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Julio Antonio Mella, José Martí e a importância de conhecer o passado para construir o futuro

Aos 23 anos, Mella já possuía importante experiência como militante, incluindo a de ter contribuído para criar o primeiro partido comunista de Cuba
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“Conhecer é resolver. Conhecer o país, e governá-lo conforme o conhecimento, é o único modo de livrá-lo de tiranias. A universidade europeia há de ceder à universidade americana. A história da América, dos incas para cá, há de ensinar-se no pormenor, ainda que não se ensine a dos arcontes da Grécia.
Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa.
Nos é mais necessária.”
José Martí, 1891[1]

Terceiro mundismo, chamam uns; subdesenvolvimento, chamam outros, mas o nome mais adequado à nossa realidade provavelmente seja o da dependência inerente ao lugar e à função que ocupam nossas sociedades no moderno sistema mundial. Essa situação teve altas e baixas, como toda realidade histórica verdadeira. Assim, desde 1990 esta realidade foi a de uma visão do mundo que propunha refundar nosso futuro sobre o pior de nosso passado – aquele da disjuntiva entre civilização e barbárie.

Esta visão – que se apresentou a si mesma com o nome de neoliberalismo –, nos levou de volta àquela circunstância da qual José Martí podia dizer em 1883 que

Como jovens em estação de amor lançam os olhos ansiosos pelo ar azul em busca de um galhardo noivo, assim vivemos suspensos de toda ideia e grandeza alheia, trazendo a marca da França ou da América do Norte; e em plantar velhacamente em solo, em certo Estado e em certa história, ideias nascidas de outro Estado e de outra história, perdemos as forças de que precisamos para apresentar-nos ao mundo – que nos vê sem amor e como entre nuvens – compactos de visão e em marcha, oferecendo à terra o espetáculo não visto de uma família de povos que avança em passos iguais em um continente livre.[2]

É justo notar que esta estação de amor não era nova entre nós, nem afetava apenas a intelectualidade que buscou ser útil aos Estados neoliberais. Incluiu, também, os herdeiros daqueles que tinham buscado antes, em outras correntes ideológicas, apoio a aspirações de progresso econômico, justiça social e democracia de ampla base popular, garantidos por Estados nacionais plenamente soberanos.

O tempo que compartilhamos e a vigência do pensamento de José Martí em nossa América

Desta busca temos um belo exemplo precoce nas reflexões que dedicou o jovem comunista cubano Julio Antonio Mella (1903-1929) ao legado cultural e político de José Martí. Para Mella, cuja visão do mundo estava marcada pelo empenho em completar a independência política de Cuba mediante uma revolução que abrisse passagem ao socialismo em seu país, a compreensão do legado martiano passava “no caso de Martí e da revolução, tomados unicamente como exemplos,” pela tarefa de ver

o interesse econômico-social que “criou” o apóstolo, seus poemas de rebeldia, sua ação continental e revolucionária; estudar o jogo fatal das forças históricas, o rompimento de um antigo equilíbrio de forças sociais; desentranhar o mistério do programa ultrademocrático do Partido Revolucionário, o milagre —assim parece hoje— da cooperação estreita entre o elemento proletário das oficinas da Flórida e a burguesia nacional; a razão da existência de anarquistas e socialistas nas fileiras do Partido Revolucionário, etcétera, etcétera.[3]

Mella, como vemos, não desejava limitar a exposição do problema à caracterização de uma realidade a partir de um esquema pré concebido, e sim ampliá-lo em busca das razões de sua vitalidade e de seu potencial transformador. Tratava-se, resumindo, de atender, no específico, ao proposto no geral por Engels em seu artigo sobre a passagem do socialismo utópico ao científico por meio da análise do processo histórico que levava de um a outro. [4]

No plano político, Mella expôs a necessidade desta análise histórica com singular clareza. Em particular, ressalta a necessidade de chegar a compreender três aspectos pontuais do legado martiano no plano político-cultural: o caráter “ultrademocrático” do programa do Partido Revolucionário Cubano

Mella se fazia estas perguntas em 1926, aos 23 anos de idade, que já incluíam uma importante experiência como militante em organizações revolucionárias, incluindo a de ter contribuído para criar o primeiro partido comunista de Cuba. No entanto, os elementos de referência necessários para encontrar as respostas que buscava ainda não estavam disponíveis em seu entorno, salvo talvez a defesa do método marxista como critério de ortodoxia como fizera Lukács em 1922, a que faltava um longo caminho a percorrer antes de estar disponível em espanhol.

