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Peste de Atenas: primeira emergência sanitária narrada é um retrato do presente

Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Tucídides, que escreveu a “História da Guerra do Peloponeso”, da qual foi testemunha e participante, relata os fatos com concisão e procura explicar-lhes as causas. Eram tempos da guerra e Atenas foi acometida pela peste. Seu relato é impressionantemente preciso e nos traz panoramas do Covid-19 atual, principalmente a realidade vivida ou a ser vivida nos países subdesenvolvidos e nas periferias dos grandes centros.

Dentre todas as desgraças que sempre se abateram sobre a humanidade, as grandes epidemias foram as que deixaram lições e lembranças vívidas. Primeiramente são atacados apenas alguns indivíduos, depois os casos se multiplicam e os mortos assomam por todos os lados. As pessoas se sentem, então, participantes de uma batalha contra um inimigo secreto, invisível, que não pode ser atacado. 

A “peste de Atenas” possivelmente teve sua origem no Egito; foi uma epidemia cuja primeira onda varreu o Peloponeso entre 430 e 429 a.C., com uma outra onda logo no ano seguinte, antes de desaparecer de vez. 

A doença subjacente à peste de Atenas não foi identificada até hoje de maneira segura. Alguns estudiosos levantaram apenas como hipóteses o tifo ou a febre tifoide, cujos sintomas mais se aproximariam dos descritos com tanta precisão por Tucídides. Outros cientistas, entretanto, ainda aventam a possibilidade de uma virose desconhecida. 

De qualquer forma, Tucídides a conheceu no próprio corpo e conseguiu sobreviver à peste. Devemos ao grego, de vinte e cinco séculos atrás, a descoberta de que pessoas adquirem imunidade à peste. Ele observou que pessoas que sobreviviam ao contágio eram poupadas durante os surtos posteriores da mesma doença, o que constitui a base moderna da vacinação (a primeira vacina somente surgiu em 1789).

“Dizem que a doença começou na Etiópia, e depois desceu para o Egito e para a Líbia, alastrando-se pelos outros territórios do Rei (Pérsia). Subitamente ela caiu sobre a cidade de Atenas, atacando primeiro os habitantes do Pireu, de tal forma que a população local chegou a acusar os peloponésios de haverem posto veneno em suas cisternas. Depois atingiu também a cidade alta e a partir daí a mortandade se tornou muito maior”.

“Em parte alguma se tinha lembrança de nada comparável como calamidade ou em termos de destruição de vidas”. 

“Nem os médicos eram capazes de enfrentar a doença, já que de início tinham de tratá-la sem lhe conhecer a natureza! Logo, a mortalidade entre médicos e auxiliares era maior por estarem mais expostos a ela”. 

“As preces feitas nos santuários, ou os apelos aos oráculos e atitudes semelhantes foram todas inúteis, e afinal a população desistiu delas e dos deuses, vencida pelo flagelo”. 

Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia

Michiel Sweerts
Obra: Praga em uma cidade antiga ou a Praga de Atenas

A descrição dos sintomas da doença por Tucídides:

“Descreverei a maneira de ocorrência da doença, detalhando os sintomas, de tal modo que, estudando-os, alguém mais habilitado por seu conhecimento, não deixe de reconhecê-la se algum dia ela voltar a manifestar-se, pois eu mesmo contraí o mal e vi outros sofrendo dele”. 

“Sem causa aparente, de súbito e enquanto gozavam de boa saúde, as pessoas eram atacadas por intenso calor na cabeça e vermelhidão, e inflamação nos olhos, e as partes internas da boca (tanto a garganta quanto a língua) ficavam imediatamente da cor de sangue e passavam a exalar um hálito anormal e fétido”. 

“No estágio seguinte apareciam espirros, e rouquidão, e pouco tempo depois o mal descia para o peito, seguindo-se tosse forte”. 

Em muitos “o estômago ficava perturbado e ocorriam vômitos seguidos também de terrível mal-estar; em muitos casos sobrevinham convulsões violentas, que às vezes cessavam rapidamente, às vezes muito tempo depois”. 

“Externamente o corpo não parecia muito quente ao toque, mas de um vermelho forte e lívido, e cheio de pequenas bolhas e úlceras; internamente, todavia, a temperatura era tão alta que os doentes não podiam suportar sobre o corpo sequer as roupas mais leves ou lençóis de linho, mas queriam ficar inteiramente descobertos e ansiavam por mergulhar em água fria de tão atormentados que estavam pela sede insaciável; e era igualmente inútil beber muita ou pouca água”.

“Os doentes eram vítimas também de uma inquietação e de insônia invencíveis”. 

“O corpo não definhava enquanto a doença não atingia o auge, e sendo assim, quando os doentes morriam, como aconteceu a tantos entre o sétimo e o nono dia de febre interna, ainda lhes restava algum vigor ou, se sobreviviam à crise, a doença descia para os intestinos, produzindo uma diarreia aguda, que nesse estágio final levava a maioria dos doentes à morte por astenia”. 

“Se alguém sobrevivia a esta fase, a doença chegava às extremidades e deixava suas marcas nelas, pois atacava os órgãos sexuais, dedos e artelhos”. “Em alguns casos o paciente era vítima de amnésia total imediatamente após o restabelecimento; não sabia quem era e não reconhecia sequer seus próximos”. 

