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ToggleHá alguns dias o Presidente da República informou à cidadania a prorrogação do Estado de Emergência disposto no Peru desde 14 de março passado, e assinalou um novo limite para sua culminação; 30 de junho próximo.
A circunstância permite esboçar uma análise da estratégia seguida diante desta crise, na ideia não de encontrar responsáveis pessoais do que ocorre, mas sim apontar critérios que permitam entender a natureza dos fenômenos que hoje sobrecarregam o país. Há que fazê-lo, conscientes de que é um risco.
O fenômeno ainda não está terminado. Está em processo, e este é ainda incerto.
Reprodução: Winkiemedia
Martín Vizcarra, presidente do Peru.
Para melhor compreensão é indispensável aludir a alguns fatos vinculados à nossa história recente. Vejamos:
O antecedente histórico da crise
Foi depois da queda do governo de Juan Velasco Alvarado – agosto de 1975 – que se começou a falar no Peru na necessidade de “reinserir o país no sistema financeiro internacional”. O primeiro foi o Plano Barúa e depois o Plano Piazza, concebidos ambos na sombra por Javier Silva Ruete, homem muito ligado ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial, sob o mando do novo regime a carga de Francisco Morales Bermúdez.
Esses programas propuseram as primeira medidas destinadas a abandonar o caminho patriótico percorrido a partir de 1968 e retomar o velho modelo de dependência que nos atava ao grande capital.
A mudança não se fez sem existência operária. Os trabalhadores e o povo travaram duras lutas por preservar as transformações revolucionárias do processo anterior. As Paralisações Nacionais de 1977 e 1978 e as posteriores de 1981 e 1984 foram expressão do descontentamento popular diante do novo rumo traçado por aqueles que assumiram o controle do Estado nessa etapa da vida peruana.
Sem poder enfrentar as ações de massa desenvolvidas no país, os governos de Belaunde e Garcia, entre 1980 e 1990 executaram modificações de pouca incidência na estrutura produtiva nacional, embora apontasse, no aspecto fundamental, para restabelecer o poder dos Partidos Tradicionais e da velha oligarquia, assim como descarregar a crise sobre os ombros dos trabalhadores. Para isso, amargaram mudanças na legislação do trabalho que contribuíram a prejudicar o papel dos sindicatos.
A ditadura fujimorista
Foi a partir de 1990 que se colocou no país o que seria uma espécie de virada definitiva para o Grande Capital. Isto foi esboçado claramente no programa “reativador” de agosto de 1990 que foi saudado pelo FMI, instigador do choque e que recomendara ao Peru a medida para “se pôr de acordo” com as exigências do sistema financeiro internacional.
O Golpe de 5 de abril fez o resto. Por sua ação, e a partir da Constituição de 1993 imposta mediante um referendo fraudado, o governo impôs finalmente as receitas neoliberais idealizados pelos “Chicago boys” e que haviam tido seu batismo na região graças à ditadura assassina de Augusto Pinochet no Chile.
É preciso recordar que essa “mudança” aconteceu em um cenário nacional convulso. Foram esses os “anos da violência”, nos quais se travou uma verdadeira guerra de extermínio contra as populações mais indefesas da vida nacional, sobretudo no interior do país. O pretexto foi o “combate ao terrorismo” que, suspeitosamente apareceu nesse período, e permitiu que a classe dominante a usara à vontade para tornar fascistas as Forças Armadas e reprimir cruelmente a cidadania.
Nesse período tampouco esteve ausente a luta dos trabalhadores e o povo para impedir a ação reacionária. Os sindicatos foram golpeados e uma onda de extermínio se estendeu no campo e nas cidades, semeando confusão e medo em amplos setores. O assassinato de líderes populares como María Elena Moyano e Pascuala Rosado, e de dirigentes sindicais como Pedro Huilca Tecse, foi a expressão mais selvagem de um período convulso em que o governo buscou esmagar a qualquer preço a resistência popular.
Essa ofensiva permitiu que aplicasse em toda a sua extensão o modelo neoliberal.
Os traços do neoliberalismo
Como se sabe, o neoliberalismo chegou ao Peru quando se quis imitar a supostamente exitosa “experiência chilena”. No país do sul, depois do assassinato do Presidente Allende e do golpe de setembro de 1973, os militares mais reacionários, liderados por Augusto Pinochet, impuseram o neoliberalismo tomado de Milton Freedman e dos economistas de Chicago.