Aos 23 anos, Mella já possuía importante experiência como militante, incluindo a de ter contribuído para criar o primeiro partido comunista de Cuba

In Defense of Marxism

Como disse Marx, que a tradição de todas as gerações mortas oprima “como um pesadelo” o cérebro dos vivos

Outros elementos ainda não disponíveis naquele momento eram conceitos como os de hegemonia, bloco histórico e intelectualidade orgânica, que Antonio Gramsci elaboraria em seus Cadernos do Cárcere, entre o final da década de 1920 e o princípio da de 1930. Outra importante ausência era a do conceito de formação econômico-social elaborada por Marx em suas notas preparatórias para a redação do Capital, e intuída com especial agudeza por José Carlos Mariátegui em seus 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, que seria publicado em Lima em 1928. E outra ainda seria a do debate em torno dos processos de libertação nacional que acompanhariam a desintegração do sistema colonial mundial a partir da década de 1950.

José Martí é mais do que o pai de Cuba, é o herói da libertação de toda América Latina

Essas carências tornam ainda mais admirável a precisão com que Mella identificou no pensar e no fazer martianos contribuições cuja importância não fez senão confirmar com o tempo. Isto fica evidente, por exemplo, nas experiências do chamado progressismo latino-americano da última década, tão capaz de conquistar o governo por via eleitoral como limitado em sua capacidade de iniciar processos sustentáveis de transformação social e política em nossos países.

O que foi percorrido no século XXI revela a necessidade de construir nossas opções de futuro a partir de um melhor conhecimento e de uma maior compreensão de nosso passado. Para isso, ainda, tem especial importância o fato de que, se bem os seres humanos fazem sua própria história, esta tarefa tão frequentemente inconsciente é realizada em circunstâncias que nos foram legadas pelo passado. Com isso ocorre, como disse Marx, que a tradição de todas as gerações mortas oprima “como um pesadelo” o cérebro dos vivos,[5] levando-nos às vezes a impor-nos metas e métodos alheios à realidade em que vivemos.

José Martí e sua defesa de Nossa América frente aos impérios espanhol e estadunidense

A isso se referia por exemplo Immanuel Wallerstein quando em 1983 – do realismo pragmático característico de sua cultura de origem – afirmava que o comunismo “é a Utopia, ou seja, o nada. […] Não é uma perspectiva histórica, e sim uma mitologia corrente.” Ao contrário, acrescentava, o socialismo

é um sistema histórico realizável que pode um dia ser instituído no mundo. Não existe interesse algum por um «socialismo» que pretende ser um momento “temporário” da transição para a Utopia. Só existe interesse por um socialismo concretamente histórico, um socialismo que reúna o mínimo de características que definem um sistema histórico que maximiza a igualdade e a equidade, um socialismo que incremente o controle da humanidade sobre sua própria vida (a democracia) e liberte a imaginação.[6]

Um século antes, José Martí já advertira sobre a necessidade de “por alma com alma e mão na mão os povos de nossa América Latina.” E hoje, como nunca, podemos entender que apenas oito anos depois achou necessário insistir na necessidade de construir nossa própria universalidade a partir de nossas particularidades, a partir de nossa Grécia, a que nos é mais necessária.

A esta luz, podemos dizer de novo que vemos “colossais perigos” e “maneira fácil e brilhante de evitá-los”, pois “adivinhamos, na nova acomodação das forças nacionais do mundo, sempre em movimento, e agora aceleradas, o agrupamento necessário e majestoso de todos os membros da família nacional americana.” “Pensar é prever”, acrescentava, e essa previsão anunciava a importância de 

ir aproximando o que há de acabar por estar junto. Se não, crescerão ódios; estar-se-á sem defesa apropriada para os colossais perigos, e se viverá em perpétua e infame batalha entre irmãos por apetite por terras.[7]

Referências:
[1] Nossa América, janeiro de 1891, Nova York e México. http://www.ciudadseva.com/textos/otros/nuestra_america.htm
[2] “Agrupamento de povos”. La América, Nova York, junho de 1883. VII, 324 – 325.
[3] “Glosas ao pensamento de José Martí. Um livro que deve ser escrito”. 1926. https://www.marxists.org/espanol/mella/mella-textos-escogidos-tomo1.pdf 263-270
[4] Engels, Frederico: “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1880). https://www.marxists.org/espanol/m-e/1880s/dsusc/index.htm
[5] O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte.(1851) Fonte: C. Marx e F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, Editorial Progresso, Moscou 1981, I: 404-498. https://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/brumaire/brum1.htm
[6] O Capitalismo Histórico. Siglo XXI Espanha, 1988:101
[7] “Agrupamento de povos”. La América, Nova York, junho de 1883. VII, 325. Martí faz uma referência evidente à guerra travada pelo Chile entre 1879-1883 contra o Peru e a Bolívia pelo controle das jazidas de nitrato do deserto de Atacama, cuja memória bem pode iluminar os conflitos internos gerados em diversos países pelo controle de jazidas de lítio.

Guillermo Castro H., colaborador da Diálogos do Sul. Visite meu blog martianodigital.com
Alto Boquete, Panamá, 28 de setembro de 2022
Tradução: Ana Corbisier.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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