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Corrupção, exército na vida pública e crise financeira: A revolta popular no Sri Lanka

Reprimida com selvageria por pistoleiros, mobilização tende a se estender a mais amplos setores da população; a ONU alerta para riscos de uma catástrofe
Éric Paul Meyer
Diplomatique Brasil
São Paulo (SP)

Tradução:

Exceto por uma curta interrupção, a família Rajapaksa detém as rédeas do poder no Sri Lanka há dezessete anos: sob a presidência de Mahinda de 2005 a 2015 e depois, desde 2019, sob a de seu irmão Gotabaya. A popularidade do clã com a maioria cingalesa budista (mais de 70% da população) está baseada na vitória do Exército contra a rebelião tâmil em maio de 2009, bem como na instrumentalização do budismo e no retorno a uma “autenticidade cultural” construída com base na imagem fantasiosa do passado pré-colonial do país.

As violações dos direitos humanos dos separatistas tâmeis, mas também dos opositores cingaleses, o enquadramento da imprensa e da justiça, a participação cada vez maior do Exército na vida pública, o fisiologismo e a corrupção do clã no poder não haviam conseguido, até o presente, dilapidar esse capital de confiança. Dá testemunho disso o sucesso de Gotabaya Rajapaksa e de seu partido na eleição presidencial de 2019 e legislativa de agosto de 2020. Essas vitórias apagaram a derrota de Mahinda, em 2015, diante da aliança de militantes da sociedade civil e do velho partido conservador liberal dirigido por Ranil Wickremesinghe.

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Desde 2015, uma das receitas desse êxito consiste em encorajar movimentos extremistas budistas inspirados no modelo birmanês, denunciando a ascensão do islamismo: a minoria muçulmana (8% da população) encarna a figura do inimigo interno, no lugar da minoria tâmil derrotada. Os atentados da Páscoa de 21 de abril de 2019 contra igrejas cristãs e hotéis – que mataram 250 pessoas, entre as quais 42 turistas estrangeiros – parecem feitos sob encomenda para confirmar essas teses: cometidos por um grupo islâmico identificado pelos serviços de inteligência, foram imputados à frouxidão do governo de Wickremesinghe (2015-2019), ainda que a comissão de inquérito sobre uma suspeita de manipulação por parte do poder não tenha conseguido terminar seus trabalhos.

O outro pilar do regime de Gotabaya é o Exército, no qual iniciou sua carreira nos anos 1980; ele combateu os separatistas tâmeis e os rebeldes cingaleses com métodos de contraguerrilha antes de emigrar para os Estados Unidos. Ao regressar, ocupou o posto de secretário da Defesa a pedido de seu irmão Mahinda. Em seu ministério, foram confiadas ao Exército, transformado no maior empregador do país após o fim do conflito separatista, tarefas de polícia, obras públicas e gestão do território; o Exército pôde criar empresas comerciais e turísticas, sem nenhum controle político ou financeiro.

Diante da crise financeira que explodiu em abril de 2022 – em função da qual o país não conseguiu mais rolar a dívida pública na data do vencimento –, a popularidade dos Rajapaksa voou pelos ares. A falta de gêneros alimentícios e a alta dos preços (46% sobre a alimentação em um ano, 140% sobre os produtos petrolíferos) desencadearam uma cólera social generalizada. Todo o sistema político foi questionado pelo movimento de luta (aragalaya, em cingalês) que irrompeu em Colombo, sob a forma da ocupação de Galle Face, um vasto espaço público à beira-mar, realizada por jovens militantes que exigiam a demissão do presidente Gotabaya. Essa “aldeia” (GotaGoGama) transformou-se rapidamente em local de criatividade cultural e política: pode-se ver ali bandeirolas e ouvir slogans como “No topo, o poder corrompido; na base a luta intrépida” ou ainda “Basta dos 225”, que designa o número de parlamentares.