Partindo de teorias vinculadas à defesa do Estado vigente, segundo Pierre Bourdieu, o neoliberalismo buscou “A mundialização dos mercados financeiros, unida ao progresso das técnicas de informação” para assegurar “uma mobilidade sem precedentes do capital e dar aos investidores, preocupados com a rentabilidade a curto prazo de seus investimentos, a possibilidade de comparar de maneira permanente a rentabilidade das maiores empresas e de sancionar em consequênci os fracassos relativos”.
Aqui, o “Modelo” chegou com características próprias. Quatro foram seus traços distintivos, o que se prologaram até a nosso tempo.
O primeiro tem que ver com o endeusamento do Mercado ao qual se considerou a pedra angular da economia e da vida social. Segundo o critério dos ministros de economia de então, Carlos Boloña e J.D. Camet, o Mercado devia regular tudo: as transações comerciais, os contratos, os preços, os salários, a relações de trabalho, a saúde, a educação, os serviços indispensáveis, o comportamento do Estado.
O que se adequava aos “lei do Mercado” era aplicável. E o que discordava delas, ou assinalava um roteiro diferente, era chamado simplesmente de “populista” ou “socializante”, e se deixava de lado, sem qualquer consideração. Esta noção foi associada com a mudança do processo produtivo. Considerou-se que o país não necessitava se industrializar, nem produzir, Poderia viver do turismo e da prestação de serviços, motivo pelo qual o comércio adquiriu maior dimensão em detrimento da produção fabril e mesmo da agricultura.
O segundo, foi o enfraquecimento do papel do Estado na vida nacional. A Constituição de 1993 reconheceu ao Estado um papel “subsidiário”. Não podia participar na economia, nem ter empresas, nem estimular investimentos, nem copar mercados. Nessa linha, foram vendidas muitas empresas públicas e outras finalmente se fizeram quebrar, como foi o caso de Aero Peru ou da Corporação Peruana de Vapores, ou inclusive a chamada Banca de Fomento. O Estado ficou relegado a sua mínima expressão, e seus recursos financeiros viram-se ostensivamente debilitados.
Como consequência desta política, quase um milhão de trabalhadores do setor produtivo e financeiro perderam seus empregos ao mesmo tempo que muitas empresas industriais faliram. Os despedidos não tiveram alternativa senão criar seus próprios postos de trabalho, ou trabalhar como taxistas. Assim cresceu de modo desorbitado o comércio informal, e o parque automotor excedeu suas possibilidade operativas.
O terceiro traço foi o estímulo ao investimento privado. A ideia não foi investir no que fosse necessário para o desenvolvimento ou para o progresso, mas sim no que fosse rentável, de acordo com as leis do mercado. Privilegiou-se então o consumismo, abriram-se galerias, grandes lojas, hotéis, restaurantes luxuosos, florescentes lojas comerciais; estimulou-se o uso de artigos suntuários, a roupa de moda, a calçado escolhido, a informática e a comunicação por satélite fazendo conceber às pessoas que isso significava progresso e desenvolvimento. Para esse efeito o uso dos meios de comunicação foi vital.
Com a finalidade de garantir o papel do investimento privado, o Estado outorgou, ou avalizou créditos, empréstimos e garantias ante os organismos financeiros internacionais; ao mesmo tempo que promoveu o investimento privado de consórcios multinacionais. Para isso, leiloou os recursos públicos e outorgou facilidades excepcionais às empresas mineradoras, o que adicionalmente, afetou os recursos hídricos e a biodiversidade.
O quarto foi considerar absolutamente marginal o papel dos trabalhadores cujos direitos básicos foram violados. Sem estabilidade no emprego, com salários paupérrimos, sem direito à aposentadoria e exauridos pelo modelo importado do Chile, as trabalhadores tiveram que aceitar contratos a prazo fixo, empregos temporários e precários; e até a ampliação das jornadas de trabalho sem pagamento adicional. O que constituía um paraíso para os capitalistas, era simplesmente um inferno para os trabalhadores.
O segmento mais afetado foi sem dúvida o dos trabalhadores aposentados. De fato aqueles que chegaram a essa situação passaram a receber rendas minúsculas, incompatíveis com a dignidade humana; mas o que se incorporaram à PEA como força produtiva, perderam a possibilidade de alcançar esse status porque, graças ao seu trabalho eventual e seus contratos “a prazo fixo”, perderam a possibilidade de acumular tempo de serviço.
