucionário: “O proletariado, unido aos camponeses, deveria forçar a derrubada do poder do czar”, recorda o professor.
Captura de tela – TV Câmara São Paulo / YouTube
Na visão do professor André Martin, ricaços querem privatizar a riqueza pública, mas não querem estatizar a riqueza privada
“Perdemos a Guerra, Ganhamos a Revolução”
Isso significaria a substituição da aliança da aristocracia e burguesia, pela aliança de operários com camponeses. Em fevereiro isso parecia improvável de acontecer. Mas em outubro aconteceu. E Lenin foi o artífice principal disso: “Ele percebeu a vontade revolucionária do povo russo” e interpretou o estudioso. As condições de miséria agravadas e a necessidade de distribuir a riqueza, de forma revolucionária, eram urgentes. O líder bolchevique teria aproveitado a derrota na guerra contra a Alemanha e a perda de territórios.
Muitos cobraram dele: “Lenin, estamos perdendo territórios”. Ao que ele respondeu: “perdemos a guerra, mas ganhamos a revolução”. Para André Martin, era imperioso fazer a paz com a Alemanha para poder transformar a Rússia. Esse foi o momento em que eles fizeram a revolução de 1917.
A comparação que o professor faz com a atualidade parte da pergunta: quem assolou o Brasil nos últimos anos? O vírus. A nação saiu derrotada dessa guerra: “A política do Brasil foi desastrosa. Assim como o czar não soube armar seu exército; governo e exército nacional erraram muito na guerra ao vírus no Brasil.
General Pazuello e seus 700 mil mortos
O general Pazuello assumiu o Ministério da Saúde e deixou um saldo de mais de 700 mil mortos. Isso vai ser cobrado sim, não pode passar desapercebido”. Ele vê situação de crise semelhante: políticas econômicas desastrosas, crise moral, crise em todos os níveis, sempre ligados à falta de capacidade de liderança da nação, como se viu na Rússia de 1917.
Nesse sentido é enfático. Sustenta haver condições no Brasil, sim, para uma mudança mais profunda, radical, chegando à raiz do problema: “Basta canalizar todo esse descontentamento, a raiva que o povo tem desse governo. Isso tem de ser esclarecido.
Para ele, é preciso usar o espaço da campanha política para tirar a venda dos olhos do povo: “se conseguirmos unir o povo brasileiro, poderemos ter uma mudança revolucionária. O problema é que falar nisso deixa as pessoas com medo. Mudança revolucionária é um despertar”.
Desvendar a Verdade
É justamente nesse sentido que o especialista em geopolítica questiona a escolha do ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin como vice na chapa do PT. Seria esse o caminho da independência?
Eis o ponto central da questão: “Lula pode ser o Kerensky ou Lenin nesta encruzilhada: “Se o partido escolher alguém mais reformista, conservador, vamos repetir um pouco do que já estava. É melhor do que o bolsonarismo? É. Mas acho insuficiente para o que o País está precisando”.
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A sinalização oposta poderia trazer alguém mais à esquerda para vice. “Há necessidade de ruptura com o neoliberalismo e o imperialismo. Isso em algum momento tem que ficar evidente ao povo. Não se pode enfrentar uma campanha com Bolsonaro e Moro omitindo a ação do imperialismo. “Foi o que levou o próprio Lula à prisão”, aponta.
Em sua avaliação, é hora de o povo brasileiro despertar para os 500 anos de exploração — e para quem explora o País agora, quem impede seu crescimento. Esta seria a hora de “desvendar a vínculo de Sérgio Moro com a CIA, o passa-moleque que foi a relação dos EUA com o Brasil nos últimos anos. Isso tudo tem de ficar claro para a população”, assegura.
De acordo com ele, a população brasileira pode fazer a revolução de maneira totalmente tranquila, pacífica, apenas tomando consciência da sua própria condição. Por isso Lula estaria em tal encruzilhada. Junto com o PT, Lula poderia pegar um caminho mais ousado — mesmo que pareça eleitoralmente mais difícil — mas será mais importante para reconstruir o Brasil. Ou então segue-se essa linha, que faz muitas concessões ao neoliberalismo. O ponto crucial para o desenvolvimento do país e a elevação do padrão de vida da população dependem dessa opção.