Reprimida com selvageria por pistoleiros a serviço dos Rajapaksa, a mobilização tende a se estender a mais amplos setores da população e ao conjunto da ilha, enquanto enfrenta choques violentos com as forças da ordem. Ela já obteve a demissão do governo – mas não do presidente, que, dispondo da maioria no Parlamento, declarou que iria até o fim de seu mandato, em 2024. Ele se contentou em nomear como primeiro-ministro seu antigo adversário, Ranil Wickremesinghe, encarregado de formar um gabinete de união nacional e obter concessões dos credores internacionais; no entanto, Wickremesinghe está politicamente isolado. A oposição, representada por Sajith Premadasa (direita populista), Mathiaparanan Sumanthiran (partido tâmil) e Anura Dissanayake (esquerda marxista), denunciou a manobra.

Reprimida com selvageria por pistoleiros, mobilização tende a se estender a mais amplos setores da população; a ONU alerta para riscos de uma catástrofe

Foto: Suzane Lopes/Agência Filtro
Degradação da balança de pagamentos, coincidindo com vencimentos dos empréstimos no mercado mundial, tornou a dívida externa insustentável

Clivagens étnico-religiosas ultrapassadas

A força do movimento de contestação vem do apoio cada vez maior dos meios populares urbanos e rurais, vítimas de toda sorte de privações. Sua novidade é que ele parece ir além das clivagens étnicas e religiosas. Pela primeira vez, cingaleses budistas, monges entre eles, associaram-se à celebração das vítimas tâmeis de maio de 2009, ao lado de representantes de diferentes religiões, que comemoraram juntas o fim do Ramadã, a Páscoa e o festival budista de Vesak. O cardeal Malcolm Ranjith, chefe da Igreja Católica (6% da população, tanto cingalesa quanto tâmil), condenou sem ambiguidade o regime e reclamou um inquérito aprofundado sobre os atentados de 2019.

A capacidade do poder para resistir a essa mobilização depende de três aspectos: do grau de fidelidade do Exército, enquanto as famílias dos soldados são atingidas pela crise como as demais; da manutenção de seu controle sobre a sociedade rural do sul da ilha (apesar de as residências e de o museu à glória dos Rajapaksa terem sido destruídos em seu feudo); e da obtenção de prazos mais extensos e da administração da rolagem da dívida por parte dos credores e fornecedores internacionais, ainda que o encadeamento que conduziu o país à quebra coloque em questão sua capacidade para superar a crise. 

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Sem dúvida, a vulnerabilidade da economia do Sri Lanka remonta ao período colonial britânico (1796-1948): grandes monoculturas foram desenvolvidas em detrimento dos equilíbrios ecológicos e dos sistemas de produção de víveres, explorando uma mão de obra imigrada do sul da Índia. As rendas do Estado colonial repousavam sobre esse único setor, e as variações das cotações mundiais do chá ou da borracha impactaram o país, notadamente por ocasião da depressão dos anos 1930. Após a independência, em 1948, esses recursos foram reorientados para a reabilitação da rizicultura, o desenvolvimento dos sistemas escolar e hospitalar e as subvenções aos produtos de primeira necessidade.

O Sri Lanka tornou-se então o país mais avançado do sul da Ásia em termos de nível e de qualidade de vida. No entanto, no decorrer dos anos 1970, o declínio dos rendimentos obtidos com a monocultura e os fracassos do planejamento conduziram governos convertidos às teorias neoliberais a se concentrar no turismo de massa, na indústria de confecção nas zonas francas e na emigração para os países do Golfo. Em seguida, eles imaginaram transformar a ilha em uma nova Cingapura, atraindo para a finança internacional. A ascensão paralela do separatismo tâmil e do etnonacionalismo cingalês, com a violência social como pano de fundo, pôs em xeque esse projeto.

O esmagamento da rebelião tâmil armada trouxe a ilusão de que esses objetivos podiam ser relançados em 2009, recorrendo-se em especial às facilidades proporcionadas pelo mercado mundial de capitais e às ofertas de investimento propostas sobretudo pela China. Ora, o setor agrícola já mostrava sinais de fraqueza e as contas públicas se degradavam. Os grandes trabalhos de irrigação foram paralisados, enquanto os rizicultores continuavam a se beneficiar de preços garantidos e de insumos subvencionados, e os consumidores, de gêneros a preços baixos.