Nesse março, a pandemia
Nesse marco, apareceu no país o coronavirus: a pandemia mais letal que afeta a vida de todos os peruanos.
Todos somos conscientes, por certo, que não se trata de um problema nacional. Originada em uma cidade chinesa -Wuhuan – expandiu-se rapidamente pela Europa causando severos danos e chegou à América Latina em pôs em duros apertos governos e povos. Depois meses depois de registrada nas telas dos nossos país, ainda não foi controlada e ainda está situada na sua fase de expansão.
Na Peru, a Covid-19 teve dramáticas consequências e tem gerado dolorosas perdas para as família. Combatida desde o início, a estratégia que a enfrentou não deu os resultados esperados. Vejamos os elementos que incidiram nela para compreender sua essência.
O Peru foi talvez o primeiro país da região que se pôs em guarda diante da pandemia, e adotou medidas para enfrentá-la. Isto foi reconhecido pela cidadania e admitido pelos organismos internacionais encarregados de estudar a evolução do fenômeno.
O distanciamento social, a higiene pessoal e a quarentena respondiam a uma necessidade urgente e assim foram assumidas pela população desde o início. Não obstante, bem pode se dizer que estas medidas não deram os resultados previstos. Temos que perguntar por quê.
As limitações do governo vizcarra
O Governo de Martín Vizcarra tem diversas limitações. Resumiremos em cinco:
Apesar de contar com um significativo respaldo da cidadania – desde que assumiu tem superado 50% em aceitação cidadã e hoje registra 80% – o Chefe de Estado não tem base social própria. Carece de partido que o respalde, não tem representação parlamentar que sustente seus projetos e tampouco dispõe de um círculo homogêneo e solvente de colaboradores que possam assumir as responsabilidades do Estado. Isso o tem obrigado a trocar de ministros com frequência e a buscar novos titulares em ministérios que são chaves para a conjuntura: Saúde e Interior.
Seu mandato presidencial é questionado por algumas pessoas e por setores políticos interessados em prejudicar sua gestão. Como se sabe, ele foi eleito vice-presidente em 2016 e só assumiu a chefia da nação após a renúncia do titular, Pedro Pablo Kuczynski. É comum nas redes sociais encontrar pessoas perguntando: quem o elegeu como Presidente? Isso, objetivamente, mina sua imagem em alguns segmentos da sociedade e lhe tira força para liderar um aparelho burocrático do Estado corroído pela corrupção e que foi forjado pelas administrações anteriores, hoje questionadas.
Uma segunda debilidade, e talvez a mais importante, deriva do fato de que se move dentro do esquema neoliberal, o que constitui sua própria opção ideológica. Isso lhe gera limitações concretas e dependências indesejáveis. Nessa linha tem sustentado “coordenações” de política com “mandatários amigos” considerando assim Iván Duque, da Colômbia; e Sebastián Piñera, de Chile. Embora tenha tido juízo ao não incluir nessa esfera o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e a presidenta interina da Bolívia, Jenette Añez, há que sublinhar que bem havia podido ampliar suas comunicações com Chefes de Estado que têm manejado melhor a quarentena, como os presidentes da Venezuela, da Argentina ou de Cuba, e mesmo o do Uruguai, de diferentes orientação política, mas representantes de uma gestão que merece ser destacada.
Venezuela, com todos os problemas que enfrenta, registrou muitíssimo menos perdas humanas que o Peru; e a Argentina via pelo mesmo caminho. Apesar de seu recente mandato, o Presidente Fernández tem manejado as coisas com maior eficácia e solvência que seu colega chileno. Nicarágua e Cuba -com distintas modalidades operativas- têm manejado com acerto o tema, e o Uruguai tem registrado um fato peculiar; teve doze anos de governos da Frente Ampla o que lhe permitiu proteger a saúde de sua população e defendê-la da incidência de crise que vive a região.
As concepções do governo fizeram, no aspecto fundamental, que se movesse dentro da esfera de controle dos Estados Unidos, motivo pelo qual também coordenou com o Presidente Trump, apesar de ele sustentar uma orientação diametralmente oposta adiante do ataque da pandemia. Em todo caso, essa dependência tem feito com que Vizcarra não tenha conseguido assegurar o apoio oferecido pelo governo da República Popular da China, a não ser na última etapa da crise; e apresente resistência à participação das Brigada Médicas de Solidariedade oferecida pelo governo de Cuba. Os aportes desses países irmãos poderiam ter desempenhado um papel decisivo no enfrentamento da crise sanitária e na derrota do coronavirus.