Armadilhas Neoliberais
Pelo visto e lido até agora pelo professor, nas manifestações de Lula e da cúpula do PT, há uma tentativa de deixar o mercado menos nervoso. Acalmar os mercados, acalmar o imperialismo, acalmar o capital financeiro…
Para ele, é fora de propósito, por exemplo, a ideia — até de gente supostamente de esquerda — segundo a qual o discurso do preservacionismo nas áreas de plantio das potências agrícolas mundiais é contra o agronegócio do Brasil: “Isso é bobagem, eles querem que sejamos produtores de commodities. Grande estupidez, eles trazem a biotecnologia, fazem os medicamentos”. Ao Brasil restaria o papel de exportar cada vez mais produtos menos elaborados, como ferro bruto, soja em grão, nem óleo chega a ser produzido, petróleo bruto. A produção é cada vez mais primária.
Há de se perguntar, por quê? Segundo Martin, isso é fruto da aliança que se estabeleceu do latifúndio, que é o imperialismo, o capital financeiro e a mídia. O povo brasileiro tem de entender isso, insiste o docente. E quando a população despertar vai se revoltar. “Por isso digo: Lula pode escolher o caminho de Alexander Kerensky, o moderado ministro da Guerra e Primeiro-Ministro russo, derrotado na guerra contra a Alemanha — ou o de Lenin”. Muita gente de esquerda se pergunta se há, realmente, condições objetivas para trilhar esse caminho capaz de permitir o desenvolvimento econômico e social do país.
“Temos as condições objetivas, o que falta são as subjetivas”, responde André, para quem, infelizmente, as lideranças políticas não estão com essa lucidez, mesmo os intelectuais estão muito acomodados, achando que não há outro caminho, a não ser repetir a armadilha da aliança com o neoliberalismo.
Não podemos reconduzir o País mais uma vez a continuar com políticas neoliberais: “O Brasil precisa de um Plano Marshall (ajuda econômica dos EUA para reconstrução da Europa após o final da Segunda Guerra Mundial) que desta vez poderia vir através dos Brics”, define o professor.
Como? Captando investimentos chineses em projetos de ponta. Projetos capazes de induzir o crescimento econômico. Para resolver carências do País, como a introdução de trens rápidos de passageiros.
Malha de Trens Rápidos
Para Martin, o futuro é esse: “Nós não temos uma linha de trem rápido de passageiros no Brasil, aqui não se anda de trem. Isso está nos atrasando em relação ao resto do mundo”. Quem financiaria? O Estado. É necessário abandonar essa “ideia estúpida de que o Estado não pode ser empresário”. Em alguns setores só o Estado pode ser empresário, garante.
O tema é complexo. A malha foi privatizada, inclusive com o objetivo de introduzir o trem de passageiros. “Mas não foi o que aconteceu. Empresas privadas estão ganhando muito dinheiro movimentando toneladas de minério e soja, sobretudo para exportação”, diz ele, ao ressaltar que empresários aumentam o peso da carga nos vagões — o que compromete a durabilidade dos trilhos e dormentes das linhas. Ou seja, a ‘benéfica’ iniciativa privada procura ganhar o lucro máximo no menor tempo, sem se preocupar com o longo prazo.
Por que ofender os jericos? Tendo ferrovias desenvolvidas, Brasil optou por rodovias
Um Plano Ferroviário Nacional com rede regional — norte, nordeste e centro-oeste e sudeste com trens rápidos – indica o docente. Seria o desafogo para a economia nacional, segue ele, gerando empregos de qualidade e colocando o Brasil em outro patamar de engenharia e progresso material.