De sua parte, os pequenos e médios produtores dinâmicos que sucederam as grandes plantações de chá nacionalizadas nos anos 1970 foram golpeados em abril de 2021, assim como os produtores de arroz, por medidas adotadas em nome da luta contra a poluição: suspensão total das importações de fertilizantes químicos e conversão forçada à agricultura orgânica – o que teve o efeito de derrubar em 40% a produção de chá e em 20% a de arroz e de obrigar o país, até então autossuficiente, a importar esse cereal. A medida foi revogada sete meses depois, em novembro; porém, o mal já estava feito. 

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A gestão calamitosa das contas públicas agravou a situação. Segundo o economista Umesh Moramudali,2 a carga tributária passou de 19% em 1990 para 11,5% em 2019, antes de cair para 7,7% em 2021 – a mais baixa na Ásia (na Índia, ela é de 16%). Essa queda de arrecadação de longa duração é atribuída por Moramudali às frequentes anistias fiscais, à incapacidade de uma administração paralisada por ingerências políticas que dificultam qualquer controle, à isenção de tributos dos grandes projetos de infraestrutura e às medidas demagógicas do presidente Gotabaya Rajapaksa (que reduziu o número de contribuintes de 1,5 milhão para 412 mil e baixou a taxa sobre consumo de 15% para 8%). O país tornou-se um paraíso fiscal, o que não impede os capitais ligados à corrupção e aos diversos tipos de tráfico de buscar refúgio em praças financeiras mais lucrativas, como Cingapura e Dubai. 

Do lado das despesas, além da política social de redistribuição e das subvenções, são elevados o custo da guerra e depois o da manutenção em tempo de paz de um Exército numeroso ocupado com tarefas civis. Para não mencionar os grandes projetos de infraestrutura. Assim, em 2021, a parte do orçamento disponível (fora o reembolso da dívida) consagrada ao Exército elevou-se a mais de 15% (contra 8% para a educação e 10% para a saúde). Segundo dados do Banco Mundial, as despesas militares passaram de US$ 791 milhões em 2006 para US$ 1,7 bilhão em 2011 e se mantêm em US$ 1,57 bilhão em 2020, ou seja, 1,9% do PIB, enquanto os programas de redistribuição social representam apenas 0,9%. Mais ainda, por causa do clientelismo, o FMI estima que mais da metade das alocações da renda básica (Samurdhi) beneficia lares acima do patamar, ao passo que metade das famílias elegíveis é privada desse auxílio.3

A degradação da balança de pagamentos, coincidindo com os vencimentos dos empréstimos no mercado mundial, tornou a dívida externa insustentável. Sem divisas, o Sri Lanka mostra-se incapaz de importar produtos petrolíferos, alimentos e medicamentos. O turismo afundou, passando de 5,6% do PIB em 2018 para 0,8% em 2020, em razão da pandemia que sucedeu à insegurança gerada pelos atentados da Páscoa.

Além disso, o envio de divisas pela diáspora diminuiu de US$ 7,2 bilhões em 2020 para US$ 5,5 bilhões no ano seguinte, e a alta dos preços de energia e dos produtos alimentares viu-se agravada pelo conflito russo-ucraniano. Segundo o FMI, no fim de 2020, a dívida total se elevava a cerca de US$ 80 bilhões, dos quais perto da metade em moeda estrangeira. As cifras oficiais4 decompõem do seguinte modo a dívida externa e a do Banco Central (US$ 34,6 bilhões em abril de 2021): 47% em empréstimos nos mercados mundiais, 22% em passivos multilaterais (13% pelo Banco Asiático de Desenvolvimento, 9% pelo Banco Mundial) e 29% em dívidas bilaterais (com Japão, China, Índia). No entanto, de acordo com cálculos da agência Reuters,5 a dependência financeira com a China é mais elevada, representando em torno de 19% do total.