Esta limitação registrou uma terceira dificuldade: o governo tem um visão objetivamente burguesa da vida nacional. Toma medidas pensando na classe mais pudente, ou nas capas médias da população. Não dispõe normas pensando no povo e nos segmentos mais deprimidos da sociedade. Exemplo disso é o conjunto de medidas esboçadas pelas autoridades; recomendar a urgência de “lavar as mãos várias vezes por dia, é não se interessar pela sorte de milhões de peruanos que vivem na capital e que carecem dos serviços de água e esgoto. E isso é ainda mais grave no interior do país. Dispor que “todos fiquem em sua casa”, é não considerar que há dezenas de milhares de peruanos que não têm casa; e outros que têm como casa uma só quarto apertado na qual vive uma família inteira, com vários filhos. Nesse cômodo funciona o dormitório, comedor, cozinha e até privadas mal construídas e pior mantidas. Inclusive os “bônus” entregues às populações menos solventes, foram dados através dos bancos e informados pela internet. E há milhões de peruanos que não manejam o sistema bancário nem têm acesso à internet. Ali se levantaram em massa as bandeiras brancas, como símbolo de pobreza.
Embora essas medidas resultassem indispensáveis e inevitáveis, teriam que ter sido acompanhadas com outras complementares: habilitação de serviços de água nas favelas e assentamentos humanos; ampliação das moradias com ajuda do Estado; previsão de alimentos para as famílias; e controle sanitário domiciliar; e até capacitação das pessoas no uso do sistema bancário e no manejo das redes sociais. O assunto é que nada disso era possível pela visão neoliberal do governo, mas além disso pela estrutura do Estado e pela conotação de suas orientações políticas.
Essa visão impediu o governo de perceber na necessidade de se apoiar nas organizações sociais realmente existentes: os clubes de mães, os comedores populares, os comitês de povoadores, as comunidades camponeses, os sindicatos, os centros de cultura e outras organizações de base da sociedade, que não foram nem consultadas virtualmente para nada. As autoridades se limitaram e conversar e coordenar suas ações com os empresários e as organizações patronais que, objetivamente, têm ditado suas políticas.
A mesma coisa pode ser dita quando se fala da “reativação” da economia. Se dispõe, por exemplo, o funcionamento dos restaurantes “via delivery”, mas esses serviços estão concebidos para os bairros altos ou médios, não para os bairros populares. Nenhum restaurante vai atender pedidos feitos por pessoas que vivem nesses bairros precários e longe do centro. Onde vivem quatro milhões de peruanos na capital.
Pode-se sustentar que essas populações são as de maior risco e estão mais expostas; e é verdade. Mas isso ocorre precisamente pelas condições materiais nas quais vivem, pelas dificuldades que devem enfrentar em um quarentena sem trabalho e sem recursos. São, objetivamente, as mais vulneráveis.
Isto também aparece como algo notável nos chamados “programas reativadores” ou nas “ajudas assistenciais” orientadas para os empresários. Para um segmento deles foi outorgado inicialmente um crédito de 31 bilhões de soles; depois o Programa “Reativa Peru”. Depois o Estado assumiu o compromisso de pagar 35% da folha de pagamento. Finalmente, foi outorgado aos empresários a faculdade de aplicar a “suspensão trabalhista perfeita”, deixando na rua muitos trabalhadores.
Para este efeito, o governo assegurou que se trataria de uma “medida excepcional”, aplicada “em último caso” e fiscalizada pelo Estado. No entanto, poucos dias depois o governo teve que reconhecer que se haviam apresentado 55 mil pedidos de “suspensão perfeita” do emprego por parte das organizações patronais.
A CONFIEP –O Estado Maior das organizações empresariais – deu a pauto em todos os casos. Sua opinião foi decisiva e se excluiu qualquer critério diferente. O caso mais clamoroso é quando se analisa o tema do idealizado imposto às grandes fortunas, ostentosamente anunciado pelo próprio Chefe de Estado. A CONFIEP iniciou de imediato uma campanha destinada a desalentar a iniciativa. O Presidente do Banco Central a qualificou de “inútil” e “demagógica”, e em seguida outros representantes da classe dominante a consideraram “inaplicável” e “desnecessária”. Foi tanta a pressão em torno ao tema que finalmente o governo assegurou que essa medida “não estava em suas prioridades”. Algo parecido ocorreu com o tema das AFPs, às quais finalmente, a partir do BCR, Julio Velarde tenta salvar outorgando facilidades financeiras imperdoáveis.