 “Não se encontrou remédio algum, pode-se dizer, que contribuísse para o alívio de quem o tomasse, o mal atingiu a todos sem distinção, mesmo àqueles cercados de todos os cuidados médicos”. 

O contágio e as relações sociais:

Mas o aspecto mais terrível da doença era a apatia das pessoas atingidas por ela, pois seu espírito se rendia imediatamente ao desespero e elas se consideravam perdidas, incapazes de reagir. 

“Havia também o problema do contágio, que ocorria através dos cuidados de uns doentes para com os outros, e os matava como a um rebanho; esta foi a causa da maior mortandade, pois se de um lado os doentes se abstinham por medo de visitar-se uns aos outros, acabavam todos perecendo por falta de cuidados, de tal forma que muitas casas ficaram vazias por falta de alguém que cuidasse deles”

“Também pereciam, sobretudo os altruístas, que por respeito humano entravam nas casas dos amigos sem se preocupar com suas próprias vidas, numa ocasião em que mesmo os parentes dos moribundos, esmagados pela magnitude da calamidade, já não tinham forças sequer para chorar por eles”. 

“Eram os sobreviventes que com mais frequência se apiedavam dos moribundos e doentes, pois conheciam a doença por experiência própria e a essa altura estavam confiantes na imunidade, pois o mal nunca atacava a mesma pessoa duas vezes, pelo menos com efeitos fatais. Eles não somente eram felicitados por todas as pessoas como, no entusiasmo de sua alegria naquelas circunstâncias, alimentavam a esperança frívola de que pelo resto de suas vidas não seriam atingidos por quaisquer outras doenças”. 

Em adição à calamidade que já os castigava, os atenienses ainda enfrentavam outra, devida à acomodação na cidade da gente vinda do campo; isto afetou especialmente os recém-chegados. Com efeito, não havendo casas disponíveis para todos e tendo eles, portanto, de viver em tendas que o verão tornava sufocantes, a peste os dizimava indiscriminadamente.

“Os corpos dos moribundos se amontoavam e pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes em sua ânsia por água”. 

“Por um detalhe a peste se mostrou diferente de todos os males comuns: as aves e os quadrúpedes que usualmente se alimentam de cadáveres humanos, ou não se aproximavam deles, neste caso (apesar de muitos permanecerem insepultos), ou morriam se os comiam. As aves desse gênero se haverem tornado raras e não mais serem vistas em volta dos cadáveres ou em parte alguma da região”. 

“Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos dos cadáveres daqueles que morriam dentro deles, pois a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que as esperava, tornavam-se indiferentes a todas as leis, quer as sagradas, quer as profanas”.

As convenções sociais durante a epidemia:

Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia. Muitos recorreram a modos escabrosos de sepultamento, porque já haviam morrido tantos membros de suas famílias que já não dispunham de material funerário adequado. Valendo-se das piras dos outros, algumas pessoas, antecipando-se às que as haviam preparado, jogavam nelas seus próprios mortos e lhes ateavam fogo; outros lançavam os cadáveres que carregavam em alguma já acesa e iam embora. 

“De modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia total. Ousava-se com a maior naturalidade e abertamente aquilo que antes só se fazia ocultamente, vendo-se quão rapidamente mudava a sorte, tanto a dos homens ricos subitamente mortos quanto a daqueles que antes nada tinham e num momento se tornavam donos dos bens alheios”. 

“Todos resolveram gozar o mais depressa possível todos os prazeres que a existência ainda pudesse proporcionar, e assim satisfaziam os seus caprichos, vendo que suas vidas e riquezas eram efêmeras”.

“Ninguém queria lutar pelo que antes considerava honroso, pois todos duvidavam de que viveriam o bastante para obtê-lo; o prazer do momento, como tudo que levasse a ele, tornou-se digno e conveniente; o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham ninguém, pois vendo que todos estavam morrendo da mesma forma, as pessoas passaram a pensar que impiedade e piedade eram a mesma coisa; além disto, ninguém esperava estar vivo para ser chamado a prestar contas e responder por seus atos; ao contrário, todos acreditavam que o castigo já decretado contra cada um deles e pendente sobre suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres da vida antes de sua consumação”. 

Eis a desgraça que havia atingido tão dolorosamente os atenienses: seu povo morrendo dentro da cidade e suas terras sendo devastadas lá fora pelos inimigos em tempos da Guerra do Peloponeso. 

A segunda onda da epidemia:

“Durante o inverno seguinte a peste atacou pela segunda vez os atenienses; na realidade, ela ainda não havia sido totalmente dominada, embora tivesse havido um período de recesso. Ela continuou nesse novo período por não menos de um ano, após grassar por dois anos completos no período anterior, de tal forma que os atenienses foram mais castigados por ela que por qualquer outra calamidade, e sofreram consequentemente um golpe sumamente nocivo ao seu poder de luta”.

Atenas alcançava no século V/IV a. C. uma população de duzentos mil habitantes. “Com efeito, não menos de quatro mil e quatrocentos hoplitas (soldados de infantaria) convocados morreram em decorrência da peste, além de trezentos soldados de cavalaria e um número não determinado de habitantes.”

Afinal, o povo ateniense sobreviveu, e após a segunda onda aquela epidemia deixou em paz Atenas, no ano 426 IV a. C., para jamais voltar.

Carlos Russo Jr, colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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