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Os empréstimos junto aos mercados mundiais são constituídos por obrigações soberanas colocadas por um consórcio bancário que associa Standard Chartered, HSBC e Citibank, classificadas como altamente especulativas (categoria B+) pelas agências de classificação de crédito. Foram lançadas em 2007 por iniciativa do presidente Mahinda Rajapaksa, multiplicadas a partir de 2010 e prolongadas sob o governo do antecessor Ranil Wickremesinghe.

Após terem contribuído para financiar os últimos anos da guerra contra os separatistas tâmeis, entre 2007 e 2009, essas operações deviam em princípio estimular a retomada econômica, sem estar ligadas a nenhuma operação específica. Entretanto, o governo se viu na impossibilidade de honrar os reembolsos após pagar o de janeiro de 2022. Visando reestruturar suas dívidas, ele procurou o banco Lazard, enquanto os detentores de obrigações soberanas confiaram seus interesses à companhia financeira Rothschild.

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Os empréstimos multilaterais e bilaterais (a outra metade da dívida), a prazo mais longo, estão, ao contrário, ligados a projetos de desenvolvimento ou a operações comerciais. Uma parte significativa dos créditos multilaterais (e dos empréstimos indianos) foi consagrada à reconstrução das regiões tâmeis do norte e do leste arruinadas pelo conflito, sob o controle de um ministério dirigido por Basil Rajapaksa, um dos irmãos do presidente, e do Exército, colocado sob as ordens de outro irmão, Gotabaya, então secretário da Defesa.

O essencial dos investimentos de origem chinesa foi inicialmente dirigido às regiões cingalesas do sul da ilha, no distrito de Hambantota, feudo da família Rajapaksa, onde foram construídos um aeroporto internacional que permanece deserto até hoje, uma rede rodoviária e ferroviária e um porto de porta-contêineres em água profunda, ambos superdimensionados; declarado não rentável, o porto foi cedido em 2017 à China Merchants Port.

Em um segundo momento, o governo lançou-se em um grandioso projeto de cidade portuária e de centro de negócios e de lazer em Colombo, confiando a concepção e a construção a outra empresa chinesa, a China Harbour Engineering Company.

Essa situação de falência tem sérias implicações geopolíticas. Em escala asiática, a ilha está no cruzamento de dois eixos de influência: um que a liga à Índia; outro que a torna um ponto de apoio da expansão marítima chinesa. Confrontado com as exigências de seus credores ocidentais, o governo faz apelo de um lado ao FMI, que lhe dita reformas impopulares, e de outro à China, à Índia e à Rússia, que procuram se impor. De todo modo, ele perdeu a confiança de uma população que deseja reinventar a democracia.

Éric Paul Meyer é professor emérito do Institut National des Langues et Civilisations Orientales (Inalco). Último livro publicado: Une histoire de l’Inde – Les Indiens face à leur passé [Uma história da Índia – os indianos diante de seu passado], Albin Michel, Paris, 2019.

1 Ler “La déroute des Tigres ne résout pas la question tamoule” [A derrota dos Tigres não resolve a questão tâmil], Le Monde Diplomatique, mar. 2009; e Cédric Gouverneur, “Le grand désarroi des Tamouls du Sri Lanka” [A grande desordem dos tâmeis do Sri Lanka], Le Monde Diplomatique, ago. 2020.
Umesh Moramudali, “Taxation in Sri Lanka: issues and challenges” [Tributação no Sri Lanka: questões e desafios], Economy for all, Universidade de Colombo, 2022.
3 “IMF Country Report Sri Lanka 22/91” [Relatório do FMI sobre o Sri Lanka 22/91], FMI, Washington, 2022.
4 “Debt Stock by Major Lenders” [Estoque da dívida por principais credores], abr. 2021, Departamento de Recursos Externos, Ministério de Finanças do Sri Lanka. Disponível em: www.erd.gov.lk.
5 Jorgelina do Rosario, “Analysis: Complex web of creditors, politics threatens Sri Lanka restructuring” [Análise: com uma complexa rede de credores, a política ameaça a reestruturação do Sri Lanka], Reuters, 28 abr. 2022.


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