Em torno ao tema, a Presidenta da CONFIEP diz com singular cinismo que, efetivamente, muitos peruanos terão que “voltar à pobreza”. Não se refere a eles, certamente. Está falando das capas médias, sobre as quais recairá um pesado manto de pobreza.
Em contrapartida, o apoio às populações mais necessitadas tem sido ínfimo: um bônus por volta de cem dólares, depois outros similar e finalmente um terceiro do dobro dessa quantia. Mas que foram entregues tarde, mal e nunca. Hoje, milhares de peruanos podem assegurar que não receberam nenhuma ajuda do Estado. E entre os mais prejudicados, sem dúvida, estão os aposentados, a maioria dos quais recebem humilhantes somas que flutuam entre 50 e 150 dólares mensais.
Uma quarta limitação – não menos importante – está marcada pela corrupção galopante do sistema estatal e privado peruano, que tem corroído as bases de todas as instituições do país, incluindo o Poder Judicial, o Ministério Público, a Polícia Nacional e até as Forças Armadas. Embora se possa dizer que a corrupção é inerente à sociedade capitalista, a verdade é que no Peru tornou-se endêmica, sobretudo a partir da gestão dos governos de Fujimori e García. Por isso foi envilecida a vida nacional, corrompeu-se tudo e converteu-se em negócio cada uma das urgentes necessidades da população. Como nunca, tornou-se real no Peru o que disse González Prada: “onde se ponha o dedo, brota pus”. Exemplos disse é que não faltam.
Hoje se sabe, por exemplo, de depósitos de medicamentos subtraídos, de uma usina de gás sabotada em Iquitos, do roubo de instrumental médico, de habilitação de centros clandestinos de atendimento a pacientes, da perda de donativos, a não entrega de cestas básicas a populações, e outros mil modalidades que só estruturas corruptas bem organizadas podem acionar.
A corrupção, unida à insensibilidade burocrática do Estado, gerou o que se pode considerar um “cumprimento cínico da lei”, ou seja, o apego a uma norma que se sabe injusta e despiedada, mas que se aplica para castigar as populações mais necessitadas, e se elude quando afeta os mais pudentes.
Um quinta e última limitação, teve que ver com o geografia do Peru. Um país extenso, com cinco fronteiras nacionais, três regiões naturais e profundos abismos econômicos e sociais; requer múltiplas políticas. As populações da costa têm traços e características diferentes das que habitam na serra ou na selva. E estas últimas enfrentam dificuldades talvez muito maiores que as que afetam o resto dos peruanos. A tragédia vivida em Iquitos e em outras populações da selva constitui uma inegável prova.
Objetivamente nenhum governo na história do Peru teve uma política de Estado destinada a Integrar a Amazônia ao desenvolvimento do país. Foi sempre uma região esquecida e menoscabada. Foi concebida como um empório de riqueza – primeiro a borracha e dpois do petróleo – e nunca se considerou suas populações como a expressão de verdadeiras culturas com direitos inalienáveis.
No Peru, na realidade, está integrado por três países em um só. E requer políticas muito flexíveis em lugar de normas rígidas de cumprimento formal e obrigatório em toda parte. Lamentavelmente, os governos regionais e as autoridades locais carecem de autoridade e liderança, também pela crise que afeta os partidos políticos do país. Objetivamente, essas autoridades muitas não só não ajudaram no cumprimento de tarefas, mas se converteram inclusive em parasitas para a sua operatividade. Mas no Peru as limitações incidiram em segmentos cruciais. Vejamos como.
A crise na área da saúde
O modelo neoliberal debilitou significativamente o papel do Estado na área da saúde e impôs a presença da empresa privada. O próprio pessoal da saúde – os médicos – foi afetado por essa realidade. Muitíssimos médicos emigraram dos hospitais do estado para trabalhar nas clínicas privadas, Muitos outros trabalhavam em ambas, dando preponderância ao seu trabalho mais bem remunerado, que não era precisamente o estatal. Soube-se, por exemplo, que em torno de 30 mil médicos do setor estatal, no início da Pandemia, tiraram licença arguindo “idade vulnerável” – mais de 60 anos – ou doenças pré-existentes, mas foram imediatamente trabalhar no setor privado. Isso não ocorreu com outros milhares de médicos que aportaram, inclusive heroicamente, seu trabalho na batalha apresentada. Hoje se sabe que mais de 30 médicos ofertaram suas vidas lutando contra a Covid-19.