“Agora, se for para ficar nesse lenga-lenga de só de exportar grãos e minérios, então não precisa”, insurge-se. Na lógica vigente, o trem não precisa ser rápido, para carga, pode ser lento. O que importa são muitos vagões e pouca locomotiva. Esse é o pensamento dominante no Brasil. Para ele, se a gente não tiver clareza do que gostaríamos de ser no futuro não poderemos ter nenhum projeto.
Bloco Nacional Popular
Na visão do professor da USP, a privatização a qualquer custo tem respaldo nos ricaços: eles querem privatizar a riqueza pública, mas não querem estatizar a riqueza privada. Por isso, não querem pagar imposto, só querem ganhar. “O Brasil vai explodir desse jeito. Não há condições de se continuar assim”. Ele sustenta que uma “reforma meia sola” — depois do desastre desses anos Bolsonaro e Temer, que levaram o Brasil a um atraso de décadas — não resolverá o problema do País. Diante da atual situação não é com ações acomodatícias que se resolverá algo. “Pelo contrário, temos de aguentar, virar o jogo”, assegura.
A história segundo a qual, quando a situação está muito ruim o melhor é se acomodar com os inimigos de ontem, não tem sentido pra ele: “Raciocínio perigoso. Se a situação está feia, não dá pra se acomodar com os inimigos. Precisamos nos unir em um bloco – nacional popular – que realmente lute para assumir o poder integralmente. Hoje nenhum partido defende o nacional desenvolvimentismo, observa André, já que o programa neoliberal está nas duas possibilidades, tanto no programa de Lula quanto no de Bolsonaro. A única polarização seria um programa antiliberal, que até agora não apareceu.
Em sua lógica, o que os grupos políticos devem fazer é entender a necessidade do povo. Aquele que conseguir entender e vocalizar melhor será a liderança desse povo. André Martin não vê no horizonte político de agora ninguém apresentar essa força. Ela existiria fragmentada em vários partidos, mas nenhum deles estaria assumindo esse compromisso.
Estatais Estratégicas
Ele acompanha os movimentos das federações partidárias. Quem se afina com um programa de abandono do neoliberalismo deveria, por exemplo, ser explicitamente contra a privatização da Eletrobras. “Mas a gente só vê os partidos discutindo alianças de olho na eleição, quanto o ibope aumenta”.
O Brasil tinha, e precisa ter de volta, cinco ou seis estatais estratégicas, define Martin, ao explicar que o mercado não pode ser segmentado por outra empresa privada. Como no caso da Eletrobras, eventualmente privada, vender energia para outra empresa privada: “Não! A eletricidade tem de ser estatal para todas as empresas usufruírem de seus serviços. Ter energia abundante e barata produzida pelo Estado é garantia de lucro para toda empresa privada”.
Outra estatal que se precisa é para os satélites – como era a Embratel, hoje privatizada, prossegue ele. Isso seria estratégico, através de uma empresa estatal. Da mesma forma, o subsolo do país seria sagrado, do povo brasileiro.
“A Vale do Rio Doce jamais poderia ter sido privatizada. Quanto mais democrático for o controle do Estado brasileiro, mais ele responde ao desejo da população”. E lembra que nunca houve um acidente enquanto a empresa era do Estado.
Tais empresas, assim como a Petrobrás, são estratégicas para o desenvolvimento nacional. Elas não podem ficar na mão de acionistas: “Isso já é uma privatização por dentro: está errado. Tem de haver controle e planejamento estatais. Cinco, seis empresas”, sustenta ele, ao perguntar: “que empresário brasileiro seria prejudicado se isso acontecesse? Só aqueles que estão ganhando os tubos exportando minério bruto de ferro, óleo sem refino do Pré-Sal, os especuladores que abocanharam esse negócio”. Mas é tão pouca gente, em prejuízo de todo o país. Isso precisaria ser revisto.
André tem a convicção de que candidatos que apresentem tal proposta terão apoio e vão se eleger. “Infelizmente, o que temos é a acomodação: trabalhadores pelo Lula e empresários pelo Alckmin. Isso vai dar no quê”?, questiona.
Amaro Augusto Dornelles é colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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