Mas a crise do sistema de saúde foi ainda maior. No início do crise, a cobertura oferecida pelo Estado era muito pequena e não alcançava para atender os requisitos propostos. Não tínhamos leitos para tratamento intensivo, nem leitos de hospitalização em número adequado. Muito menos respiradores mecânicos, nem balões de oxigênio, nem sequer material para testes. Muitos dos peruanos que faleceram, morreram na verdade por estas limitações do serviço de saúde. Além da vontade das autoridades, os hospitais públicos colapsaram, os centros médicos deixaram de funcionar e o sistema mostrou sua maior precariedade. Iniciativas inteligentes, como a de habilitar a Vila Pan-americana como centro hospitalar, ou usar a Praça de Acho para albergar mendigos, foram corretas e úteis, mas sem dúvida insuficientes.
O governo procurou, desde o início, enfrentar essas limitações. Buscou no mercado internacional respiradores mecânicos, mas quando obteve e adquiriu, sofreram a “retenção” por parte do governo dos Estados Unidos, que disse “necessitá-los para eles”. Também tivemos problemas para conseguir Equipamentos de Proteção Pessoal e até máscaras. Quando essas últimas foram adquiridas, demonstrou-se que não eram as apropriadas. Algo parecido ocorreu com o testes que não ajudaram como era indispensável.
Em algumas regiões do país o problema de saúde sofreu crise ainda maior. Assim ocorreu na região de Loreto e seu capital, Iquitos, mas também na região Ucayali. Como se sabe, não há comunicação terrestre em Loreto, só aérea. E a conexão está em mãos de empresas particulares, porque o Estado não tem nenhuma. Como poderia atender de imediata as urgências requeridas? Em Iquitos logo colapsou o hospital estatal e a seguridade social, faltaram respiradores mecânicos, balões de gás e até elementos de proteção pessoal para os médicos, enfermeiras e trabalhadores da saúde. Mas a pandemia também entrou em crise no norte do país, em Tumbes – fronteira aberta com o Equador pode onde chegam migrantes colombianos e venezuelanos, muitos deles já contagiados. Piura, Chiclayo e Trujillo foram vítimas da pandemia em maior proporção que outras regiões do país. O sistema de saúde não esteve à altura dos requisitos indispensáveis.
Mas onde a crise se fez mais evidente foi no campo da saúde das Forças Policiais. O Hospital da Polícia, mas também o Hospital Militar, registraram limitações notáveis. Centenas de policiais e militares tiveram enormes dificuldades para fazer testes ou ter acesso a tratamentos básicos. Muitos morreram tentando. Há que reconhecer que a polícia cumpriu no fundamental um papel inclusive heroico no combate à pandemia. E isso ocorreu também com importantes segmentos das Forças Armadas, Dezenas de integrantes e uma e outra entidade ofereceram suas vidas nessa luta.
O setor privado fez da crise um grande negócio. Inclusive aumentou os preços dos testes, situando-os entre 150 e 500 dólares; cobrou somas exorbitantes para outros serviços: balões de gás, uso de respiradores mecânicos e, naturalmente, o tratamento da doença que, em algumas clínicas chegou a custar entre 12 mil e 15 mil dólares. Quantos peruanos poderiam dispor dessas somas em caso de urgência? No fundo, as clínicas privadas não atenderam paciente, mas clientes e não proporcionaram ajuda, mas “serviços” bem remunerados ao Estado. Isto, finalmente foi assim reconhecido, e mesmo admitido, pelo governo.
Mas a voracidade do setor privado se expressou também na farmacologia. A cadeia de farmácias – um verdadeira monopólio – encareceu o preço dos medicamentos básicos em 250%. E rechaçou energicamente a proposta formulada por um setor da cidadania: o controle dos preços dos medicamentos de urgência ou sua regulamentação, arguindo que isso “atentava” contra a liberdade de comércio e era, por certo, uma medida “populista”. Cinicamente, o presidente da INDECOPI – a entidade do Estado encarregada de “proteger a cidadania” – afirmou que no Peru os monopólios são legais e têm o direito de regular seus preços. O Estado, então “não poderá fazer nada”.
A área da educação
Um fenômeno muito parecido se dá no setor da educação. Nele, também o investimento privado viu um negócio altamente rentável. Por isso criou Institutos Pedagógicos Privados que outorgaram indiscriminadamente títulos de docentes, cadeias de colégios particulares – como a rede Innova – e universidades privadas que duplicaram literalmente o número de centros superior de estudos e captaram ao redor de 50% dos estudantes do setor. Isso aconteceu pela deterioração do setor educação, o menosprezo pela carreira docente, a desqualificação da educação pública e a exaltação da “iniciativa privada” na área. Hoje pagamos as consequências dessa política.
A pandemia tem impedido o desenvolvimento dos trabalhos acadêmicos assistenciais e tem gerado um sistema de educação a distância. Os pais de família dos colégios privados e das universidades do mesmo tipo argumentam com razão que não têm vontade de pagar as mesmas onerosas mensalidades de antes por um serviço educativo mais modesto, como é o sistema virtual. Reclamaram, por isso, a redação das mensalidades em pelo menos 50%.
Os centros educativos privadas recusaram firmemente a iniciativa alegando que seus “custos” continuam sendo os mesmos e que, em todo caso, se os pais de família querem pagar só 50% de suas “obrigações” devem exigir ao Estado que cubra os outros 50%. Eles não estão dispostos a perder um centavo do que consideram seus “legítimos lucros”.
Posto diante do problema, o governo não tem encontrado uma solução. Legalmente o Ministério da Educação – MINEDU – não está “facultado” para impor mensalidades ou tarifas às instituições privadas. Finalmente, tem optado por oferecer a “transferência” dos estudantes do setor privado para as entidades estatais em todos os níveis. Mas a crise está colocada.
E é que a educação se converteu no país em um atividade lucrativa, grande negócio. Quem instala uma “empresa” no setor, não paga impostos e obtém grande lucros que ninguém fiscaliza. As autoridades universitárias em alguns casos estabeleceram remunerações espetaculares – o reitor da universidades particular Garcilaso de la Vega, ganha 600 mil dólares mensais- enquanto outras universidades – como Alas Peruanas- financiam as atividades dos Partidos Políticos mais reacionários como o APRA e o Fujimorismo. Ademais, importantes dirigentes políticos, como Alan García, Lourdes Flores ou Beatriz Merino, desempenharam – e alguns ainda desempenham – funções de gestão altamente remuneradas.
A Educação Pública vive sua pior crise. Seus orçamentos estão congelados há mais de 20 anos, os professores ganham mal e enfrentam regimes de contratação simplesmente humilhantes; os programas acadêmicos são obsoletos e eliminaram do currículo escolar os cursos básicos como a História do Peru e Educação Cívica. Entidades alheias ao serviços educativo pretendem impor programas estreitos e sectários de ordem religiosa e fundamentalista.
Isso fez com que caísse a qualidade da educação. Por isso se diz, não sem razão que o Peru tem o pior sistema educativo da América Latina. Seus docentes estão, em geral, mal preparados, as escolas estão semidestruídas ou são simplesmente inexistentes, sobretudo em zonas rurais. É a herança do neoliberalismo.
Indisciplina e desborde social
Um fator que tem incidido negativamente e tem dificultado o cumprimento e a aplicação dos dispositivos para o combate ao coronavirus, tem sido a indisciplina e o desborde social.
A explicação lógica e mais fácil alude à imperiosa necessidade de romper a quarentena por causa da fome, ou por necessidade irrecusável de trabalhar. Mas isso só explica parte do fenômeno. Também é preciso acrescentar a falta de experiência da população nos combates contra essas pandemias, a desorganização social, o atraso de diferentes segmentos da população e – porque não – a sabotagem implementada por forças hostis ao governo por razões político-sociais. A tudo isso é preciso somar, sem dúvida, os níveis de corrupção que têm descido na pirâmide social até localizar-se inclusive em importante segmentos de sua base. Muitas expressões dessa corrupção têm sido detectadas em incidentes menores: pessoas que falsificam “atestados” que dizem que estão infectados pela doença, ou que “curas” com remédios caseiros. Essas são apenas algumas expressões de uma realidade lamentável, mas objetiva.
Sobre essa base têm operado também forças políticas interessadas em fazer fracassar a estratégia oficial na matéria. Essas forças têm considerado que quanto mais infectados haja, e enquanto mais mortes se produzam, o governo ficará mais enfraquecido e será então presa fácil para suas aspirações políticas. Elas se orientam a restaurara no Peru o domínio oligárquico e o controle do Estado por parte das Máfias tradicionais e pelos núcleos corruptos do Apro-fujimorismo. Isso explica o concerto de vozes nas redes sociais depreciando o Chefe do Estado. Não criticam suas ações – o que seria compreensível e legitimo- mas simplesmente o insultam: incapaz, traidor, vende-pátria, e outras expressões de uma terminologia carregada de ódio.
A estratégia dessas forças não fica no plano do estímulo e da indisciplina. Porta-vozes qualificados da classe dominante têm sustentado em diversas ocasiões e por diferentes vias, que é preciso “mudar o governo” para “restabelecer a ordem”, proteger “o direito à propriedade”, a “recuperação de empresas”, a “defesa da cristandade”, o “rechaço a ofertas populistas e socializantes”, assim como expressões de similar sentido. Inclusive foram formuladas propostas concretas: que se forme um governo de “unidade nacional” somando o regime atual com a “oposição”, entendida como o Apro-fujimorismo; e que se constitua um ministério “representativo” integrado apor “políticos experientes”, como Alfredo Barrenechea, Keiko Fujimori, César Acuña e outros, que finalmente assuma o poder.
Porta-vozes especialmente organizados para agir na conjuntura, fazem uso da televisão de maneira descarada. É o caso de Phillips Bhutters ou de Jaime Baily, mas também Milagros Leiva, Mávila Huerta, Federico Salazar e o colunista de “Peru 21”, Aldo Mariátegui. Todos respondem a uma só consigna: defender de qualquer modo o modelo neoliberal. Tudo isto forma parte da estratégia de “mudança” que alimenta o fracasso da administração atual, a partir de sua “incapacidades” para vencer o coronavirus.
Conclusões
Desta análise se podem extrair algumas conclusões:
A Covid-19 não é um fenômeno nacional. Trata-se de um pandemia mundial que inclusive poderia ser considerada parte de uma guerra bacteriológica desatada em função dos interesses das grandes corporações empenhadas em diminuir a população do planeta e eliminar os segmentos mais deprimidos da sociedade.
No nosso país, desde o início alertou-se a população e foi desenhada uma estratégia basicamente correto, baseada no distanciamento social, na proteção das pessoas e na quarentena. E se enfatizou que o mais importante era a vida – que não se recupera – que a economia que poderia ser reconstruído posteriormente.
Essa estratégia não deu os resultados esperados pelas debilidades da estrutura social peruana derivadas do “modelo” neoliberal que rege o país sobretudo a partir da Constituição de 1993 e que debilita significativamente o papel do Estado e converte a saúde e a educação em atividades lucrativas.
Objetivamente, entrou em colapso o sistema de saúde peruano e não foi possível atender às demandas da população, o que permitiu que a doença se expandisse e se incrementasse desmedidamente o número de pessoas infectadas e falecidas.
As limitações de classe do próprio governo, sua composição heterogênea e sua falta de experiência no manejo de um problema desta envergadura, bem como a ausência de uma base política e social competente, dificultaram o cumprimento das tarefas vinculadas ao combate a este flagelo.
A tendência oficial de “dar a mão” às grandes empresas e ceder diante das pessoas da CONFIEP e da classe dominante, assim como a falta de confiança nos trabalhadores e no povo, incidiu negativamente no impulso correto das tarefas colocadas.
O Movimento Popular deveria extrair as lições adequadas desta experiência, unir-se em torno de um programa que assegure a transformação social, organizar-se em todos os estamentos da sociedade, elevar a consciência política das massas e apoiar – e apoiar-se – nas demandas mais sentidas da população.
A tarefa principal passa por reconstruir a sociedade peruana sobre novas bases, desterrando definitivamente o neoliberalismo, derrogando a Constituição de 1993 e abrindo passagem a uma transformação democrática da vida cidadã a partir de critérios de justiça, inclusão social, respeito aos direitos e conquistas dos trabalhadores e o forjamento de um legítimo bem-estar público.
Na rota de Túpac Amaru, pelos caminhos que percorreram nossos libertadores nos anos do século XIX, pelo roteiro marcado por nossa história com base nos símbolos heroicos de Mariano Melgar e Francisco de Zela, Miguel Grau e Francisco Bolognesi, pel mensagem dos grandes pensadores e intelectuais do século XX como César Vallejo, José Carlos Mariátegui e Jorge Basadre; é indispensável forjar uma nova sociedade na qual a Democracia, a Independência e a Soberania sejam uma realidade.